Os conceitos de Estado, de Direito e de Política muitas vezes, em teoria, são apresentados e discutidos de forma distinta. Em realidade, se encontram tão profundamente interligados que não se pode com proveito analisá-los de forma separada.

Não há Direito sem Estado, pois a aceitação e a observância das normas jurídicas e sua eventual sanção em caso de descumprimento dependem da existência e da força do Estado que se expressam através de suas agências, entre elas e muito em especial sua polícia. A afirmação de que não há Direito sem Estado não significa negar a existência de direitos humanos inalienáveis. Todavia, somente a luta política pela consagração desses direitos e pelo seu reconhecimento pela legislação e pelo Estado é que permite impor sua observância. 

Não há Direito sem Política, pois as normas jurídicas não são elaboradas, executadas e interpretadas em gabinetes acadêmicos a partir de conceitos e de estruturas lógicas cartesianas, mas, sim, em processos conflituosos de disputa de interesses no seio da sociedade e dos organismos do Estado, ainda que cada grupo de interesses conte nestes processos com o auxílio precioso de seus juristas para melhor articular a defesa de seus pontos de vista.

Não há Estado sem Política, pois os dirigentes das distintas agências do Estado, isto é das múltiplas agencias que compõem os seus três Poderes –  Legislativo, Executivo e Judiciário – são escolhidos através de processos políticos, mesmo quando esses processos são disfarçados como procedimentos de aparência tecnocrática, de reduzida transparência e nenhuma participação popular, como ocorre em regimes ditatoriais.

Há uma tendência em certas áreas de estudos acadêmicos e de certos autores a se estabelecer uma distinção e uma separação entre Sociedade Civil e Estado, entre Economia e Estado. A Sociedade Civil é apresentada com uma aura e uma natureza inerentemente boa, um lugar ideal onde os cidadãos, iguais e livres, conviveriam em harmonia se não fora pela existência do Estado, ente maléfico e autoritário que perturba e impede o desabrochar da sociedade civil. A Economia é representada como um espaço livre, dinâmico e criativo, onde empresários, capitalistas e investidores são responsáveis pelo progresso e pela prosperidade de todos enquanto que o Estado aparece como uma entidade intervencionista, ineficiente, corrupta e corruptora.

Todavia, não existe Sociedade Civil sem Estado, mesmo quando este aparece como instrumento de um regime ditatorial ou autoritário, pois sem o Estado e sem normas jurídicas, a sociedade seria tão somente um emaranhado confuso de lutas violentas de interesses. A não ser nos territórios coloniais, onde as instituições do Estado colonial aparecem como criaturas da potência estrangeira, alheia e opressora da sociedade local, se pode falar de separação entre Sociedade Civil e Estado.

Por outro lado, não há Economia sem Estado, pois são as normas jurídicas que regulam as atividades econômicas e que, através das agências do Estado, garantem a observação das relações entre trabalho e capital (lato sensu), qualquer que seja o sistema econômico de uma determinada sociedade: agrária primitiva, antiga, feudal, capitalista, socialista ou comunista.

Hoje há uma tendência a considerar que a expressão mais moderna da Sociedade Civil seriam as organizações não governamentais, que representariam melhor os interesses do povo, principalmente em Estados em que as classes hegemônicas são conservadoras e opressoras. Todavia, em muitas circunstâncias, as organizações não governamentais que atuam em um país, em especial quando é ele subdesenvolvido, representam em realidade interesses particulares e estrangeiros e estão longe de representar a sociedade civil. De toda forma, não têm essas organizações representatividade e legitimidade já que seus integrantes se auto-escolheram, e assim é de estranhar e de preocupar a tendência atual de incorporar representantes de ONGs em organismos do Estado.

Ao tratar dos temas do Estado, do Direito, da Política, da Sociedade e da Economia há sempre uma certa repetição de ideias e de argumentos, devido à sua estreita interelação, pelo que me penitencio.

Do Estado

Reconhecendo as características, detalhes e diferenças da evolução de cada Estado nacional, pode-se afirmar que os atuais Estados surgiram de desagregação ou de integração, violenta ou pacífica, de Estados ou “unidades políticas” anteriores; de processos de colonização que importaram e implantaram estruturas estatais exógenas e de processos de descolonização, violenta ou pacífica, que herdaram instituições administrativas das Potências coloniais; de revoluções que herdaram e criaram estruturas estatais.

