Mas, o que desejamos apresentar, no particular das relações interétnicas é o relacionamento negro/branco e toda a problemática emergente em função da forma como a escravidão se estruturou e dinamizou e como foi conduzido o processo abolicionista. Isto é, o dilema racial brasileiro a partir das contradições que surgiram deste processo na sua conotação política.

Porque Florestan Fernandes sempre teve uma visão política do problema, visão que vai se radicalizando progressivamente até os seus últimos pronunciamentos que antecedem à sua morte. É sobre estes aspectos tão importantes e muitas vezes até dramáticos da sua obra e da sua atuação, que pretendemos tecer algumas sumárias considerações. A dimensão política da sua atuação no particular. se de um lado, era aquela que o atraía mais substancialmente, de outro é a que foi menos analisada – e por que não dizê-lo? – corajosamente.

A preocupação de Florestan Fernandes com o problema do negro e da escravidão, a passagem traumatizante do ex-escravo para a condição de homem livre e de cidadão surge quando Florestan Fernandes inicia sua pesquisa com Roger Bastide sobre relações entre brancos e negros em São Paulo. Isto em 1951. Aí já se percebe a preocupação do cientista social com o problema, preocupação que irá se ampliando progressivamente.

Esta preocupação de Florestan Fernandes com a dimensão política para o problema étnico, especialmente as relações negro e branco é que o coloca num nível radical na solução do mesmo. Ele não aceitava as teses tradicionais segundo as quais a solução desse problema estava embutido apenas no problema das classes sociais. Acreditava que o problema era mais abrangente, complexo e profundo.

Ele não via o problema do negro como simples tema acadêmico, mas compreendia-o como um dilema nacional e para o qual as soluções apresentadas até agora eram retóricas e irrelevantes, quando não desconversa deliberada, apoiada em uma ideologia racista subjacente. Esta é a diferença radical de Florestan Fernandes e os demais cientistas sociais que se ocuparam do tema: ele não via o problema do negro “de fora”, mas nele se integrava, dele participava. Essa ligação orgânica entre o cientista e o homem levava-o a procurar a solução política para o problema e nela interferir numa práxis de totalidade entre o cientista, o homem com a sua sensibilidade e o político com suas ferramentas de ação.

Ele não via o problema do negro como um tema acadêmico, mas compreendia-o como um sério dilema nacional

Florestan Fernandes transcende, portanto, os limites do saber universitário. Ele acha que o seu pensamento tem uma função política além do circuito acadêmico, projetando-se no conjunto da sociedade civil, procurando nela influir. E seu pólo de ação é a questão racial, a situação do negro e os problemas raciais que enfrentamos. Vê no negro a concentração de toda a problemática do Brasil, a “pedra de toque da revolução democrática na sociedade brasileira” (1).

E vai além. Diz que “a democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça. Por isso, a luta de classes, para o negro, deve caminhar juntamente com a luta racial propriamente dita. O negro deve participar ativa e intensamente do movimento operário e sindical, dos partidos políticos operários, radicais e revolucionários, mas levando para eles as exigências específicas mais profundas da sua condição de oprimido maior. Ao mesmo tempo o negro deve ter a consciência clara de que sua emancipação coletiva põe o problema da democracia e de uma República democrática sem subterfúgios: a revolução dentro da ordem é insuficiente para eliminar as iniqüidades, educacionais, culturais, políticas etc, que afetam os estratos negros e mestiços da população. Mesmo quando o negro não sabe o que é socialismo, a luta por sua liberdade e igualdade possui uma significação socialista. (Grifo de Florestan Fernandes) Daí ser ele uma vanguarda natural entre os oprimidos, os humildes, os explorados, enfim, o elemento de ponta daqueles que lutam por “um Brasil melhor” ou por uma “sociedade justa” (2).

Aqui o discurso de Florestan Fernandes já não é mais do sociólogo interessado em um assunto ou no desenvolvimento de um estudo acadêmico. Ele é substituído pelo político, pela militância orientadora daquele segmento oprimido e discriminado na sociedade racista do Brasil.

