“Fim da corrupção”: opacidade, moralismo e hipocrisia
Tanto no Império quanto na República, o discurso anticorrupção é velho na vida política brasileira. Nos dois períodos democráticos, presidentes foram eleitos com vibrantes discursos anticorrupção, do “varre, varre vassourinha” até a “caça aos marajás”.
No meio do caminho, a própria ditadura civil-militar elegeu o fim da corrupção e a derrota do comunismo como metas moralizantes. Hoje, no auge da politização e do amadurecimento democrático que atravessa o país, o discurso anticorrupção ganha força na mídia hegemônica e em cartazes nas manifestações que têm ocupado as ruas em diversas cidades brasileiras.
Tal como tem sido difundido e veiculado nos últimos anos no Brasil, defendo aqui que o discurso anticorrupção é vazio, podendo se tornar profundamente despolitizado. Elenco quatro razões principais na tentativa de fundamentar esta posição.
1 – O discurso anticorrupção não possui opositores, pois não existem registros de uma plataforma e de uma agenda favorável à corrupção. É uma pauta incontroversa. Em uma democracia não existe lugar para a defesa explícita e pública da corrupção. Ao obscurecer a disputa entre os interesses público e privado, o discurso anticorrupção assume no âmbito privado seu maior lócus de enunciação, o reservatório supostamente intocável da moral e dos bons costumes. Não estranhamente, vários corruptos são porta-vozes do discurso anticorrupção.
2 – Desde Maquiavel, o Estado é o lugar por excelência da corrupção, cabendo à sociedade a nobreza da virtude cívica. No Brasil de hoje, a segunda lógica acrescenta ainda o mercado ao campo da honestidade, da lisura e da ética. No sistema turbocapitalista em que vivemos, a busca pelo lucro é legítima, e logo, o interesse individual e privado. Ao ser moralizado positivamente como valor político do capitalismo, este é isento de julgamento público e transparência. A corrupção de funcionários públicos e representantes políticos são enfatizados, desviando as atenções de empresários e banqueiros, por exemplo.
3 – Ao aliviar a agência privada, a qual é composta inclusive pelos meios de comunicação denunciadores – quase um quarto poder fiscalizador, porque supostamente neutro -, elos importantes da cadeia são excluídos. Os corruptores não possuem responsabilidade ou envolvimento sobre os corruptos e os corrompidos. A corrupção, entendida como a apropriação do interesse público pelo privado, parece aqui não fazer sentido.
4 – Lustrado com o verniz neoliberal, o discurso anticorrupção ao mesmo tempo em que ataca exclusivamente a ineficiência do Estado, enfatiza o mau caráter individual de seus agentes, altamente incentivados pela impunidade institucional. É desconsiderada uma série de fatores estruturais, históricos e culturais que contribuem para a ausência do sentido de igualdade e de relação com o público daqueles que possuem um sobrenome tradicional e sempre podem pagar mais. Daí que soluções imediatistas, demagógicas e perigosas entram em cena, em nome da salvação da pátria corrompida.
A corrupção não é um fenômeno exclusivo de um determinado tempo histórico, regime político, sistema econômico, ideologia e partido político. Não é um fenômeno exclusivo do Estado brasileiro. Justamente por isso, o combate à corrupção envolve práticas institucionais, culturais, coletivas e individuais muito complexas. Ele está associado com uma noção forte de cidadania e com a reversão na hierarquia de valores que implica no triunfo do republicanismo do interesse público sobre o individualismo do interesse privado. A ação contra a corrupção não deve ser restringida a uma questão criminal e moral, caso queira sair do campo discursivo vazio.
Nos protestos recentes existe uma clara tentativa dessa reversão. E, paradoxalmente, esta observação é permitida mais por um conjunto de pautas difusas do que pela própria pauta anticorrupção.
Neste sentido, o questionamento à forma como os preparativos da Copa do Mundo têm sido executados no Brasil é um ótimo exemplo.
A ingerência da FIFA sobre o Brasil tem mostrado o funcionamento nebuloso da governança global, no qual atores privados, internacionais e não eleitos podem determinar a vida de milhões de pessoas no interior de um determinado Estado, à revelia da soberania popular e da autodeterminação.
No mundo globalizado, a teoria da democracia pensada exclusivamente para o âmbito local e nacional é desafiada por questões que envolvem representação, autorização e accountability.
A construção, definição e demarcação do que é o interesse público é uma das preocupações mais antigas e difíceis na filosofia política, outrora pensado também como bem comum ou vontade geral. O que hoje, afinal, está sendo corrompido entre nós brasileiros? A politização da corrupção envolve o debate sobre interesse público, republicanismo, democracia, cidadania, direito, dignidade e vida. Fora destas órbitas, o clamor pelo fim da corrupção tende a ser opaco, moralista e hipócrita.
*Luciana Ballestrin é professora-adjunta de Ciência Política e Coordenadora do Curso de de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas.
Publicado em Carta Capital