“Araguaia: Depois da guerrilha, outra guerra” será lançado em Goiânia
“ARAGUAIA: DEPOIS DA GUERRILHA, OUTRA GUERRA – A luta pela terra no Sul do Pará, impregnada pela Ideologia da Segurança Nacional (1975-2000)
Esse livro é uma continuação da pesquisa iniciada em 1992, que se tornou dissertação de mestrado em 1995 e foi publicado em 1997, “A Guerrilha do Araguaia – A esquerda em armas”.
Agora o prosseguimento do estudo, tese de doutorado em Geografia, analisa a região onde aconteceu a guerrilha, no período posterior ao movimento guerrilheiro em um período compreendido no espaço de tempo entre 1975 (final da guerrilha) e o ano 2000.
Durante esse período, a luta pela terra, o advento de Serra Pelada e a organização dos camponeses, tornaram o Sul do Pará a região mais violenta do país.
Por todo este tempo, o monitoramento dos órgãos de segurança estiveram presentes na região e foram cúmplices e coniventes, e até atuantes diretamente, nos assassinatos de centenas de camponeses e de lideranças políticas, comunistas e religiosas.
Uma publicação da Editora Anita Garibaldi em co-edição com a Fundação Maurício Grabois.
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Guerras e impunidades
Osvaldo Bertolino*
Marc Bloch, historiador francês fuzilado pelos nazistas em 1944, escreveu que o passado é, por definição, um dado que nada mais modificará, mas o seu conhecimento é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa. Este livro do professor Romualdo Pessoa Campos Filho, uma espécie de segundo tempo da primorosa obra Guerrilha do Araguaia — a esquerda em armas do autor, comprova esta afirmação ao revelar mais uma face da Guerrilha do Araguaia.
Este Araguaia — depois da Guerrilha, outra guerra não deixa dúvida de que o local dos combates entre os guerrilheiros do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e as forças repressivas do regime militar de 1964, o Sul do estado do Pará, ainda oculta informações de grande relevância para a história brasileira. Ao levantar mais uma ponta do tapete sob o qual se esconde uma galeria de crimes repugnantes, o livro mostra o fio da história perpassando e unindo tempos históricos diferentes.
Romualdo Pessoa, a exemplo do que fez na preparação da sua obra A esquerda em armas, foi lá no teatro dos combates e, munido de lentes argutas, levantou informações com a minudência de um arqueólogo. Garimpou, lapidou e apresentou esta preciosa contribuição para se entender um pouco mais a fundo o que é o Brasil e a alma dos brasileiros.
A Guerrilha do Araguaia é, sem dúvidas, uma das principais marcas das lutas populares gravadas na história do Brasil. Pelo contingente que a repressão mobilizou, pela envergadura da sua plataforma, porque foi uma atitude resoluta de uma corrente política — o PCdoB — com um pensamento estratégico para o Brasil. Um dos grandes méritos da obra é mostrar, com dados e fatos, que a defesa enérgica das ideias progressistas no Araguaia se assemelha a outros grandes feitos brasileiros, desmascarando as falácias sobre o real alcance daquela epopeia.
Em um país como o nosso, onde, se quisermos contar a verdade, a história deve passar por uma completa reelaboração, a Guerrilha do Araguaia ainda tende a ser mostrada com a mesma distorção verificada quando a Inconfidência Mineira entrou para a historiografia oficial. Certos historiadores consideravam que ela só teve repercussão devido à morte violenta de Tiradentes — ignorando a clareza de objetivos e a amplitude do movimento mineiro.
Felipe dos Santos, cujo corpo arrastado por cavalos banhou de sangue as ruas de Vila Rica, é outro exemplo. E a conspiração dos Alfaiates, na Bahia, que nos legou quatro mártires da forca, também. Foi igualmente assim com Canudos e Contestado, revoltas populares impiedosamente esmagadas.
