Exame crítico da teoria da financeirização Parte 2
Exame crítico da teoria da financeirização Parte 1
Exame crítico da teoria da financeirização Parte 3
A ótica marxiana
A tese de que a atividade financeira parasita a atividade produtiva não é nova; ao contrário, ela surge necessariamente na crítica do capitalismo quando esta se volta para o problema da repartição da renda gerada na produção de mercadorias entre as classes sociais – e não se concentra propriamente na subsunção do trabalho ao capital, do trabalho vivo ao trabalho morto, ou seja, nas relações de produção que o caracterizam. Ora, no capitalismo, essas relações se dão de modo indireto –se afiguram como relações sociais de coisas –e, por isso, dão origem a o fetichismo que recobre todas as formas do capital desde a mais simples delas na ordem de apresentação do modo de produção como um todo, qual seja esta, a forma mercadoria. De fato, sob a primeira perspectiva, que critica antes a repartição que lhe é inerente do que propriamente o capitalismo enquanto tal, afigura-se realmente como uma enormidade a existência de uma classe social “ociosa”, a qual obtém os seus rendimentos, eventualmente em montantes elevados, com base exclusiva na propriedade de direitos –e não da própria laboriosidade, de algum modo.
Sotiropoulos, Milios e Lapatsioras, num escrito recente, mostraram que esse modo de pensar tem uma longa tradição em Economia Política, a qual remonta aos seus Primórdios, manifestando-se já na pena dos economistas clássicos. Segundo esses três autores, ele pode ser encontrado já nos escritos de David Ricardo, tendo aparecido também depois dele, sucessiva e notoriamente, nas posições sustentadas por autores como Proudhon, Veblen e Keynes e muitos outros. Em todos os casos, há sempre uma ideia central: censura-se a existência “do proprietário ausente que se apropria de renda gerada na atividade produtiva industrial, sob a forma rentista, com base na propriedade privada como preceito legal” (Sotiropoulos, Milios e Lapatsioras, 2013, p. 3). Ao fazê-lo, passa-se a conceber um modelo de capitalismo em que o papel desse tipo de proprietário se encontra, senão ausente, pelo menos severamente restringido. E, neste caso, ele passa a ser encarado como aceitável (provisoriamente ou não) porque se acha que manteria a função positiva de promover o avanço tecnológico e o crescimento econômico ou, o que é o mesmo sob outra ótica, o desenvolvimento das forças produtivas.
A crítica desse tipo de teorização considera que não se pode opor simplesmente o capital financeiro ao capital industrial como se fossem dois subsistemas distintos, ainda que interligados de algum modo–um deles amigo e o outro inimigo do desenvolvimento. Um não pode ser pensado simplesmente como externo ao outro, mesmo se o primeiro mantém-se externo à produção. Ao contrário, nessa perspectiva que se mantém fiel aos textos originais, ambos têm de ser compreendidos como momentos da totalidade social constituída pelo próprio capital. Ora, isto apenas pode ser compreendido por meio de uma sucessão de passos.
O capital tal como conceituado por Marx –e este primeiro passo é bem conhecido –é uma relação social que subordina formal e realmente, intensiva e extensivamente, a força de trabalho, fazendo com que ela produza continuamente a substância de que está constituído e da qual se alimenta sem parar. E o faz sem que ela, a força de trabalho, o saiba e sem que possa se constituir como uma totalidade alternativa; para o capital, como se sabe, a força de trabalho deve se conformar a ser e a permanecer, indefinidamente, um conjunto heterogêneo e fragmentado. O capital é uma contradição em processo porque precisa incluir a força de trabalho em seu movimento de valorização, mas, ao mesmo tempo, tem de excluí-la constantemente porque precisa elevar constantemente a produtividade do trabalho. E esta inclusão/exclusão não se esgota no emprego/desemprego da força de trabalho, mas marca a vida social como um todo. De qualquer modo, o capital enquanto capital que se move no circuito industrial, para se valorizar continuamente, deve passar necessariamente pelas formas de capital monetário, capital produtivo e capital – mercadoria.
