Boca de urna: a mídia e a aldeia comunista
Vivemos dias de paradoxos. Ao mesmo tempo em que existe um volume inédito de informações à disposição do público, e em que vigora uma liberdade de informar praticamente ilimitada, é possível que nunca o cidadão brasileiro tenha estado tão mal informado. Mesmo quando há algo para anunciar, os portadores das boas novas preferem ficar distantes dos microfones, câmeras e bloco de anotações. Eis outra característica marcante da mídia: ela inspira medo em vez de admiração. Até quem não tem posições ideológicas e políticas contrapostas às suas, mas discorda dos seus métodos abusivos, muitas vezes se mantém distante dela porque criticá-la, principalmente se quem faz a crítica tem algum tipo de estatura, é receita certa para entrar na lista de “inimigos”.
A mídia gosta de atribuir a si mesma méritos que, examinados com cuidado, revelam-se flagrantes falsidades. Um deles seria a sua idiossincrasia oposicionista. Contudo, os meios de comunicação de massa, em uma verdadeira democracia, não têm de ser nem contra nem a favor de governos. Tem de ser, isso sim, fiel aos fatos, o que significa, basicamente, dotar o público de informações e análises que o ajudem a entender melhor as coisas. No entanto, os meios de comunicação de massas prognosticam o caos e apontam qualquer nuvem como prenúncio de tempestade. Já o inverso não é verdadeiro: quem prevê dias ensolarados não é noticiado.
Moralismo vulgar
Tendo essa falsidade como justificativa, o que se vê na mídia é uma sucessão de patacoadas cujo foco mais visível está na obsessão de apresentar um quadro de catástrofe terminal para o Brasil. Desde que Luis Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da República, em 2003, o colapso definitivo do país já foi decretado várias vezes. Divulgaram até uma falsa epidemia de febre amarela (foi, na verdade, uma epidemia de febre marrom) e um infundado “apagão elétrico” que a qualquer momento deixaria o país parado e às escuras. Esse modelo de comunicação de massa que existe no Brasil, na verdade, foi montado para ser uma poderosa fábrica de “crises”. E a fórmula é infalível: prognosticam-se o caos e, com isso, os “escândalos” conquistam os noticiários.
Além disso, é extraordinária a capacidade da mídia brasileira de dar guarida à produção de um certo tipo de profissional — o “comentarista” que ganha a vida anunciando o colapso permanente do governo. Quando acerta na previsão de um desastre — e, estatisticamente, têm de acertar alguma coisa, já que ele prevê que tudo vai dar errado — é confirmado na posição de gênio da análise política brasileira. Em tempos passados, a fórmula funcionou, quando Carlos Lacerda combinou histrionismo com moralismo vulgar para caluniar Getúlio Vargas impiedosamente; nos dias atuais, a recorrência à mesma prática se enquadra na máxima do “vai que cola”.
Mundo real
Os “comentaristas” preveem, durante 100% do tempo, que a economia do Brasil está entre o estado de coma e a morte anunciada. Neste ano de eleições, o auge foi atingido com o anúncio dos números do Produto Interno Bruto (PIB). As previsões tétricas apontaram como causa da catástrofe que está por vir a inflação fora de controle (o Índice Geral de Preços-Mercado, o IGP-M, fechou setembro abaixo das expectativas e caiu no acumulado de 12 meses), drástico recuo do PIB (o crescimento brasileiro não deve destoar das demais economias mundiais) e o dólar em disparada (a moeda norte-americana tem estado consistentemente nas cercanias dos dois reais).
Isso faz com que as pessoas frequentemente perguntem a si mesmas se o mundo real é o que elas leem, veem e ouvem ou é aquele em que vivem todos os dias. O que se vê na mídia, enfim, é um panorama de ruínas, que a realidade se incumbe de desmontar cotidianamente. Em outra frente, a mídia se especializou em trocar a busca de respostas pela fabricação de culpados.
As frases bombasticamente vazias vão para as capas, para as aberturas dos noticiários, para as chamadas dos portalões como verdades com potencial para abalar os pilares da nação. Recentemente ocorreu algo assim com o antológico “caso da Petrobras”. O vazamento seletivo para a mídia de supostas informações oficiais foi um ato criminoso. Os dados apareceram de tal maneira fora do contexto que ficou impossível depreender o essencial: gente desqualificada como Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras cooptado para a “delação premiada”, teve mais audiência do que os dirigentes da empresa e a própria presidenta da República.
Atuais ataques
Em outros episódios, casos com muito mais elementos comprobatórios de malversações não tiveram o mesmo tratamento. O mais rumoroso deles ocorreu na divulgação de conversas de altos funcionários do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) a respeito da privatização das estatais telefônicas, quando tombaram dois dos seus mais representativos ícones: Luiz Carlos Mendonça de Barros (então ministro das Comunicações) e André Lara Resende (então presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES).
As conversas grampeadas e editadas cuidadosamente pelos grampeadores — e nem tão cuidadosamente pelos editores da mídia — revelavam favorecimento do governo a um consórcio do qual fazia parte o banco Opportunity, do tucano Daniel Dantas, e no qual era figura de destaque o economista Persio Arida, amigo pessoal de Lara Resende e de Mendonça de Barros.