Os Estados nacionais de hoje (e do passado), apesar de seu nome,  muitas vezes são constituídos por populações de diferentes origens étnicas e nacionais, que foram submetidas à hegemonia de uma delas enquanto que certas nações se encontram dispersas em territórios de diferentes Estados. Fato importante é que, em realidade, foram muitas vezes os Estados, as organizações construídas pelas etnias ou classes hegemônicas, que vieram a criar as “nações” atuais e não o contrário e que fizeram equivaler à noção de Estado a de uma só “Nação”, quando, na realidade, a própria “Nação” atual é constituída por populações de etnias e culturas diversas. A frase de Sêneca, em carta para sua mãe Hélvia, revela que toda pretensão atual, de qualquer sociedade, à pureza racial já era, em sua remota época, absurda: “dificilmente se encontrará um só lugar (no Império Romano) ainda povoado por seus habitantes originais: em toda parte a população é miscigenada e de estoque étnico de origem estrangeira.”

Em todas as sociedades, desde aquelas de longa história soberana até aquelas que conquistaram recentemente sua independência, há características comuns nos primórdios dos respectivos processos de formação de seu Estado nacional.

À medida que as comunidades primitivas foram adquirindo a capacidade de cultivar vegetais e deixaram de ser nômades para se tornarem sedentárias, teve início a agricultura que caracterizou a economia e as sociedades até a Revolução Industrial.

A agricultura supunha o domínio e o estabelecimento permanente de uma comunidade em um determinado território, o que, de um lado, levaria à emergência da propriedade coletiva, e mais tarde da propriedade privada, e da acumulação de riqueza e de Poder por indivíduos dentro de cada comunidade e, de outro lado, à formação de núcleos urbanos, as primeiras cidades.

A diversificação de atividades dentro de cada comunidade primitiva e a possibilidade de acumulação de riqueza, que já existia nas sociedades pastoris e nômades, tornariam inevitáveis as disputas pela apropriação de riqueza.

Essas disputas, com sua violência e sua insegurança, tornavam indispensável estabelecer normas para organizar as relações entre indivíduos e entre os distintos grupos sociais: homens, mulheres, guerreiros, sacerdotes, mercadores, artesãos, lavradores, caçadores etc.

A primeira distinção que surge dentro das comunidades primitivas é entre, de um lado, homens adultos e, de outro lado, mulheres e crianças,   grupos esses naturalmente mais fracos e indefesos, vitimas de opressão durante milênios. 

As diferenças de fertilidade dos solos e de possibilidade de irrigação levavam à disputa entre comunidades primitivas pela posse daqueles territórios que eram mais adequados para a atividade agrícola, por serem mais férteis e com nascentes, pela posse de rebanhos e pela aquisição de mão de obra escrava.

As disputas internas entre os diversos grupos sociais e os conflitos externos com outras comunidades levaram à emergência, no seio das comunidades primitivas, de grupos de indivíduos que, devido à sua força ou habilidade para a guerra, se destacavam na defesa de sua comunidade e, eventualmente, nos ataques a outras comunidades e que reivindicavam para si “direitos” especiais de posse de terras, de botins, de escravos.

A diferenciação de atividades e os conflitos com outras comunidades levaram à necessidade de normas e à formação de estruturas sociais de Poder capazes de organizar a sociedade para dentro e para fora e impor a obediência a essas normas por parte dos indivíduos.

Essas estruturas foram criadas pelos grupos mais poderosos em cada comunidade. Esses grupos procuraram fundamentar e justificar sua existência e seus privilégios não na sua força, mas sim como emanados de entidades divinas. Essas entidades, e seu culto, estariam relacionadas com o “controle” das forças da natureza e de fenômenos tais como a chuva, o vento, o sol, a fecundação, o nascimento, a morte e assim por diante, incompreensíveis para o homem primitivo, porém aspectos fundamentais na vida das comunidades mais antigas.

As religiões foram animistas em seus primórdios e assim continuaram durante longo tempo. Esta característica sobreviveu mesmo em civilizações sofisticadas como a grega, chegando aos tempos modernos de forma sublimada como ocorre, por exemplo, na devoção católica a santos protetores contra fenômenos naturais tais como raios e tempestades, contra doenças, ou propiciadores do amor e da saúde e intercessores junto à divindade máxima.

Estas estruturas sociais de poder que são os Estados primitivos diferem em sua organização e na sofisticação dos controles que exercem as classes hegemônicas (cuja composição evolui no tempo e tem a ver com a evolução econômica e social) sobre os demais grupos. A natureza essencial dessas estruturas é a mesma, qual seja a elaboração de normas e a manipulação de “ideias” sobre como se organiza a sociedade e sua relação com as divindades e o uso da força física para impor os interesses das classes hegemônicas no processo de apropriação de uma parcela maior da produção social de bens e de honrarias.