Essa lógica repressiva demonstra mais do que qualquer palavra a importância desses movimentos. Os repressores sabiam perfeitamente o que faziam — ao punir com rigor os revoltosos tinham consciência do que estava em questão.
Neste livro, o leitor verá que a mesma lógica, aplicada à risca na repressão à Guerrilha do Araguaia, sobreviveu na região em todo o período pesquisado. Romualdo Pessoa mostra que outra guerra se desenvolveu no local, movida pelas ações do Estado ditatorial que temia o renascimento de algo parecido com o que estava no imaginário dos que reprimiram os guerrilheiros no início dos anos 1970. Ou seja: uma nova guerrilha poderia estar sendo gestada no local.
Com o rigor acadêmico que lhe é peculiar, o autor faz um minucioso estudo de diferentes categorias para situar os acontecimentos analisados em bases firmes. Quando entra no mérito da questão, o autor leva o leitor para um verdadeiro passeio pela história recente do país.
A princípio ele traça um perfil detalhado da crise que levou ao golpe militar em 1964, desvendando o sentido da Doutrina de Segurança Nacional que daria sustentação à intervenção militar na região da Amazônia e situando os conflitos de terra nos marcos de uma legalidade precária e ditatorial. Romualdo Pessoa também envereda pelo terreno do garimpo, desenvolvendo um inusitado estudo sobre a “febre do ouro” na região, que conteve a fase mais aguda dos conflitos de terra pós-Guerrilha.
Por trás de tudo estava o onipresente major Sebastião Rodrigues de Moura, o famigerado Curió. Segundo o autor, ele estendeu sua atuação desde Marabá até Conceição do Araguaia, uma imensa área controlada por um forte poder paramilitar. Romualdo Pessoa investigou esse poder paralelo que permaneceu por muito tempo e, segundo ele, ainda mantém alguns resquícios na área estudada.
Curió, conforme revela o livro, foi designado para a função de interventor de Serra Pelada pelo regime, sem que ele abrisse mão das atividades anteriores. O que houve, na verdade, foi a ampliação do seu poder que ele usaria para reinar como senhor quase absoluto na região. Agora, com apoio de agentes dos serviços secretos e da Polícia Federal, Curió personificava a presença do Estado naquela imensa área.
Por ele passavam desde os conflitos agrários até problemas comezinhos como brigas entre marido e mulher. Controlando Serra Pelada com mão de ferro, o “todo poderoso Curió”, como é chamado por camponeses da região, também recrutou bate-paus e milicianos armados para engrossar o seu exército de criminosos. Com todo esse poder, ele se esmerou ainda mais na prática de mandos e desmandos, conforme mostra o livro.
Romualdo Pessoa sublinha que ainda assim os conflitos agrários não perderam a intensidade. Com a chegada das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) da Igreja Católica, além da projeção de lideranças sindicais ligadas ao PCdoB, a luta camponesa atingiu outro patamar. A instalação na região da União Democrática Ruralista (UDR), entidade de latifundiários cuja finalidade era impedir o avanço da Reforma Agrária, acirrou ainda mais os ânimos.
O livro descreve episódios reveladores sobre a influência da ideologia da ditadura militar nos conflitos, como os que levaram a uma escalada de violência contra os trabalhadores que chegou ao ponto de assassinatos em série — situações de tragédias mais do que previsíveis, pois, segundo Romualdo Pessoa, a morte mandava recado. Foi o que ocorreu com a família Canuto, com Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, e com Expedito Ribeiro de Souza. A repressão atingiu também os padres progressistas que atuavam na região e chegou à ousadia de assassinar o ex-deputado estadual do PCdoB Paulo Fonteles.
A obra – é claro –, apesar de abrangente, não poderia dar conta de todos os aspectos daquela complexa e conflituosa região, conforme avalia o autor, que anuncia a intenção de prosseguir nas pesquisas. Segundo ele, os combates entre a Guerrilha e a repressão da ditadura militar acentuaram as contradições locais, uma lógica do regime movida pelo temor de que as ações guerrilheiras fossem retomadas.
