Livro: Arquitetura Construtivista 1917-1936/Grande Experimento Arte Russa 1863-1922 Autor(a): Vittorio de Feo / Camilla Gray Editora: Worldwhitewall

Uma série de cinco obras sobre a arte e a arquitetura da época da Revolução Russa tem previsão de publicação pela editora Worldwhitewall de São Paulo (Brasil) (1). Três dentre elas são traduções em português de livros originais em inglês ou em italiano: o livro de Camilla Gray (2), na sua versão original de 1962, seguida da obra de Vittorio De Feo sobre a arquitetura na URSS de 1917-1932 (3). Esta aqui foi, em 1963, a primeira publicada sobre o tema, além das publicações fragmentárias na imprensa artística e arquitetônica russa (da época heroica) ou ocidental. Uma suma monográfica sobre os arquitetos construtivistas, editado sob a direção de Oleg Shvidkovsky (4), igualmente traduzido do inglês, tem previsão de publicação, assim como a tese de doutorado sobre o construtivismo, defendida pelo pesquisador e arquiteto brasileiro Luiz Antonio Pitanga do Amparo, encarregado das três reedições. Uma outra obra está em projeto para completar esse corpus único sobre esse período.

Questionando-se sobre a herança dos construtivistas, Luiz Antonio Pitanga do Amparo, a duras penas, não encontrou mais do que uma dezena de obras, o que é muito pouco em comparação às quatrocentas disponíveis sobre a Bauhaus. Dessa constatação banal surgiu uma tese de doutorado, cujo tema central é: “O Grande Boicote Ocidental”. Ao se identificarem as contribuições dos russos para o restante da Europa colocam-se outras questões: porque os ocidentais menosprezaram ou calaram essas contribuições? O sufocamento das ideias da época heroica pela sociedade estalinista é suficiente para qualificar esse período como fracasso? Devemos considerar que o espírito e o significado dessas ideias foram extintos?
Com o surgimento nos anos de 1990 de um movimento “deconstrutivista” encarnado pelos arquitetos Eisenman, Libeskind, Zaha Hadid etc., a ideia emergiu de uma estreita relação entre os dois movimentos, o que não contribui para dissipar a ignorância envolvendo os construtivistas russos.

Dentre os construtivistas russos compreendem-se, geralmente, além daqueles que assim se declaram, os urbanistas e seus contemporâneos da vanguarda, trabalhando especialmente em pintura (suprematistas), artes cênicas e design. Nesse reagrupamento heterogêneo, suas diferenças ideológicas são minimizadas e, pelo mesmo fato, a parcela de utopia social em marcha passou por perdas e ganhos. Mas para compreender qual foi a contribuição universal dos construtivistas russos, uma premissa indispensável é sua relação profunda e contraditória com seu substrato social na Rússia. A inexistência de documentos em português conduziu de início o pesquisador brasileiro a se interessar por aquilo que poderia lhe fornecer elementos.

Fabricar a história?
Muito distante para que os testemunhos de primeira mão sejam acessíveis, muito recente por seus aspectos polêmicos, a história da revolução de Outubro na Rússia e do período heroico que se seguiu, chamado também “período de transição, 1920-1930”, ainda precisa ser contada. Isso é particularmente verdadeiro para a arquitetura e menos no que concerne às artes plásticas, um pouco mais conhecidas, os artistas tendo emigrado e várias coleções sendo montadas no Ocidente. Escrever a história é também descrever a transformação dos seus atores e de suas ideias. Preencher essas lacunas deveria ser a tarefa dos próprios russos. Vittorio De Feo expressou essa promessa em 1963, parcialmente cumprida desde então.