Algum tempo depois, em artigo para o jornal O Estado de S. Paulo, Lara Resende disse que “a gravação clandestina e a divulgação de conversas reservadas entre homens públicos, tratando de assuntos públicos, é um ato politicamente covarde, e a sua divulgação sensacionalista, extremamente perigosa”. “Sempre que os direitos individuais são relativizados, em nome de um interesse público supostamente superior, o Estado de Direito corre risco. A subordinação dos direitos individuais a interesses coletivos esteve sempre associada às maiores atrocidades e aos mais bárbaros regimes deste século”, ponderou, sem imaginar que esse argumento cairia como luva para os atuais ataques no “caso da Petrobras”.
Overdose de denúncias
É possível que os brasileiros tenham aprendido a discernir o que é escândalo de verdade e o que é factoide. Talvez a sociedade, que aparentemente já não se sente mais representada pela mídia, esteja à frente dela. E isso pode ser uma boa notícia — a falta de sintonia com o público é fatal; mata qualquer veículo, ainda que a morte seja arrastada. A conclusão é inevitável: por mais defeitos que tenha, por mais problemas por resolver que acumule, o Brasil é, hoje, infinitamente melhor do que a mídia.
A overdose de denúncias, acusações e condenações sumárias resultantes disso acaba por provocar uma total distorção do papel do jornalismo. Responder às perguntas da mídia, hoje, vai se tornando um exercício cada vez mais parecido com uma partida de xadrez, onde é necessário antecipar os três ou quatro lances seguintes do adversário. A pergunta não é simplesmente uma pergunta: muitas vezes é uma armadilha destinada a extrair alguma declaração que será usada contra o entrevistado nas perguntas à frente. A pessoa que está sendo inquirida precisa, assim, calcular cuidadosamente tudo o que diz. Se disser A, será perguntada adiante a respeito de B ou C; se disser Y, abrirá espaço para que lhe perguntem sobre X ou Z, e assim por diante. Entrevistas supostamente jornalísticas se transformam em interrogatórios.
Lula tocou no assunto
O fato é que os jornalistas da mídia, quando se dirigem a alguém, não querem realmente obter uma informação. Querem apenas obter alguma forma de confirmação ou justificativa para o que já foi decidido. Recentemente, Lula comentou o assunto. “O jornalismo antes tinha uma coisa fantástica: os jornalistas faziam as perguntas para a gente responder. Hoje eles respondem para gente perguntar. Vocês já perceberam que não tem mais pergunta? Eles não querem saber o que vossa excelência pensa. Eles querem saber só o que eles pensam sobre você e o que querem dizer para a sociedade. Ou seja: aumentou a falta de ética e a falta de respeito”, disse ele durante ato realizado com a presença de intelectuais e artistas que apoiam a reeleição de Dilma Rousseff no Rio de Janeiro, na noite do dia 15 de setembro.
Declarações, fatos ou números que se contraponham à mídia são ignorados; só é levado ao público o que combina com aquilo que esse tipo de comunicação quer dizer. As acusações, convenientemente, baseiam-se em fontes anônimas. E, quando tentam apresentar testemunhas capazes de provar alguma coisa, tudo o que aparece são obscuros personagens que não testemunham nada e, no fundo, apenas fazem o jogo pré-combinado. Mas isso não é suficiente para coibir o frêmito acusatório. É o que vem acontecendo no emblemático “caso da Petrobras”; a mídia apressa-se em publicar frases espetaculares de prisioneiros com vastas fichas criminais. A má-fé cínica tem o sentido explícito de criar a obtusidade córnea — para citar as palavras famosas de Eça de Queiróz.
Algo “razoável”
O que há, na verdade, é uma ditadura de uma casta com a presunção de conferir a si própria o título e as credenciais de senhora do bem e do mal, do que convém ou não ao país. Às vezes fazem isso até em nome das religiões, que do alto dos seus milênios de existência não lhes deram procuração para tanto. Recentemente, quando Dilma Rousseff visitou templos religiosos como candidata, um verdadeiro dilúvio de críticas desabou sobre ela. Ou por outra: vale tudo para tentar transformar um governo identificado com o povo em uma administração de segunda classe. Talvez a mídia não tenha tempo ou capacidade para cometer todos os desatinos que pretende, mas com certeza está empenhada em aproveitar ao máximo todas as oportunidades que aparecerem pela frente.
O “comentarista” das Organizações Globo, Arnaldo Jabor, por exemplo, já avisou que a deleção premiada do doleiro Alberto Youssef (outro que tem alta audiência na mídia) tem de resultar em algo ”razoável”. O que ele julga ”razoável” não ficou claro. Seria o caso, se houvesse democracia na mídia, de perguntar para ele. Ou, quem sabe, pedir que escreva novas leis para o país. Mas gente como Jabor não tem compromisso com a verdade nem tampouco se dispõe a esclarecer coisa alguma. Se perguntados o que pretendem fazer, suas respostas certamente seriam parecidas com aquela célebre explicação dada por um oficial norte-americano, durante a Guerra do Vietnã, após pulverizar uma aldeia acusada de abrigar guerrilheiros comunistas: ”Para salvar a aldeia, tivemos de destruí-la.”