Ademais, para Marx, o capital está constituído por uma pluralidade de capitais e, ao mesmo tempo, se constitui como capital social. “Cada capital individual constitui” –diz ele –“apenas uma fração autonomizada do capital social total, dotada, por assim dizer, de vida individual, assim como cada capitalista individual constitui apenas um elemento individual da classe capitalista” (Marx, 1983B, p. 261). Não se trata aqui, porém, nem de uma mera agregação ou de uma simples composição de capitais individuais que interagem dinamicamente na esfera mercantil; diferentemente, mantendo cada um deles a sua autonomia, eles formam também uma síntese objetiva, ou seja, um todo emergente como todo e que, por isso, tem existência real; essa síntese, o capital social, engloba os capitais particulares como momentos de um todo em permanente processo de reprodução.
O capital como um todo não é apenas uma abstração mental: é o modo de ser do capital enquanto relação social que prevalece na sociedade atualmente existente. Pois, os capitais individuais se encontram entrelaçados não só pelos nexos que mantém na esfera da circulação mercantil, mas porque atuam em conjunto na produção de valor. O conjunto dos capitais é pressuposto de cada um deles em particular. Em consequência, “o movimento do capital social” –diz Marx –“consiste na totalidade dos movimentos de suas frações autonomizadas, das rotações dos capitais individuais” (Marx, 1983B, p. 261). Eles se expandem –ou se contraem –em conjunto, ainda que assimetricamente; eles participam também, ainda que diferenciadamente, da repartição do valor gerado pela classe trabalhadora como um todo. 4 [rodapé: Ver sobre isso a explicação de Grespan (1999, p. 171-180)]. E essa totalidade não inclui apenas o capital industrial, mas engloba também o capital financeiro. Discutindo a limitação de capital monetário que eventualmente enfrenta o capitalista individual para expandir o seu negócio, Marx mostra, por exemplo, que a falta circunstancial de capital monetário é superada pela existência do capital portador de juros: “essa barreira é rompida pelo sistema de crédito” seja mediante o capital de empréstimo seja mediante o capital provido pelas “sociedades por ações” (Marx, 1983B, p. 265).
Portanto, a totalidade constituída pelo capital é complexa porque envolve não apenas a relação de produção que necessariamente mantém com o trabalho assalariado –a qual também não é, em si mesma, aliás, uma relação simplesmente homogênea, sem diferenciações de quaisquer espécies –, mas inclui também as diferentes relações de apropriação entre as diversas frações da classe dos proprietários privados que não detém apenas a sua própria força de trabalho. Se há oposição entre essas diferentes frações, isto não implica que possam ser pensadas como se fossem simplesmente disjuntas e entre si excludentes. Eis que formam, isto sim, uma unidade bem concreta frente aos trabalhadores. E essa unidade está assentada na própria natureza do capital que se constitui ao mesmo tempo como pluralidade de capitais individuais e como capital social ou capital como um todo. Nesse sentido, o capital financeiro em todas as suas formas –mesmo nos momentos em que se encontra exacerbado –não pode ser considerado, como dizem os três autores antes citados, uma mera distorção ou uma excrecência disfuncional. Diferentemente, as diferentes formas do capital portador de juros devem ser apresentadas como diferenciações constitutivas da totalidade do capital, as quais têm funcionalidades próprias na organização das relações capitalistas de dominação.5 [rodapé: A seguinte tese de Alain Badiou é bem óbvia, mas tem sido sistematicamente obscurecida nos escritos de muitos marxistas: “naturalmente, o capitalismo financeiro é –desde sempre, o que nesse caso quer dizer cinco séculos –uma peça constitutiva, central, do capitalismo em geral.” (Badiou, 2013).]
É preciso lembrar aqui a lógica de apresentação do capital como sujeito automático e totalizante na obra de mesmo nome. O livro primeiro, conforme o próprio Marx, fora concebido para mostrar o processo de produção do capital, fazendo abstração de seu processo de circulação. Aí, portanto, ele procurou revelar para os seus eventuais leitores as condições formais e reais para o permanente vir a ser da relação de capital enquanto relação de exploração subjacente à naturalidade fetichista posta pelo funcionamento aparente dos mercados. Em síntese, aí se apresenta o capital como valor que se valoriza. O livro segundo trata da circulação do capital, com ênfase especial nas formas assumidas pelo curso do capital industrial como um todo. Aí são discutidos, primeiro, os circuitos do capital monetário, do capital produtivo e do capital-mercadoria, para então tratar do processo de rotação do capital e da reprodução e a circulação do capital social total. Ao final desse livro, os processos de produção e circulação aparecem como dois momentos constitutivos de um processo unitário, o processo de reprodução social do capital. O livro terceiro parte daí e o seu objetivo é “encontrar e expor as formas concretas que surgem do processo de movimento do capital considerado como um todo” (Marx, 1982C, p. 23). Para expô-las, Marx admite aí, desde o princípio, que a concorrência caracteriza as relações travadas pelos capitais particulares entre si mesmos e que ela própria vem a ser uma mediação processual entre os movimentos destes capitais e o movimento do capital como um todo.