Para Florestan, ninguém mais do que o negro deveria ter seus direitos preservados de forma diferenciada na Constituição

Isso leva-o a ingressar em um partido político que possa corresponder aos anseios reivindicantes de justiça social e racial que ele desejava ver postos em prática. E é sobre o seu partido que ele volta o olho crítico ao dizer:

“o PT precisa avançar muito para acompanhar o processo de luta que emerge por dentro e através desses estratos da população. Porque nesta esfera não basta apontar para o caráter emancipador do socialismo proletário. É preciso que o socialismo proletário venha embebido de um impulso radical profundo que ultrapasse a libertação coletiva da classe trabalhadora e destrua, até o fim e até o fundo, a opressão racial” (3).

Como vemos, ao fazer a opção para militar como político no Partido dos Trabalhadores, Florestan Fernandes já vê a possibilidade de uma defasagem entre o discurso socialista do partido e a necessidade de complementá-lo através de uma radicalidade que incluiria o problema racial como solução socialista. Esta visão radical do problema no bojo de uma solução socialista parece que aumenta progressivamente no conjunto de seu pensamento. Florestan Fernandes visualizava corretamente a necessidade de uma teoria que fosse não apenas a explicação dessa dinâmica, mas ela mesma, fosse uma ferramenta desta dinâmica. Ou seja: o pensamento elaborado na universidade e o pensamento militante. É em função de ter compreendido esta necessidade política (e teórica) que escreve:

“Não se entendeu que a explicação sociológica objetiva, crítica e militante soldava dois momentos do próprio protesto negro e que nós não tínhamos outro papel senão esse de servir de ponte entre as gerações que desencadearam• o primeiro protesto negro e os que, no presente, as bandeiras da liberdade maior no ‘meio negro’. Hoje o próprio negro prescinde do elo que foi necessário há três décadas. Nem por isso havia um ‘paternalismo’ antes ou uma ambigüidade hoje. Tivemos a coragem de nos solidarizar com a rebelião que não foi entendida e correspondida pela sociedade global” (4).

Florestan Fernandes elabora uma teoria e uma práxis para a ação política. E é nesta prática política, através de um partido, o Partido dos Trabalhadores e de um mandato parlamentar que conclui sua visão do mundo e testa o seu pensamento no dia a dia.

Isto vai acontecer justamente quando Florestan Fernandes vê-se investido de um mandato de constituinte. É quando ele vai testar o valor da sua teoria e a viabilidade da sua aplicação no macrocosmo político. E, também, quando ele vai testar o grau de resistência, de oposição e também de incompreensão ao seu pensamento. Tudo aquilo que ele constatou empiricamente e elaborou teoricamente era agora testado na e pela sociedade global.

Florestan Fernandes achou que na sua compreensão havia de ter um capítulo sobre o negro na Constituição. Mostrou com argumentos que ninguém mais do que ele (o negro) devia ter os seus direitos preservados de forma diferenciada na nova Constituição. E redigiu um texto que é obra serena de um pensador maduro e coerente às necessidades de seu tempo (5).

Emenda Constitucional
(Título VIII, Da ordem social, Capítulo IX, Dos negros)

Art… São compreendidos como negros os indivíduos e cidadãos que se consideram como tal e os que, por estigmatização, são tratados “como negros” e “pessoas de cor”.

1° Portadores de uma herança cultural rica e variável, vêm-se privados de seus padrões, instituições e valores sociais por pressão fragmentadora do ambiente. É direito dos negros e dever do Estado proteger essa vasta herança cultural em seu sentido e em sua função diferenciadora das comunidades negras.

2° Eles são proprietários de faixas descontínuas de terra, com frequência incorporadas às “fronteiras em expansão”, expropriadas por vizinhos ricos e poderosos. Os governos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios procederão a um esforço convergente para garantir suas posses territoriais e a exploração de suas riquezas.

3° Como os mais desiguais em convívio direto com os brancos e populações ricas, são lançadas à marginalidade, excluídos do mercado de trabalho sem condições competitivas e bloqueados em suas tentativas de ascensão social e conquista de cidadania. Os governos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios desenvolverão planos ostensivos para conferir às populações negras meios para corrigir essa situação intolerável e, especialmente, para difundir entre si a cidadania ativa.