A escassez de dados sobre muitos desses aspectos nas sociedades primitivas e na Idade Antiga devido à ausência ou à precariedade de registros históricos, o que ocorre mesmo no caso de Roma, faz com que a atenção dos historiadores tenda a se concentrar nas ações e façanhas dos soberanos dos Estados antigos os quais, aliás, não somente se preocupavam como tinham condições de registrar seus feitos. A História tende a ser, assim, a história das classes hegemônicas e a romantizar ou a não examinar os mecanismos de seu domínio e de sua exploração das classes oprimidas.

A evolução dos Estados, isto é, dessas estruturas de costumes, de normas e de instituições de controle social, é um processo complexo e inter-relacionado que é influenciado pela evolução tecnológica, i.e, pelo crescente conhecimento das técnicas de produção de bens para a paz e para a guerra; pela evolução política, i.e das relações de força e de interação entre os distintos grupos sociais; pela evolução jurídica, i.e. pela crescente complexidade das normas que regem o convívio social, econômico e político entre indivíduos, grupos e classes que integram uma determinada sociedade

O Estado é, assim, o conjunto de normas, elaboradas pelas classes hegemônicas, e de “agências” que elaboram essas normas e as “fazem” cumprir se necessário pela força. Esses conjuntos de normas e de agências evoluíram historicamente na própria medida em que se desenvolveram as relações de produção e em que surgiram novas atividades e novas classes sociais a elas correspondentes e que em um processo de lutas foram transformando as normas e as agências do Estado. Mas o Estado era e é ainda hoje o resultado do embate das classes hegemônicas – ainda que dentro delas haja uma disputa permanente pela liderança – com as demais classes sociais para organizar as atividades sociais e para regular a distribuição dos recursos resultantes das atividades produtivas.

No caso dos Estados que surgiram da desintegração de impérios, como o Brasil, herdaram eles instituições coloniais transplantadas e, por vezes,  outras de sua própria sociedade, mas a formação de suas classes hegemônicas tem semelhança com a dos Estados que não surgiram da desintegração colonial.

Do Direito

O Direito é o conjunto de normas que regulam as relações civis, comerciais, políticas, religiosas e militares entre indivíduos, entre indivíduos e pessoas jurídicas privadas, entre pessoas jurídicas privadas e entre os indivíduos, as pessoas jurídicas privadas e as agências do Estado.

Este conjunto de normas, com maior ou menor rigor, e com maior ou menor grau de formalização, existe em todo tipo de comunidade humana, desde as mais primitivas sociedades nômades e depois agrícolas, até as mais sofisticadas sociedades chamadas de pós-modernas.

As normas que regulavam as relações sociais de toda ordem eram, em seus primórdios, consuetudinárias e muitas vezes de natureza religiosa e foram se tornando progressivamente escritas.

Até a Revolução Americana e a Revolução Francesa, a quase totalidade dos regimes políticos eram monarquias absolutas. As monarquias absolutas de direito divino caracterizaram os sistemas jurídicos nacionais durante cerca de sete mil anos, desde as remotíssimas civilizações sumérias da Mesopotâmia até a Revolução Americana em 1776.

Nessas monarquias absolutas, as classes hegemônicas, fundamentalmente a nobreza e o clero, eram perfeitamente identificadas e exerciam o “direito“ de elaborar a legislação, muitas vezes arbitrária, contraditória e diferente de acordo com as classes sociais, e de executar as normas jurídicas que estabeleciam em nome de Deus.

Até a época de Beccaria (1738-1794), o princípio básico de nullum crimen, nulla poena sine praevia lege poenali não era aceito e assim a conduta criminosa podia ser definida a posteriori assim como a sua pena. A tortura, os julgamentos secretos, as execuções por feitiçaria eram corriqueiros e parte dos instrumentos de controle pelas classes hegemônicas dos demais setores da sociedade.

Este conjunto de normas que chamamos Direito, em seus distintos ramos, é elaborado pelas classes hegemônicas de uma sociedade através de seus representantes.

Nas democracias representativas modernas e desde as Revoluções Americana e Francesa se afirma que o povo é soberano e exerce sua soberania através de representantes eleitos.

A Constituição Americana de 1787, aprovada pela Convenção Constitucional de Filadélfia, declarava:

“Nós, o Povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral, e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América.

ARTIGO I

Seção 1 – Todos os poderes legislativos conferidos por esta Constituição serão confiados a um Congresso dos Estados Unidos composto de um Senado e de uma Câmara de Representantes.

