Estamos prestes a viver um mês discutindo, pensando e sentindo aquela que ainda parece ser a grande e verdadeira “paixão nacional”. A seleção brasileira, desacreditada até um ano atrás, conheceu, com a nova “era Felipão”, uma ascensão que reacendeu nos corações mais impassíveis a esperança de conquista do inédito hexacampeonato mundial. Essa viravolta, no fundo, reconcilia o Brasil com a velha impossibilidade de chutar o futebol para escanteio na nossa pauta cultural, pois ele traduz simbolicamente certos impulsos próprios da civilização à brasileira, a despeito da lógica de capitalismo vampiresco praticado pela FIFA.

O poeta e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, de modo precursor, apontou a peculiaridade da participação brasileira no universal do futebol. Em um artigo belíssimo, entre a ironia e a gravidade analítica, Pasolini trata do calcio como uma linguagem, ou seja, como um sistema de signos capaz de traduzir alguma verdade bruta a respeito de uma determinada coletividade. O texto foi traduzido há algum tempo para o português brasileiro por Maurício Santana Dias(1) , sendo também um dos gatilhos da bela e malemolente argumentação de José Miguel Wisnik em seu Veneno remédio – o futebol e o Brasil (Cia das Letras, 2008).

Sob o impacto da derrota da azzurra para o Brasil na final da Copa de 1970, Pasolini argumenta que no futebol se reconhece uma ordem discursiva que pode ser “interpretada” a partir de categorias emprestadas à linguagem literária. Como qualquer linguagem, o futebol possuiria, para Pasolini, momentos puramente instrumentais e puramente expressivos. Portanto, sob essa ótica, existiria um futebol fundamentalmente prosaico e um fundamentalmente poético. Tendo em vista a atualidade histórica de cada nação, alguns países possuiriam um futebol mais prosaico (em prosa realista ou estetizante – este o caso da Itália) ou mais poético (este o caso do Brasil). Dentro do próprio jogo, para Pasolini, há momentos que são mais poéticos, tais como o gol, que é pura fulguração, e o drible, que aproxima o gesto humano do sublime. Como aqueles que sabem melhor fruir esses momentos, os brasileiros seriam os mais poéticos jogadores do mundo. Pasolini afirma ainda que o momento poético do jogo é o momento individual, enquanto a sua prosa seria a articulação coletiva, expressa na geometria dos esquemas táticos. Assim, no futebol de prosa, o gol é como a conclusão de um texto realisticamente planejado, fruto de uma teia coletiva de relações. O futebol de poesia, por sua vez, aposta na invenção individual, de tal forma que o gol não seria uma conclusão, mas o achado de um craque. 

Tudo isso, vale lembrar, não é apenas caso de semiótica, mas estava articulado por Pasolini a uma grande e densa crítica do capitalismo, que foi ânima de toda a sua obra. A questão está, pois, na explicitação de que o futebol está aberto a algo que resiste à completa racionalidade e que nós brasileiros sabemos muito bem tirar proveito disso. Por um lado, essa nossa inapetência crônica para a racionalização impessoal é nociva, pois a democracia verdadeira, por exemplo, exige esquemas racionalizantes, capazes de colocar os interesses coletivos acima do puro individualismo liberal. Por outro lado, o que é impossível de ser racionalizado também se impõe como outra dimensão de eficiência e de eficácia, quem sabe menos alienadas da essência criativa do ser humano. Aí, acreditam alguns, há a possibilidade de participação vital do Brasil no “concerto das nações”, com sua acumulação de contradições própria ao capitalismo periférico. Como nação inadaptada aos esquemas prosaicos de racionalização civilizatória, ao país só restaria a possibilidade do sucesso pelo achado criativo, não planificado, não organizado; ou seja, poético e não prosaico. É este nosso destino inelutável?

É claro da década de 1970 para cá não só o futebol, mas o mundo e a linguagem mudaram muito. O cenário do espetáculo tornou mercadoria racionalizada as mais legítimas expressões da criatividade humana, incluindo a gramática própria do futebol. Nessa nova etapa do capital, vimos emergir craques “prosaicos” como Messi e Cristiano Ronaldo. Ambos exibem uma figura de cyborg capaz de atingir alto rendimento por meio de uma sintaxe futebolísitca brutal, violenta e prosaica. Há neles uma encarnação esportiva da tecnocracia brilhante do mundo do espetáculo. Na contramão dessa racionalização frenética, nós brasileiros queremos crer que está Neymar, um jovem de aparência frágil, mas que como ninguém encarna alguns dos nossos velhos anseios nacionais acerca do futebol e da nossa participação cultural no planeta. Em alguma medida, a “poesia” do estilo de Neymar é um espetáculo anti-espetacular, porque vive do imprevisível, do irracional, do dionisíaco, do contraproducente. A fórmula de sua eficiência futebolística, não apenas inclui a gratuidade e o esteticismo, mas depende deles. A contradição misteriosa é que talvez nenhum outro jogador atual esteja mais integrado do que Neymar à autopromoção como pura mercadoria, como pura imagem espetacular. A história de cuidados com a carreira do ex-jogador do Santos, figuração contemporânea de Pelé e Garrincha, é pode também ser lida como uma condensação narrativa da modernização do Brasil no século XXI.

Mas o futebol e o Brasil não são “para principiantes”. Mais do que isso, confrontá-los assim arbitrariamente pode ser a queda em um poço improdutivo de contradições sem conflito. Dizia o escritor uruguaio Eduardo Galeano que o futebol é fascinante porque quanto mais os tecnocratas o programam nos mínimos detalhes, quanto mais os poderosos o manipulam, mais o jogo configura-se como o elogio do insólito. Não há aí um pouco do fascínio mundial pelo Brasil, um país docilmente arisco às formas de controle, sejam as mais ínfimas ou as mais espetaculares? No futebol quiçá se realize uma projeção do desejo de insubordinação e protagonismo das classes populares brasileiras, tão recalcado ao longo de séculos de opressão. E também nisso ele pode ser poesia para nós.

Alexandre Pilati é professor de literatura brasileira da Universidade de Brasília. É autor de A nação drummondiana (7Letras, 2009) e organizador do volume de ensaios O Brasil ainda se pensa – 50 anos de Formação da Literatura Brasileira (Horizonte, 2012). www.alexandrepilati.com

*“Horizonte cerrado” é a expressão que inicia o primeiro verso do soneto de abertura do livro Poesias (1948) do poeta carioca Dante Milano. Sendo microcosmo do poema, a expressão também serve para expor a situação atual de um mundo cujas perspectivas nos aparecem sempre encobertas por nuvens ideológicas cada vez mais intrincadas. O que pode o olhar do poeta, do escritor e do crítico literário diante disso tudo? Esta coluna, inspirada na lição de velhos mestres, quer testar as possibilidades de olhar algo do real detrás da névoa, discutindo literatura, arte, política e pensamento hoje.

  A íntegra do artigo pode ser conferida em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0603200506.htm