4° As famílias negras e seus membros enfrentam dificuldades econômicas, culturais e políticas arraigadas para organizar-se em bases institucionais estáveis de modo a proteger os homens, as mulheres e os menores da privação econômica, do desemprego, da pobreza, do alcoolismo, do crime, da mendicância e de outros efeitos desintegradores determinados pelo racismo. Serão feitos esforços especiais para sanar esses problemas e dilemas sociais através de instituições dotadas de recursos humanos e de meios financeiros que sanem tais entraves à humanização da pessoa.

5° A escravidão e a subalternização extrema do “liberto” encontraram no preconceito racial a racionalização para justificar sua existência e “necessidade” em um país católico. A exclusão do trabalho livre, variável conforme as regiões do país, o aproveitamento da força de trabalho negra como mão-de-obra barata ou sua exclusão predominante do mercado de trabalho reforçaram as manifestações do “preconceito da cor”, da estigmatização e da discriminação raciais. O negro é excluído porque não estaria preparado como “trabalhador livre”; e não se converte em trabalhador livre, porque lhe são negadas as condições de aprendizagem e de socialização. O Poder Público intervirá crescentemente nessa esfera, para acabar com o paradoxo.

6° A oferta de ensino público gratuito não é suficiente para integrar e reter estratos da população negra nas escolas. O Poder Público corrigirá essa contradição oferecendo às crianças, aos jovens e adultos negros oportunidades escolares persistentes e em constante aumento através de bolsas escolares, destinadas à manutenção pessoal dos estudantes enquanto durar sua escolarização (Cf art. 213).

7° O Poder Público procurou, primeiro através da “Lei Afonso Arinos” e, depois, através do art. 5°, XLII, e da Lei n. 7.716, resolver os problemas do negro como uma forma de racismo. É importante caracterizar as manifestações de “preconceito de cor”, de estigmatização e discriminação raciais nesses termos e puni-las como “crime inafiançável”. No entanto, a realidade transcende esses limites. O branco precisa tomar consciência de seu comportamento preconceituoso e o negro necessita aprender que não pode eximir-se individualmente dos efeitos nocivos do tipo de racismo existente. O mais importante, porém, é que devem partir da verdade para coexistir fraternalmente como cidadãos de uma sociedade multirracial. A contribuição da escola e das instituições-chave serão manejadas pelo Poder Público nessa direção. O negro não é somente “igual perante a Lei”. Ele ocupa uma situação desfavorabilíssima que precisa ser corrigida pela educação democrática, pelo convívio com cidadãos da mesma sociedade civil e do mesmo Estado.

8° O negro destaca-se por sua herança cultural (folclore, religião, canto, música, danças, línguas etc) e por acontecimentos históricos nos quais teve participação notável. Esses aspectos devem ser salientados pelo Poder Público, principalmente nas cerimônias públicas, nos livros didáticos especiais e na evocação das grandes personalidades negras, de Zumbi a Machado de Assis ou Cruz e Souza. O mesmo ocorre no êxito ímpar do negro em diversas atividades, altamente valorizadas pela comunicação de massa e pelos padrões de gosto predominantes. Assim, o Poder Público enaltecerá as personalidades negras que colheram êxitos especiais nos campos das artes e das atividades cívicas para alcançar um efeito de educação multiplicativo: a consciência da igualdade dos cidadãos e do êxito do negro quando conta com a liberdade de usar o seu talento.

Ou liberamos o negro por todos os meios possíveis ou persistiremos escravos de um passado nefando que encurrala o presente

Justificativa: Há tempo o negro deveria contar com capítulo especial na Constituição da República Federativa do Brasil. Não só por sua contribuição ao nosso desenvolvimento humano, cultural e histórico, mas especificamente pelo que simboliza a Lei do Ventre Livre como uma espoliação final.
Se quisermos possuir uma República democrática temos de atribuir ao negro, como indivíduo e coletividade, um estatuto democrático. O negro tornou-se o teste número um da existência da universidade e da consciência de democracia no Brasil.