Retornando de uma viagem oficial de arquitetos franceses à Rússia em 1956, o arquiteto Anatole Kopp viu La Nouvelle Critique, órgão intelectual do PCF, censurar um artigo seu que colocava algumas questões sobre a arquitetura estalinista. Diante da recusa de Anatole Kopp de obedecer, o artigo não foi publicado. Na sua imponente Histoire de l’architecture moderne publicada em 1960, Leonardo Benevolo havia dedicado à arquitetura russa menos de cinco páginas, nas quais ele seguia a história oficial da URSS, evocando as dificuldades do “período intermediário” (1920-1930), segundo expressão consagrada, mas, sobretudo, o retorno ao neoclássico exaltado por Kamenev, o encarregado da cultura de Stalin, com algumas ilustrações (como o metrô de Moscou). Seria preciso aguardar até 1976, após a publicação de certo número de obras sobre o construtivismo, notadamente por parte dos soviéticos, para que Benevolo modificasse o tom do capítulo e acrescentasse uma dezena de páginas. O que é finalmente muito mais do que a maioria dos historiadores ocidentais haviam julgado suficiente escrever ao longo do meio século anterior, mas não o bastante para fazer uma obra de historiador.
Nesse interregno, dois autores haviam rompido o silêncio: a inglesa Camilla Gray, com sua história mundial das belas-artes na Rússia de 1863-1922, publicada em Londres em 1962; e o arquiteto italiano Vittorio De Feo, com sua obra sobre a arquitetura na URSS de 1917 a 1936, publicada em Roma em 1963. Ambos os historiadores eram amadores, não universitários, e haviam criado obras aparentemente independentes das correntes dominantes, numa época em que isso não era favorável, nem na Europa ocidental, nem na União Soviética, apesar da desestalinização. Dançarina por profissão e intérprete de russo, Camilla Gray casou-se com Oleg Prokofiev, o filho do compositor. Ela tinha 26 anos quando publicou seu livro em Londres em 1962. No ano da reedição da obra, em 1971, ela morreu na URSS de uma hepatite mal tratada. Nas edições seguintes, os textos dos protagonistas do movimento russo que a autora havia anexado à primeira edição foram, infelizmente, suprimidos. Apesar de tudo, sem essa contribuição, manifestações como a exposição Paris-Moscou 1900-1930, realizada no Centro Pompidou por Pontus Hulten em 1991, não poderiam ter sido realizadas.

Vittorio De Feo, arquiteto italiano estabelecido em Roma, publicou em 1963 a primeira grande compilação da arquitetura construtivista. Essa obra foi realizada a partir de arquivos de revistas, sem que ele nunca se deslocasse para a URSS. Daí a péssima qualidade de sua iconografia, o que parece envolvê-la em mistério. A obra é por si mesma um enigma. Por que razão De Feo se lançou nesta compilação, de uma dificuldade extrema, aparentemente sem sequer dispor de fontes de primeira mão? Ela foi publicada pela Editori Riuniti, próxima do partido comunista italiano que pregava, nessa época, certa autonomia com relação a Moscou, com a tese do “policentrismo” (primeiro passo do PCI em direção ao eurocomunismo). O livro não poderia ter sido publicado sem o consentimento explícito das instâncias dirigentes do PCI. De Feo tenha tido ou não os contatos capazes de lhe trazer as informações complementares e cuja resposta está nesses arquivos atualmente inacessíveis, que se tornaram objeto de doação após sua morte. A obra desapareceu dos catálogos do editor, sua existência mesma poderia ser posta em dúvida se não houvesse sido citada como referência nas obras de Anatole Kopp e dos historiadores russos Oleg A. Shvidkovsky e Selim Khan-Magomedov (5) que publicaram sobre o assunto alguns anos mais tarde. É graças a essa referência que a obra foi redescoberta na biblioteca da faculdade de arquitetura da USP por L. A. Pitanga do Amparo após a morte de De Feo em 2002. Calcule o caminho percorrido para se chegar à publicação de Ville et Révolution (6), por Anatole Kopp nas edições Anthropos com o apoio da associação França-Rússia em 1967. Ele será seguido por Vieri Quilici (7) na Itália (1969).
Tudo que foi publicado sobre esse período e suas origens não foi na mesma direção. A exposição sobre arte russa na virada do século (A Arte russa na segunda metade do século XIX: Pesquisa de identidade, no museu d’Orsay, 20 de setembro de 2005 – 8 de janeiro de 2006) foi acompanhada de um importante trabalho coletivo sobre esse período (8). A documentação se centrou em um período parcialmente abordado por Camilla Gray (que se inicia em 1863), dentro de uma ótica que se poderia qualificar de nacionalista. Gray valorizou na arquitetura um historicismo presente apenas em determinadas realizações do Art Nouveau. Esse período forneceu as referências para a criação dos estilos “nacionais” na arquitetura estalinista, o discurso oficial se apoiou sobre os avanços técnicos e estéticos desse tempo pré-guerra. Segundo Anatole Kopp, essas referências são, ao contrário, desprovidas de originalidade e de interesse técnico (9).