Se o livro primeiro vai da aparência do modo de produção capitalista à sua essência, o livro segundo e terceiro voltam pouco a pouco dessa essência, que fora antes revelada, para a aparência, não mais agora, porém, como mera concretude que aí está, mas como concretude pensada e esclarecida. Marx explica, então, que o processo de produção e o processo de circulação não apenas se entrecruzam e se interpenetram, mas eles se confundem e se falsificam um ao outro, de tal modo que aquilo que aparece no modo de funcionamento do sistema frequentemente não é o que verdadeiramente ocorre. Se, por exemplo, na esfera da produção se defrontam capital e trabalho como antagonistas, na esfera da circulação, eles se encaram apenas como iguais proprietários privados, um que possui apenas a força de trabalho e o outro que é proprietário dos meios de produção e possuidor do dinheiro invertível. De modo geral, todos figuram na circulação como iguais proprietários de mercadorias.
Da relação do capital com o trabalho na esfera da produção brota a mais valia que alimenta continuamente o próprio capital e continuamente depaupera o trabalhador. Porém, na perspectiva de quem atua na economia capitalista, o lucro aparece na esfera da circulação como um mero excedente acima do preço de custo, de tal modo que o próprio capital se afigura como fonte do lucro.
A relação entre os capitais, que envolve a luta pela apropriação da mais-valia gerada pelo trabalho, aparece na esfera da circulação como mera relação entre proprietários privados que atuam como compradores e vendedores de mercadorias. Da perspectiva da circulação, parece que os próprios capitais são os geradores do excedente que são capazes de colher, segundo as suas próprias possibilidades e as regras da competição mercantil. As funções que os diversos tipos de capitais exercem no interior da totalidade do capital são diversas, mas em princípio são todas elas necessárias para que o sistema de extração de mais – valia funcione adequadamente e para que a acumulação prospere da melhor forma possível. Trata-se sempre de uma crítica superficial, portanto, pensar que certos capitais têm –e que outros não têm –legitimidade na apropriação de excedente com base em critérios de ordem funcional ou mesmo moral.
As formas concretas que o capital assume –e precisa assumir –em seu movimento contraditório, desabalado e tropeçante de expansão são variadas. Marx examinara no livro segundo de O Capital os movimentos do capital – mercadoria e do capital monetário enquanto componentes do processo de reprodução simples e ampliada do capital industrial; agora, no livro terceiro, ele analisa os movimentos específicos e os desenvolvimentos formais do capital em geral na esfera da circulação. Nesse domínio, como explica, uma parte do capital se encontra sempre na forma de mercadoria que quer se transformar em dinheiro, enquanto que outra parte se encontra na forma de dinheiro que quer passar à forma mercadoria. E essas incessantes metamorfoses formais – ressalta – são inerentes ao capital enquanto tal já que ele só existe em perene movimento de vir a ser mercadoria ou dinheiro (Marx, 1983C, p. 203). Ora, por força e necessidade da própria circulação e com base na própria natureza desses movimentos circulatórios configuram-se certos domínios funcionais na economia capitalista. Os capitais que atuam nesses domínios se diferenciam e se especializam. Por um lado, tem-se assim o capital de comércio de mercadoria e, por outro, tem-se também o capital de comércio de dinheiro. O primeiro abraça a compra e venda de mercadorias comuns; o segundo abrange a compra e venda de dinheiro.
Comércio de mercadorias e comércio de dinheiro são atividades que emergem, de início, como complementares às dos capitais industriais já que são necessárias para que eles se realizem enquanto tal. Mas no curso do processo de especialização, elas também se autonomizam em relação a eles, até certo ponto. Não deixam, entretanto, de serem e de se comportarem como partes interagentes,ativas e reativas, do capital social total. Marx é explícito nessa questão: “Por um lado, as funções enquanto capital – mercadoria e capital monetário (determinado, portanto, mais amplamente como capital comercial) são determinações formais gerais do capital industrial. Por outro lado, capitais específicos, portanto, séries específicas de capitalistas, atuam com exclusividade nessas funções; e, assim, essas funções tornam-se esferas específicas da valorização do capital” (Marx, 1983C, p. 226). O capital comercial em geral, enquanto capital atuante estritamente na compra e na venda de mercadorias, “não produz valor nem mais-valia”, mas “medeia sua realização”, isto é, faz com que as mercadorias em geral passem de umas mãos para outras, mediando o metabolismo social (Marx, 1983C, p. 213).
