Fausto e o moralismo
Fausto vendeu-se ao demônio. Para adquirir poder e dinheiro entre os mortais, hipotecou a alma pela eternidade. Tamanha era a força da sua cupidez, a fome da riqueza abstrata, que, diante dela, a eternidade parecia durar apenas um segundo.
Vai pela casa da tonelada a quantidade de tinta gasta para deplorar o poder do dinheiro, a sua força para corromper as consciências, desfigurar as almas e os sentimentos. Contra esse poder e essa força, lançaram-se poetas, filósofos, teólogos e até os moralistas de folhetim.
George Simmel, em seu livro A Filosofia do Dinheiro, mostra que o sujeito atacado pelo amor “doentio” ao dinheiro não é uma aberração moral, mas o representante autêntico do indivíduo criado pela sociedade argentária. As qualidades dos bens e o gozo de suas utilidades tornam-se absolutamente indiferentes para ele. Suas preferências, sentimentos, desejos, são totalmente absorvidos pelo impulso de acumular riqueza monetária.
É curioso observar como a sociedade argentária, ao transformar violentamente os indivíduos e suas subjetividades em simples coágulos monetários, pretenda ao mesmo tempo colocar barreiras, ensinando-lhes as virtudes da moderação, da frugalidade, da solidariedade. Então, como podemos falar de sentimentos como honradez, dignidade, autorrespeito numa sociedade em que todos os critérios de sucesso ou insucesso são determinados pela quantidade de riqueza monetária que cada um consegue acumular?
É difícil escapar da sensação de que a contenção desse impulso é impossível sem a coação e a intimidação crescentes. As leis devem se tornar cada vez mais duras e especializadas na tentativa de coibir o enriquecimento “sem causa” e a qualquer custo. Verdade? A experiência contemporânea parece demonstrar que os circuitos de enriquecimento ilícito – apesar do grande número de prisões e condenações – não fazem outra coisa senão aumentar, multiplicando-se mundo afora. As drogas e seus sistemas de produção e comercialização, a espionagem industrial e tecnológica, a corrupção política, a compra e venda de informações e de “desinformação” da opinião pública formam uma rede formidável e em rápido crescimento de circulação de dinheiro “sujo”.
Esse dinheiro transita e é “esquentado” e “esfriado” nos mercados financeiros liberalizados. Negócios legais são muitas vezes fachadas para “branquear” dinheiro de origem ilícita. Os sistemas fiscais – diante dos circuitos financeiros que permitem a livre movimentação de capitais – perdem o seu caráter progressivo e passam a depender cada vez mais dos impostos indiretos e da taxação dos assalariados.
Daí o enfraquecimento sem precedentes da esfera pública, a desmoralização dos poderes do Estado, a crescente onda de moralismo que revela, aliás, mais impotência do que indignação. Os perdedores desse jogo entregam-se a lamentações e ondas de protesto que se esgotam rapidamente entre o escândalo do momento e o próximo. Sem tempo para raciocinar, entregam-se ao consumo de fatos sensacionais e escabrosos.
Nessas situações crescem os clamores por medidas “salvacionistas”, apoiadas na invocação da própria santidade, honestidade ou bons propósitos. Em geral, esses movimentos de opinião voltam-se contra o “formalismo” dos procedimentos legais. Os grandes pensadores da modernidade encaravam com horror a possibilidade de vitória dos grupos que veem no direito e na formalidade do processo judicial obstáculos ao exercício da moral. Para eles, tais protestos não são apenas errôneos, mas revelam apego malsão à sua própria particularidade, desfrutada narcisisticamente sob o disfarce da moralidade.
No capitalismo realmente existente são os negócios que invadem a esfera estatal. A concorrência entre as grandes empresas impõe a presença do Estado nos negócios e envolve a disputa por sua capacidade reguladora e por recursos fiscais. Isso significou abrir as portas para a invasão do privatismo nos negócios do Estado.
O neoliberalismo também pode ser entendido como um projeto de retorno a uma ordem jurídica alicerçada exclusivamente em fundamentos econômicos. Para tanto, é obrigado a atropelar e estropiar, entre outras conquistas da dita civilização, as exigências de universalidade da norma jurídica. No mundo da nova concorrência e da utilização do Estado pelos poderes privados, a exceção é a regra. Tal estado de excepcionalidade corresponde à codificação da razão do mais forte, encoberta pelo véu da legalidade.
Seria uma insanidade, no mundo moderno e complexo, tentar substituir os preceitos e a força da lei pela presunção de virtude autoalegada por qualquer grupo social ou, pior ainda, por aqueles que ocupam circunstancialmente o poder.