Ele é um experimento crucis (experimento crucial). A liberdade, a eqüidade e fraternidade do negro nas suas relações com indivíduos pertencentes a nacionalidades transplantadas por imigrações e as outras raças e etnias redimem o nosso ser histórico do peso da negação e da destruição de raças negras portadoras de civilizações que enriqueceram para sempre o nosso patrimônio cultural. Além disso, graças a essas civilizações, o negro não se envolveu na formação do Brasil, somente como “escravo”, “liberto”, e “ingênuo”. Rasgou um painel que colocou a liberdade em primeiro plano, graças a heróis como Zumbi ou Henrique Dias.

Como assinalar, sobre toda e qualquer outra reflexão: os que foram lançados nos patamares mais inferiorizados da sociedade democrática são os que precisam e merecem um suporte ativo à sua formação humana psicossocial, cultural e política; Não se trata de um “protecionismo especioso”. Mas de corrigir uma injustiça que desgraça as pessoas e as comunidades negras. Para nivelá-los aos brancos, é imperativo conceder-lhes uma espécie de suplementação da condição humana e da posição social. Só assim as elites das classes dominantes se desobrigarão de um crime histórico que sobrecarrega e degrada a consciência crítica dos cidadãos bem formados e emancipa o Estado de sua intervenção nas páginas mais negativas de nossa perspectiva de Nação emergente. Ou liberamos o negro por todos os meios possíveis ou persistiremos escravos de um passado nefando que encurrala o presente e o futuro a uma objeção singular”.

O seu próprio partido não o entende ou não o entende por inteiro ou não concordou por divergir. Ele reage, resiste, firme no seu propósito. Até que envia ao líder do seu partido na Constituinte a seguinte carta:

“Carta à Liderança do PT
Brasília, 14 de dezembro de 1993

Exmo. Sr.
Deputado José Fortunati
DD. Líder da Bancada do PT na Câmara dos Deputados
Em mãos

Senhor Líder,
Como havia afirmado de público, na Bancada do PT, encarei uma das emendas em termos de “objeção de consciência”. Comprometi-me, também, a “apresentar a V. Ex’ as razões de minha posição, cuja gravidade avalio devidamente e cujas conseqüências estou firmemente decidido a enfrentar perante V. Exa, a Bancada, a Comissão Nacional Executiva e o Diretório Nacional. Devo esclarecer que não tomei uma atitude de rebelião, Duas razões indicam a natureza dos vínculos que me prendem ao Movimento Negro. Primeiro, em colaboração com o Professor Roger Bastide (1941 e 1951), e individualmente realizei pesquisas e levantamentos sobre os negros em São Paulo e na formação e desenvolvimento da escravidão no Brasil. Escrevi, pela primeira vez, três artigos sobre “O Negro na Tradição Oral”. Concebi e redigi o projeto de pesquisa sobre negros e brancos em São Paulo, que serviu de guia à investigação que elaborei em colaboração com Roger Bastide (1951). Suplementei e fiz uma sondagem sobre a imprensa negra em São Paulo (1954). Desse conjunto de sondagens resultaram os livros Negros e brancos em São Paulo (3 edições com Roger Bastide) e, por acordo mútuo, o livre uso dos materiais (A integração do negro na sociedade de classes, 2 volumes, tese de concurso de cátedra, publicada em 1964 e em edição posterior), O negro no mundo dos brancos (1972), Circuito fechado (São Paulo, 1977 – a metade do livro sobre A Sociedade Escravista e um balanço sobre a situação do negro 25 anos depois da pesquisa de 1951) e Significado do protesto negro (São Paulo, 1989), interpretações da luta do negro por sua expansão e evolução na sociedade escravista no Brasil. É óbvio que essa parte da minha bibliografia traduz a existência de vínculos com o dilema racial do negro que me obrigam a tentar transmitir aspirações aos companheiros do PT e do Movimento Negro, que nos obrigam a avançar junto com o PT no debate dos problemas raciais.
A segunda razão é mais complexa. O PT e outros partidos unem os “de baixo” ou os “condenados da terra” em um amplo movimento vertical de rebeldia coletiva. A Constituição de 1988 deu espaço ao companheiro Caó para incluir a criminalização do racismo entre seus temas vitais. Ficou ausente algo semelhante ao capítulo VII (Dos Índios) a respeito Dos Negros (como capítulo VIII). Como os radicais de 1968 na Europa, nos Estados Unidos e em outros lugares do mundo colocou-se o desafio do “objetor de consciência” (quanto à guerra do Vietnã. à emancipação das minorias nacionais, étnicas e raciais, da liberdade da luta dos jovens e dos radicais )na construção de uma sociedade democrática autêntica. Apesar das atitudes dos conservadores e dos “cidadãos responsáveis” esse movimento de insurreição histórica ajudou a subjugar a guerra do Vietnã e a erguer um mundo de maior liberdade durante e depois da Segunda Guerra Mundial. O ocaso a que foi condenado não impediu que o mundo se transformasse e que a consciência social crítica se divulgasse globalmente. As minhas análises sobre o negro no Brasil- antes dessa rebeldia – prendiam-se à intenção de incentivar a auto-emancipação de negros e mulatos de uma servidão invisível que se prolongou até os nossos dias.

