O objetivo inicial de David Harvey, preservado e expandido ao longo de sua trajetória e de sua vasta obra, consistia basicamente em tentar entender a urbanização no capitalismo. Nessa direção, dedicou-se, nos anos 1960 e nos primórdios dos anos 1970, a estudar os desenvolvimentos históricos das principais cidades da Grã-Bretanha, da França e dos Estados Unidos, percurso sintetizado parcialmente no livro A justiça social e a cidade (1973).

Harvey atribuiu as carências dessa primeira versão a uma compreensão insuficiente da teoria marxiana. Para sanar esse déficit procurou se posicionar no debate, então aceso por conta de argumentações marcadamente contraditórias sobre o sentido da interpretação e a necessária atualização da obra de Marx. Concentrou seus esforços – numa época em que ainda ressoavam as polêmicas em torno do significado dos textos de juventude de Marx – nos livros e manuscritos posteriores a 1850, um conjunto que Roman Rosdolsky denominou de “crítica da economia política”.

Em Os limites do capital, publicado em 1982, Harvey buscou não se afastar muito de seu interesse original. Avaliava que esse aparente desvio consistia apenas numa propedêutica indispensável à abordagem marxista do processo urbano. Tanto assim que, na Introdução descreve o livro como “um tratado sobre a teoria marxiana em geral, prestando atenção na circulação do capital nas áreas construídas e na produção das configurações espaciais” (p.36).

De modo geral, o livro procura integrar os aspectos financeiro (temporal) e geográfico (global e espacial) sob uma teoria do sentido do movimento de acumulação do capital. Não prescinde, no entanto, de um exame acurado do papel ali desempenhado pela intervenção do Estado, concebendo esta, de certo modo, como um “momento vital na dialética e na dinâmica contraditória da acumulação do capital” (p.21).

As questões suscitadas em suas pesquisas acerca da dinâmica urbana, desdobradas na investigação dos procedimentos do mercado imobiliário e dos desenvolvimentos geográficos desiguais demandaram o esclarecimento do papel desempenhado, no interior da teoria marxiana, por fatores como capital fixo, finanças, crédito, gastos públicos etc. Desse modo, a motivação prévia de buscar fundamentos para uma explicação mais adequada da circulação do capital no mundo urbano, do modo como a renda se relaciona com os processos básicos de produção e distribuição, em suma, dos mecanismos que determinam a configuração espacial característica do capitalismo, desembocou numa reconstituição da “crítica da economia política”.

Nesse afã, Os limites do capital se constituiu como uma exposição eminentemente teórica. Harvey não deixa de ressaltar, no entanto, que o livro prescinde das dimensões históricas, geográficas e políticas da obra de Marx tão somente por conta do recorte do objeto.

No decorrer do tempo, aquilo que a princípio parecia menos, revelou-se mais. O demorado mergulho nos “deserto de gelo da abstração”* estabeleceu um reservatório que possibilitou a Harvey, desde então, intervir com pertinácia em diversos debates políticos e teóricos. Municiado como poucos, propôs reflexões instigantes nas sucessivas pautas desencadeadas pelas profundas modificações históricas do capitalismo nos últimos quarenta anos. Emergiram assim uma série de indagações que ele procurou, na sequência, resolver, moldando inflexões inesperadas por meio das quais, sem abandonar o solo original, sua obra ultrapassou a condição de mera geografia do capital.

Os passos de Harvey reiteram um procedimento recorrente na linhagem do marxismo. Os autores dessa vertente, desde Friedrich Engels, conduziram a tarefa de atualização do materialismo histórico, exigência inerente a um movimento que se concebe como eminentemente histórico, combinando o diagnóstico do presente histórico com uma revisitação da obra de Marx – revisão que resultou, nos casos bem-sucedidos, tanto numa interpretação original da teoria marxiana como na ampliação do escopo da doutrina.**

A ordem dos fatores é indiferente. Embora Harvey tenha começado com uma apresentação da teoria marxiana, ele próprio reconhece que sua preocupação primordial consistia em buscar respostas para os desafios impostos ao marxismo pela crise econômica que eclodiu, com uma intensidade inaudita desde 1929, nos primeiros anos da década de 1970.