No curso do desenvolvimento do modo de produção capitalista, as operações que o dinheiro realiza no processo de circulação do capital industrial e do capital comercial em sentido estrito passam a ser executadas por capitais específicos, os quais se especializam no trato do dinheiro. As relações que esses capitais típicos estabelecem entre si no curso da acumulação não podem ser compreendidas senão por meio da categoria de ação recíproca; eles interagem entre si na execução de suas funções específicas, mantendo certa autonomia e, ao mesmo tempo, integrando-se numa totalidade. É, pois, assim que Marx apresenta o surgimento categorial do capital monetário autônomo em O Capital: “Do capital global se separa agora e se autonomiza determinada parte em forma de capital monetário, cuja função capitalista consiste exclusivamente em executar para toda classe dos capitalistas industriais e comerciais essas operações” (Marx, 1983C, p. 237). Essas formas autônomas –voltadas para as operações de guarda, câmbio, cobrança, etc. –decorrem das diferentes funções do dinheiro na circulação de capitais, derivando-se da atuação do dinheiro como meio de circulação, meio de entesouramento e meio de pagamento.
O capital que se autonomiza nessa espécie de comércio não apenas manipula dinheiro, mas opera também –o que o completa funcionalmente–no fornecimento de crédito. Os capitais que comerciam dinheiro são usualmente remunerados pelos serviços prestados aos agentes econômicos em geral; conforme atuam nas operações de empréstimos, tornam-se capitais portadores de juros. O dinheiro como capital, quando aplicado na produção de mercadorias, transforma-se de valor estático em valor que se valoriza, pois permite que se extraia dos trabalhadores aí empregados trabalho gratuito, ou seja, mais-valia. Marx explica que o dinheiro usado desse modo ganha um valor de uso adicional, qual seja ele, a capacidade de funcionar como capital e de gerar uma renda específica. Na forma de “capital possível, de meio para a produção de lucro” configura-se como mercadoria sui generis. Então, “o capital enquanto capital se torna mercadoria” (Marx, 1983C, p. 255). A renda específica que o alimenta e engorda destaca-se como juro, ou seja, uma promessa de ganho futuro que, em princípio, virá ao bolso daquele que empresta dinheiro ao capitalista industrial como parte do lucro obtido por este último.
Marx trata inicialmente do capital portador de juros como capital emprestado pelo seu possuidor – um particular, um banco –ao capitalista efetivamente empenhado na produção e na circulação de mercadorias. Tal como faz em geral, este percorre também o movimento característico do capital, pois, depois de se empenhar em algum negócio, volta sempre ao ponto de partida, não no mesmo montante aplicado, mas acrescido de mais-valor. Ora, aqui surge uma especificidade, pois o capital portador de juros executa esse movimento de modo externo ao efetivo processo de valorização, “separado do movimento real de que é forma”. Enquanto este último ocorre de fato no circuito D –M –D’, o capital de empréstimo percorre apenas o circuito D –D’ –que é “apenas a forma irracional do movimento real do capital” (Marx, 1983C, p. 262). Ora, apresentando-se assim de modo abreviado, um enigma é engendrado e ele é posto pela própria sociabilidade capitalista. Afinal, como explicar que o dinheiro emprestado pareça gerar, por si mesmo, mais dinheiro?