Dissolução de uma vanguarda
Geralmente qualificamos como sendo de vanguarda um movimento minoritário sem uma autêntica base social. Entretanto a vanguarda russa se achava muito próxima do poder. O vazio deixado pelos intelectuais emigrados em massa, ou por aqueles que ficaram, descartados e sem consideração (como foi Chagall da direção da escola de Vitebsky) deixou o campo livre. A isso se acrescenta o apoio de Lunacharsky, intelectual esclarecido, responsável pela cultura, que se beneficiou da confiança de Lenin. Essas circunstâncias foram determinantes no desenvolvimento do ensino e da pesquisa com os institutos conhecidos sob o nome de Vkhutemas (10), que constituem até hoje fontes inexploradas.

Em menos de quinze anos, o volume de trabalhos produzidos pela escola é largamente comparável àquele do modernismo do oeste da Europa em arquitetura, sem falar do ensino. A experiência construtivista é única por seu impacto geográfico e seu aspecto qualitativo. Entre prospecção e pedagogia, basta compararmos os desenhos de arquitetura de Tchernikhov (dos quais ele não cessará aparentemente de produzir os cadernos até 1936) àqueles de Eric Mendelsohn, para apreciarmos a dimensão da reflexão construtivista e sua ancoragem no universo social.
Conhecemos a sequência da história. Charles Bettelheim, em seu prefácio do livro de Anatole Kopp, descreve a reação da arquitetura estalinista como um aspecto da consolidação de uma burguesia de estado recém-chegada ao poder, que se beneficiou de uma forte abertura dos salários, acomodando-se, graças a essas aquisições, nas soluções individuais para os problemas do modo de vida. Ela tinha razões para querer o desaparecimento da época anterior e temia as experiências que sustentavam a inovação arquitetônica dos anos vinte e trinta. A extinção da arquitetura construtivista não se fez de um dia para o outro. A ambição de mudar o modo de vida e a sociedade foi eliminada primeiro, por volta de 1930. A fusão das organizações de arquitetos e seu enquadramento foram sendo realizados até 1937. Os arquitetos construtivistas não parecem ter sido incomodados, além da medida pelo regime estalinista na qualidade de pessoas físicas, para além da fusão de seus conselhos em organismos de grande porte. É esta impunidade dos arquitetos sob o regime que fará deles bodes expiatórios no momento da desestalinização conduzida por Kruschov?

O Ocidente boicotou as vanguardas russas?
A anterioridade histórica das vanguardas russas sobre os outros movimentos modernos foi sistematicamente ignorada pelos historiadores do século XX, com o eurocentrismo sendo acompanhado, dependendo da ocasião, de xenofobia ou antibolchevismo (Camilla Gray foi acusada de ser simpatizante comunista). Três exemplos valem a pena serem citados. O primeiro, nas artes plásticas, é o das relações comprovadas dos suprematistas e do grupo De Stijl. A influência determinante dos russos sobre o coletivo holandês é geralmente esvaziada. Ainda que a Bauhaus tenha sido fundada por um arquiteto, Walter Gropius, em 1919, foi somente em 1927 que lá foram introduzidos os estudos de arquitetura por Ernest May e Hannes Meyer, que se tornou seu diretor. Eles retornavam da URSS onde haviam participado da experiência construtivista em sua dimensão social. O “esquerdista” Hannes Meyer (ver AA n° 366) foi rapidamente demitido e o novo diretor da Bauhaus, Mies Van der Rohe, começou por esvaziar o ensino de arquitetura de seus conteúdos políticos. Ele reduziu os outros ensinos em benefício exclusivo da arquitetura, com um enfoque estetizante, o que não salvou a Bauhaus do fechamento definitivo pelos nazistas.

Quanto a Le Corbusier: ele chegou tarde à URSS, entre 1928 e 1932, quando o período de transição atingia seu final. Ele nada compreendeu dos conflitos internos da sociedade russa, que não valorizava a arquitetura em seu sentido formal. Ele negligenciou também a reflexão dos russos sobre a cidade, suas análises quantitativas em urbanismo, sobre os transportes e as densidades que antecipavam as utopias dos anos de 1970.
Por outro lado a emigração russa teve um papel difuso na contribuição de suas ideias no Ocidente. Gregori Warchavchik, teórico do modernismo no Brasil, seu país de adoção, participou delas de maneira não desprezível. Nascido em Odessa em 1896, que ele abandonaria em 1918, Warchavchik ali se banhou nas premissas do modernismo revolucionário russo. Ele terminou seus estudos de arquitetura em Roma, em 1920, para chegar ao Brasil em 1923; ele publicou ali seu Manifesto da arquitetura moderna em 1925, cujo conteúdo, como toda a sua arquitetura, carrega a marca do multiculturalismo.