Sua posição radical levou-o a realizar a parte mais importante de sua produção acadêmica, que deixava implícita sua posição militante

Como socialista, como militante de movimentos de protesto social, como sociólogo e professor, coloquei-me na vanguarda dos que combatiam pelo protesto negro. A “questão do negro” não é, apenas, uma “questão social”. Ela é simultaneamente racial e social.
Além disso, é a pior herança da sociedade de castas e estamentos. Ela trouxe para o presente todas as formas de repressão e opressão existentes em nosso país. É o teste à existência da democracia no Brasil. Enquanto não houver liberdade com igualdade do elemento negro, a idéia de uma “democracia racial” representa um mito arraigado entre os brancos, ricos ou pobres. Por isso, devemos repelir esse tipo de racismo, que indica objetivamente que formamos uma sociedade hipócrita e autocrática.
Sinto vergonha dessa realidade e penso ser meu dever lutar contra ela com todo o vigor. A democracia não pode excluir “os de baixo” e, especialmente, preservar a “vergonha de ter preconceito”, mantendo-se e reproduzindo-o dissimuladamente. Prefiro participar da fraternidade dos companheiros negros e combater por uma democracia plena, na qual a liberdade com a igualdade seja válida como objetivo universal.
Agradeço a atenção que me foi dispensada e aguardo da Bancada do PT apoio para a emenda.
Cordialmente,
Deputado Florestan Fernandes” (6).

A contradição entre o pensamento acadêmico e uma práxis revolucionária, como queria Florestan
Fernandes, isto é, a prática para a implantação daquilo que ele chamava de “socialismo proletário” nunca foi totalmente resolvida. Este é o problema de reflexão política que devemos fazer da produção acadêmica de Florestan Fernandes e sua atividade de socialista proletário. Não sabemos se há uma contradição que se possa harmonizar, ou um dilema que não se possa superar. Mas, por outro lado, a posição radical de Florestan Fernandes em relação ao problema do negro encaminhou-o no sentido de realizar a mais importante parte da sua produção acadêmica. Parece que o discurso acadêmico deixava implícito o discurso do militante, embora em outro nível de conhecimento. Mas, de qualquer maneira esse discurso acadêmico era insuficiente para a sua prática de político radical. A radicalidade exige uma postura sem alternativas conciliadoras ou oportunistas, porque enfrenta o problema do conhecimento a partir das suas raízes. E foi o que procurou fazer Florestan Fernandes em todo o tempo da sua vida. Mas, à medida que ele verticaliza sua prática política – radicalizando-a – ele vai sentindo a insuficiência da produção universitária para a atuação prática do cotidiano político.