Em seu esforço para compreender a crise da década de 1970, ele testou as principais explicações prevalecentes no interior da linhagem marxista, identificando problemas em cada uma delas.

Harvey considera que a tese do “esmagamento do lucro” – aquela que “encara que a organização da força de trabalho e a escassez de mão de obra reduzem a taxa de acumulação até o ponto de crise da classe capitalista e, por extensão do sistema capitalista como um todo” (p.28) – explica parcialmente a situação, mas não consegue fornecer respostas convincentes para alguns dos pontos decisivos da crise.

Ele rejeita também a tese de que a crise seria provocada por “subconsumo” ou, numa terminologia não-marxista, por deficiências na demanda efetiva. Essa teoria, apresentada inicialmente por Rosa Luxemburgo, defendida e desenvolvida por adeptos do marxismo keynesiano, também lhe pareceu incapaz de explicar os fenômenos específicos da crise dos anos 1970.

Por fim, Harvey discorda da teoria da “queda tendencial da taxa de lucro”, que consistiria num resultado não previsto pelos capitalistas em seu denodo para introduzir na indústria inovações tecnológicas e reduzir a força de trabalho. Afirma que, “o próprio Marx anexou tantas advertências, condicionalidades e circunstâncias mitigadoras a essa teoria que é difícil sustentá-la como uma teoria geral da crise” (p.28).

A teoria delineada por Harvey procura, no entanto, incorporar dimensões dessas três correntes. Em sua busca de uma explicação mais abrangente considera que as crises econômicas do capitalismo derivam, em última instância, de sua tendência congênita à superacumulação de capitais. Nas palavras de Harvey: “as crises surgem quando as quantidades sempre crescentes de mais-valia que os capitalistas produzem não podem ser absorvidas lucrativamente” (p.28).

Para explicar o pós-modernismo, Harvey recorre ainda ao arsenal teórico da “escola da regulação”, em particular, à sua famosa distinção entre “regime de acumulação” e o “modo de regulação” social e política que lhe é associado.  Nesse diapasão, Harvey identifica no pós-modernismo uma ruptura com o modelo de desenvolvimento capitalista prevalecente desde 1945. A partir da recessão de 1973, a forma de acumulação predominante, o fordismo, foi minada pela crescente competição internacional e pela combinação de baixas taxas de lucros corporativos e de um processo inflacionário em aceleração. A soma desses fatores desencadeou uma crise de superacumulação.

A resposta da classe capitalista e dos governos dos países centrais a essa situação desdobrou um novo regime de acumulação. Nesse regime, denominado “flexível” por Harvey, o capital retomou sua margem de manobra e seu controle sobre o mercado de trabalho. Sua principal estratégia foi a “precarização” das relações trabalhistas, com o estabelecimento de contratos temporários e a incorporação de força de trabalho imigrante.

Contribuíram para tanto outros fatores como a transposição – em busca de custos reduzidos – de unidades fabris para outros países ou regiões. A produção de mercadorias também foi revolucionada por processos just in time, pela prioridade dada aos lotes de encomendas etc. A principal transformação, no entanto, ocorreu nos mercados financeiros com a desregulamentação das transações em moedas (câmbio), crédito e investimentos. Esse novo regime de acumulação forneceu o solo para a cultura pós-moderna, para uma nova sensibilidade moldada pela desmaterialização do dinheiro, pelo teor efêmero da referência monetária, pela instabilidade econômica.

Leia também “David Harvey“, de Ricardo Musse, no Blog da Boitempo.

NOTAS

* A expressão “deserto de gelo da abstração” é de Walter Benjamin, como lembra Adorno no Prefácio da Dialética negativa (Rio de Janeiro: Zahar, 2009).

** Sobre o papel de Engels na determinação dos procedimentos típicos da tradição marxista, ver  “O primeiro marxista”. Em: Boito, Armando & Toledo, Caio Navarro et al. (orgs.). A obra teórica de Marx. São Paulo: Xamã/Editora da Unicamp, 2000 p.81-89.

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Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo. Doutor em filosofia pela USP (1998) e mestre em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992). Atualmente, integra o Laboratório de Estudos Marxistas da USP (LEMARX-USP) e colabora para a revista Margem Esquerda: ensaios marxistas, publicação da Boitempo Editorial.

Publicado no Blog da Boitempo.