Em direção a uma arqueologia do construtivismo
Para o pesquisador brasileiro, que teve a oportunidade de viajar várias vezes para a Rússia, grande parte dos arquivos, das obras e trabalhos da época não foi destruída pela guerra, nem pelas preocupações da burocracia estalinista, mas posta em segurança pelos restauradores, os bibliotecários, que, em benefício das gerações posteriores, fingiram ser inexistente essa massa de documentos e arquivos. E ele continua a recuperar e a trazer à luz esses documentos. A dificuldade se avoluma com o tempo, a geração de testemunhas intermediárias, ocidentais ou russos, como Camilla Gray, Anatole Kopp ou Oleg Shvidkovsky, que havia conhecido os atores da época heroica não mais existe, e com eles se foram os últimos testemunhos de primeira mão. Somente eles teriam podido abordar a questão da memória do construtivismo e da sobrevivência subterrânea das ideias.

Desde os anos de 1970, o construtivismo retornou ao programa de estudos de arquitetura na Rússia, ao lado dos outros períodos, desencadeando polêmicas. No Ocidente, sabe-se apenas de uma constelação de ícones arquitetônicos e gráficos em que os desenhos de Tatlin se avizinham dos grafismos de El Lissitsky; algumas realizações de Melnikov (um dos mais prolíficos), dos irmãos Vesnin e de Moisei Ginzburg. A L’Architecture d’Aujourd’hui não deixou de publicar uma reportagem de Bruce Chatwin sobre Konstantin Melnikov e seu ateliê de Moscou, a casa da rua Arbat (AA n° 293, abril de 1994). O edifício ressurgiu do esquecimento ao longo do verão de 2006 no imbroglio dos herdeiros do arquiteto com um empreendedor russo. The Art Newspaper (26 de outubro de 2006) citou dois projetos de reabilitação do Narkomfin de Moisei Ginzburg, do qual uma proposta é de Aleksei Ginzburg, arquiteto e neto do autor.

A conservação dos edifícios desse período e a pesquisa histórica ressaltam no momento o difícil campo da arqueologia e suas conjecturas.

Notas
1) Os livros foram editados e estão disponíveis para compra na loja virtual loja virtual: http://www.worldwhitewall.com/loja.html

2) GRAY, Camilla. The Great Experiment, Russian Art, 1863-1922, Londres, 1962, edição revisada 1971. Reedições 1986-2000, sob o título The Russian Experiment in Art, 1863-1922, sob a direção de Marian Burleigh-Motley. Em francês: L’Avant-garde russe dans l’art moderne, L’Univers de l’art, Thames and Hudson, Paris 202. Reedição em português, Worldwhitewall Editora, São Paulo 2005.
3) DE FEO, Vittorio. URSS architettura 1917-1936, Roma, 1963, Editori Riuniti. Em português, São Paulo, 2006, Worldwhitewall Editora.

4) SHVIDKOVSKI, Oleg Alexandrovitch. Building in the USSR 1917-1932, Londres, 1970, Studio Vista. Publicação em andamento em português, Worldwhitewall Editora.
5) SHVIDKOVSKI, Oleg; MAGOMEDOV, Khan. Pioneers of Soviet Architecture, Londres, 1978, Dresden (em alemão), 1983.

6) KOPP, Anatole. Ville et Révolution, Paris, 1967, Anthropos.
7) QUILICI, Vieri. L’Architettura del Costruttivismo, Laterza, Bari, 1969, Itália.

8)  L’Art russe au tournant du siècle, Paris, 2005, RMN.
9) KOPP, Anatole. L’Architecture de la période stalinienne, préface de Charles Bettelheim, Presses universitaires de Grenoble, ENSBA, 1985.

10) O Vhutemas eram os institutos superiores de arte e técnicas. Criados em 1920 no local da antiga fábrica Fabergé, o Vhutemas de Moscou contava dentre seus professores com Rodchenko, bem como Kandinsky e El Lissitzky, que ensinavam igualmente na Bauhaus. Ler sobre o assunto: Les Vkhutemas, Selim Khan-Magomedov, Éditions du Regard, Paris 1990.

* A resenha dos livros editados pelo arquiteto e pesquisador L. A. Pitanga do Amparo foi escrita por Jean-Pierre Cousin e publicada na revista francesa  L’Architecture d’Aujourd’hui n° 367 Nov-Dez 2006. A tradução é de Luiz Antonio Pitanga do Amparo para a revista AgitProp