E podemos ver como isso vai se manifestando através de certas posturas angustiadas em relação ao pensamento político tradicional no Brasil e do comportamento do mundo acadêmico diante desse macrocosmo político. E assim, Florestan Fernandes vai se aproximando cada vez mais do pensamento elaborado pela própria militância negra. A última vez que estivemos juntos foi em um seminário em Salvador, organizado pela Universidade Federal da Bahia sobre o pensamento e a ação política de Carlos Marighella. E ele me transmitia particularmente a sua insuficiência de conhecimento porque não havia participado das guerrilhas. Esse esforço de conhecer na práxis, na ação política era em Florestan Fernandes uma preocupação permanente. A sua aproximação com o Movimento Negro era, por isto, uma prática da teoria da revolução brasileira como ele a via, mais profunda porque incluía a solução do problema racial. A sua declaração feita no Tribunal Popular Zumbi dos Palmares em 12 de maio de 1995 resume o seu pensamento final:

“Apesar de tão distanciadas no tempo histórico, não se pode separar as duas formas de luta: a dos escravos de ontem e a dos explorados de hoje. Todos os que sofrem preconceitos, discriminação e exclusão – como se fossem párias ou não – compartilham da necessidade de transformar a sociedade seja através da violência, seja lançando mão da contraviolência.

Zumbi dos Palmares colocou-se acima das vítimas da opressão. Escolheu a guerrilha como o penoso caminho para conquistar e manter a liberdade e tornou-se um símbolo: o do escravo que se auto-emancipa sob uma sociedade colonial escravocrata e enfrenta todos os ódios e perversões de elites privilegiadas e pseudo-jurídica montada sobre um princípio do Direito Romano – servus persona non habet. Demonstraram, assim, que a pessoa do escravo ficava embutida na condição de coisa que, unidos entre si, os escravos possuíam tanto força social quanto inteligência e capacidade política. Por isso, sua solidariedade e vontade derrotaram o poderio dos senhores e da ordem colonial.

Essa foi a razão que conduziu muitos outros oprimidos a recorrer a levantes corajosos e indomáveis. E fez com que exemplos de Palmares ainda. paire como ameaça à tirania e à autocracia sustentadas pelos donos do poder.

Não ceder, nem se acomodar. Não servir de vítima dócil à sanha dos algozes! Aí está o segredo de uma vitória – então inconcebível – e da atração que ela exerce até hoje entre os de baixo.
A luta aberta e persistente representa a única via para quebrar a resistência dos de cima e suas máquinas governamentais de opressão social. Sobrepujar os desafios dos riscos inevitáveis para extirpar os medos que impedem que os humildes se tornem agentes da própria história e artífices de uma sociedade fundada na liberdade e na igualdade” (7).

Aqui não encontramos quase nada do acadêmico, do teórico ou do adepto de rigorismos metodológicos. Encontramos o discurso do político que quer convencer.
Convencer os outros da sua posição revolucionária não mais pregada da cátedra, mas no corpo-a-corpo da política proletária, negra e socialista.

Florestan Fernandes é um marco na trajetória dos acadêmicos que querem fazer política, sempre coerentes com seus princípios, preocupados com as populações etnicamente discriminadas, especialmente o negro. Florestan Fernandes jamais usou o seu saber para defender os privilegiados, os corruptos, os mistificadores. Num momento em que tantas máscaras estão caindo, o exemplo de Florestan Fernandes é dignificante pela coragem e coerência, mas, acima de tudo nesses tempos de inversão de valores, pela sua honestidade intelectual.

* Clóvis Moura é sociólogo e escritor.
Comunicação apresentada no Seminário “Presença de Florestan Fernandes”, realizado na Unicamp (Campinas), em maio de 1996.

Notas
1) FERNANDES, F. Significado do protesto negro. São Paulo, Cortez, 1989, p. 24.
3) Idem, ibidem, p. 24.
4) Idem, ibidem, p. 24.
5) Idem, ibidem, p. 109.
6) FERNANDES, F. Consciência negra e transformação da realidade. Câmara dos Deputados, Brasília, 1994.
7) Idem, ibidem.
8) FERNANDES, F. Intervenção no Tribunal Popular Zumbi dos Pa1mares, São Paulo, 12-05-1995. Depoimento enviado pelo autor por não poder comparecer.

EDIÇÃO 50, AGO/SET/OUT, 1998, PÁGINAS 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83