Thatcher, Reagan e o amigo suíço
A notícia da morte da ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher mexeu com a minha memória – de novo. Já havia acontecido por ocasião do desaparecimento do ex-presidente Ronald Reagan, em 2004. Falo exatamente de setembro de 1985. Nessa época morava na Nicarágua, epicentro da Guerra Fria na América Central. E o que tinha acontecido lá de tão importante? Em julho de 1979, os nicaraguenses, liderados pela Frente Sandinista de Libertação Nacional, fizeram uma rebelião popular e botaram para correr o ditador Anastácio Somoza Debayle, que morreria um ano depois no Paraguai, atingido por um tiro de bazuca numa ação de cinema protagonizada por um grupo de revolucionários argentinos.
Lembrei que naquele distante setembro recebi para jantar em casa um casal de amigos, Maurice e Chantal, dois jovens suíços que tinham abandonado o conforto de seu país para colaborar voluntária e pacificamente na reconstrução de um outro país, pobre e destruído pela guerra, do outro lado do oceano. Sonhadores e despojados, escolheram trabalhar na região de Estelí, justamente uma das mais engajadas no processo revolucionário e, por isso mesmo, uma das mais atingidas pelas ações dos “contras”, ex-soldados de Somoza e mercenários a soldo que insistiam em recuperar o poder.
Naquela noite agradável em Manágua, ficamos horas na varanda conversando sobre aquela experiência que enchia nossos corações de esperança. O olhar cúmplice da lua alimentava nossa utopia. Nos despedimos com um abraço apertado e uma sensação de que nossa amizade ultrapassava as fronteiras da cultura, embora o desejo deles em conhecer o Brasil fosse muito maior do que o meu em visitar a Suíça. Da cabine de sua caminhonete Toyota vermelha, suja de barro, Maurice esticou o braço para fora, fez o sinal da vitória e deu seu grito de guerra: “Viva la revolución!”.
Um dia depois, Maurice estava morto. Seu carro passara sobre uma mina colocada na estrada pelos “contras”. Com ele, morreram mais dez pessoas, das quais quatro eram crianças. O grupo havia pedido carona a Maurice e encontrou a morte. A generosidade do meu amigo suíço escreveria o capítulo final daquelas vidas cuja ambição maior era a paz. Inconsolável, Chantal levou Maurice para ser enterrado na Suíça, de onde nunca mais voltou e de quem nunca mais tive notícia.
Em 2004, Reagan já fora enterrado com honras de chefe de Estado. Agora, Thatcher receberá o mesmo tratamento e constará como um dos personagens mais importantes do século XX. Provavelmente seu túmulo será visitado por fãs e sua trajetória constará da historiografia oficial. Vão falar que ela, ao lado de Ronald Reagan, encostou Mikhail Gorbatchev na parede e colocou um ponto final na Guerra Fria. Vão dizer que ela relançou a economia mundial inspirando um modelo que ficou conhecido como neoliberalismo, bovinamente aplicado em escala mundial por governos submissos e sem criatividade. O resultado todo mundo conhece: déficits orçamentários extraordinários nos países endividados e o aumento sem precedente da desigualdade social, inclusive na própria Inglaterra. Não vão esquecer também que ela foi a “Dama de Ferro”, como Gorbatchev a apelidou.
Mas os historiadores menos apaixonados podem mencionar o papel que a dupla anglo-americana jogou para impedir a soberania de um pequeno país centro-americano. Isto incluiu atos terroristas e o financiamento de armas para os “contras” nicaraguenses, que resultou no escândalo “Irã-contras”, revelado pela mídia internacional e admitido, anos depois, pelo chefe dessas operações, o coronel Oliver North.
O fato é que, nesse momento, em alguma montanha encantada da Suíça repousa o corpo de Maurice que, como eu, se estivesse vivo, certamente estaria numa varanda contando suas histórias. Nas montanhas encantadas da Nicarágua, no cemitério de um povoado na região de Estelí, estão enterrados os corpos de dez nicaraguenses, entre os quais quatro crianças, (é recomendável que se repita). Assim como milhares de compatriotas civis, eles perderam suas vidas num combate desigual. Por quem mesmo devemos derramar nossas lágrimas?
Marco Piva é jornalista, ex-correspondente da Rádio França Internacional na América Central e autor de “Nicarágua – um povo e sua história” (Paulinas).
Publicado na revista Forumem 9/4/2013