Em seu diagnóstico, Romualdo Pessoa indica que a partir da Guerrilha algumas tensões passaram a reger os acontecimentos no local, como a ocupação de terras pelos camponeses e as preocupações geoestratégicas do regime militar. Para dar conta da situação, a ditadura intensificou o processo de concessão de terras a grandes empresas e passou a utilizar a estrutura jurídico-militar do regime para reprimir o movimento camponês.
A conclusão que o leitor pode tirar da obra é a de que a Guerrilha do Araguaia representou um ponto de inflexão na história recente do Brasil. Os combates no Sul do estado do Pará, somados a outras ações de resistência democrática, ajudaram a abrir caminho para que se formasse um movimento mais consistente de enfrentamento à ditadura. A partir de então, houve uma mudança na correlação de forças que, logo levaria o regime militar a entrar em declínio.
Ao mesmo tempo em que a repressão se manifestava de maneira bárbara, mesmo após o período mais sangrento do regime, as manifestações contra o arbítrio cresciam. Os assassinatos de Wladimir Herzog, Manoel Fiel Filho, Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Franco Drummond, em 1975 e 1976, ocorreram já em meio a protestos destemidos contra o regime discricionário. A crescente mobilização popular levou à decretação da Anistia em 1979, à derrota da ditadura em 1985 e à Assembleia Nacional Constituinte de 1988.
Romualdo Pessoa fecha o livro com a instigante confluência da ocupação dos confins do território brasileiro na década de 1960 estimulada pela ditadura militar com as ações do movimento guerrilheiro organizado pelo PCdoB, cujos efeitos perpassariam as décadas seguintes. Segundo ele, a ocupação daquele “imenso espaço vazio” no Norte do país advinha de uma preocupação geopolítica desde a “era Vargas” e do plano de desenvolvimento do governo do presidente Juscelino Kubitscheck.
O histórico problema da terra no Brasil esteve também no centro da conjura que levou ao golpe militar de 1964. O decreto do presidente João Goulart que declarou de interesse social para fins de desapropriação algumas áreas inexploradas motivou a reação conservadora, cujo ponto alto foi a tristemente famosa “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” realizada em 19 de março de 1964 pedindo aos militares que expressavam opiniões reacionárias que derrubassem o governo, com apoio efetivo da Sociedade Rural Brasileira — velha entidade de fazendeiros paulistas.
Como diz o livro, depois da Guerrilha do Araguaia outra guerra se disseminou na Amazônia como parte do mesmo conflito. O Brasil ainda tem algo próximo a 150 milhões de hectares de terras improdutivas, um oceano de solos inúteis ao país que equivale a dois Chiles ou a quinze Coreias do Sul. As ações do latifúndio descritas por Romualdo Pessoa, portanto, reproduzem o ideário oligárquico que luta para conservar a riqueza e as oportunidades do mesmo lado da cerca — um comportamento baseado em nossa história de rasgada distância entre classes sociais.
Os crimes cometidos na região após a Guerrilha do Araguaia precisam de punição exemplar, está claro. Ao resgatá-los neste livro, Romualdo Pessoa presta mais um relevante serviço à nação porque a obra enfrenta a lógica de que a lei, no Brasil, está a serviço do poder econômico. O Brasil é ainda o país da tortura medieval e dos assassinatos impunes. Como resultado, está disseminada pela sociedade a noção de que a lei não é igual para todos, de que a Justiça não é justa. As evidências apontadas neste livro por Romualdo Pessoa são mais um motivo para que as forças democráticas e progressistas sigam exigindo o fim da impunidade para os crimes praticados no Sul do Pará.
*Osvaldo Bertolino é jornalista, editor do Portal Grabois e autor das biografias de Maurício Grabois, Pedro Pomar e Carlos Danielli, entre outras obras