Ora, esse enigma se afigura ainda mais intrincado porque, enquanto capital de empréstimo, o capital portador de juros opera em outras esferas que não propriamente aquela da produção de mercadorias. O dinheiro é emprestado para as empresas em geral, produtivas e não produtivas, para o Estado e para as famílias burguesas e trabalhadoras em geral. E, em todos esses casos, o dinheiro emprestado tem de ir, percorrer o seu circuito, para voltar como dinheiro acrescido. Chega-se a um primeiro esclarecimento quando se descobre certos canais por meio dos quais o capital de empréstimo se apropria direta ou indiretamente da mais-valia gerada na esfera do capital industrial. Mas, isto não é tudo. Para penetrar ainda mais na dificuldade de compreensão inerente à sociabilidade capitalista, é preciso considerar que o capital na esfera da circulação goza de certa autonomia. Pois, a expansão do capital de empréstimos, que é necessária para alimentar e impulsionar as atividades econômicas em geral, não depende apenas da mais-valia previamente colhida, da acumulação passada; ela depende também–e talvez até mais fortemente – da criação de crédito pelo sistema bancário, crédito este que parece surgir do nada, mas que surge de fato da fidúcia no futuro dos negócios.Em consequência, o capital de empréstimo pode ser remuneração pela própria expansão do crédito. Como se sabe, por outro lado, a expansão do crédito sob diversas formas (depósitos, promissórias, etc.) pode induzir, na esfera da produção de mercadorias, a geração da “poupança” que dá suporte ao investimento.
O problema ganha uma nova dimensão quando se descobre que, na economia capitalista enquanto tal, uma mera figuração de capital ganha importância na própria realidade, participando do movimento de acumulação como um componente intrínseco e perfeitamente legítimo. Eis que o capital portador de juros não se configura geralmente como mercadoria ou mesmo como dinheiro-mercadoria, mas se apresenta como capital fictício –uma representação de capital que não se afirma como um valor acumulado no passado, mas que vem a ser meramente valor presente, capitalização de um fluxo de rendimentos futuros possíveis. Note-se, de início, que Marx trata essa forma de capital como capital que apenas se consolida como tal na circulação: “o capital existe como capital, em seu movimento real, não no processo de circulação, mas somente no processo de produção, no processo de exploração da força de trabalho” (Marx, 1983C, p. 258). Logo, o capital que existe abundantemente apenas na circulação, ainda que esteja forte ou fracamente articulado com ele, não pode ser verdadeiramente capital produtor de mais-valia; configura-se, isto sim, como uma ficção realmente existente, como capital fictício propriamente dito, o qual se acumula nessa esfera de modo relativamente autônomo, sob a crença de que é o que verdadeiramente não é, qual seja, capital que comanda a geração de mais-valia.
Ademais, quando se considera a enorme complexidade da economia capitalista plenamente desenvolvida, pode-se notar que há muitas formas de capital portador de juros além daquela que se configura como capital de empréstimo em dinheiro; além de dinheiro propriamente, funcionam desse modo os meios de produção de aluguel, os bens de acesso, as ações, os títulos privados e públicos, enfim, todos os instrumentos financeiros usualmente denominados de derivativos. Todas elas, entretanto, são necessárias e funcionais em princípio para o “bom” desempenho da economia capitalista, ainda que esse “bom” não exclua as contradições e as crises que lhe são inerentes.
Deve-se notar que a acumulação de capital financeiro –tomando este em sua máxima amplitude – não se encontra em proporção simples e direta com a acumulação de capital industrial –tomada também no mesmo sentido; pois, subsiste sempre a possibilidade e mesmo a necessidade temporária de que a primeira se descole da segunda e que se expanda, por exemplo, no curso de uma ascensão cíclica, por meio de um movimento especulativo que se afigura desmedido. Verifica-se, pois, que há sempre um balanceamento problemático e instável entre aquela parte do capital financeiro que se transforma em capital-mercadoria e o montante de mais-valia que é capturada na esfera financeira. Em consequência do desequilíbrio entre esses fluxos entre as esferas da circulação e da produção, a valorização na esfera financeira pode se mostrar em certos momentos uma miragem; porém, enquanto a perspectiva de retorno financeiro não esmorece, ela colabora efetivamente com a acumulação real. A tese de que o capital financeiro punciona a mais-valia gerada pelo capital industrial é correta, ainda que bem unilateral; ele também fornece certos meios formais necessários para a sua expansão.
De todo modo, portanto, não se pode encarar o capital financeiro como meramente oposto ao conjunto do capital industrial e do capital comercial, ou seja, do capital que funciona na produção e na comercialização das mercadorias. Pois, segundo Marx, se eles se enfrentam entre si no processo da concorrência, ou seja, na luta pela lucratividade, como soe acontecer com os capitais em geral, formam também uma totalidade. A financeirização, porém, consiste antes numa mudança global no modo de competição dos capitais do que uma mudança na relação de poder entre o capital financeiro e o capital industrial.