Seção 2 – 1. A Câmara dos Representantes será composta de membros eleitos bianualmente pelo povo dos diversos Estados (…)

Seção 3 – 1. O Senado dos Estados Unidos será composto de dois Senadores de cada Estado, eleitos por seis anos pela respectiva Assembleia estadual (…)

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que viria a se tornar o preâmbulo da Constituição Francesa de 1791, estabelecia a soberania popular, na realidade a soberania nacional, e afirmava:

Art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos.(…)

Art. 3.º O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na Nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.

Todavia, a definição de povo sempre foi feita pelas classes hegemônicas em cada sociedade. Esta definição excluía, em diversos momentos e Estados, os escravos, as mulheres, os analfabetos, os indivíduos abaixo de certa idade, os pobres e os não-proprietários.

Na própria medida em que as primeiras democracias representativas resultaram de revoluções conduzidas pelas burguesias mercantis enquanto que a noção de proletariado industrial era inexistente, já que mal tinha se iniciado a Revolução Industrial, a definição de povo inicialmente correspondia àqueles que tinham determinada renda ou propriedade e que constituíam, assim, a burguesia e os proprietários rurais.

Desde então, os representantes do “povo” podem ser escolhidos através de eleições diretas ou indiretas com maiores ou menores restrições do eleitorado ou por sistemas não eleitorais, como na Arábia Saudita.

Em muitos Estados, não sendo o voto obrigatório, os representantes do povo não correspondem, necessariamente, à maioria do “povo”. Em recentes eleições em países que se apresentam como campeões da democracia o número de pessoas que exerceram o direito de voto correspondeu a percentual pequeno do total de eleitores, de cidadãos habilitados a votar.

Em outros Estados, como a Itália atual, a legislação eleitoral faz com que através de vários mecanismos legais, os representantes do povo não correspondam proporcionalmente aos votos que obtiveram no processo eleitoral.

O fato de o regime político de uma sociedade não ser democrático, não significa que não haja um grupo de pessoas encarregado de elaborar as normas jurídicas que regem as relações sociais.

As determinações das normas jurídicas são impostas aos indivíduos, às pessoas jurídicas privadas e aos próprios dirigentes das agências do Estado pelo próprio Estado.

O Estado detém o monopólio da força no território sob sua soberania para obrigar a obediência às determinações dessas normas. A definição de soberania é justamente o território nos limites do qual as classes hegemônicas que controlam o Estado têm força para impor obediência às normas que elaboram.

O processo pelo qual são escolhidos os legisladores e o processo pelo qual são elaboradas essas normas é a política. Assim, como faz parte da  política o processo pelo qual os dirigentes das agências do Estado implementam essas normas.

Não há um conjunto de normas único, perfeito, natural, que possa ser aplicado a todas as sociedades, pois são elas diferentes em sua evolução e em suas características econômicas, sociais, religiosas, culturais etc., assim como são diferentes os interesses e as visões de suas classes hegemônicas (e de frações dentro dessas classes).

Não há conflito entre o sistema jurídico, o ordenamento jurídico de uma sociedade e os interesses essenciais de suas classes hegemônicas. Não há conflito entre Direito e atividade política, pois é esta ultima que gera as normas jurídicas e as implementa.

O conflito político essencial é sempre entre as classes hegemônicas de uma sociedade, de um lado, e as demais classes sociais, sujeitas à sua hegemonia que se exerce pelas normas jurídicas e pelos agentes de sua implementação, enquanto conflitos menores surgem permanentemente entre diferentes segmentos das classes hegemônicas constituindo o que se denomina, superficialmente, de disputa política quotidiana naqueles Estados onde existem parlamentos.

O conjunto de normas jurídicas de uma sociedade, o seu Direito tem como principal fundamento o sistema econômico e social que as classes hegemônicas impõem àquela sociedade.

O conjunto de normas jurídicas que organiza os procedimentos pelos quais a sociedade escolhe representantes para elaborar a legislação, isto é, as normas jurídicas sobre quem pode votar, e quem pode ser eleito, é o cerne do sistema político-jurídico.

O Estado é o conjunto de normas e de agências que as elaboram e as implementam, criadas pelas classes hegemônicas que controlam a população que habita um determinado território. O controle da população que habita determinado território é exercido em primeiro lugar pelo controle do processo de formação de ideologias, de visões da sociedade, de interpretação da realidade e, em último caso, pela força.

O processo histórico, desde as revoltas de escravos na antiga Roma e as guerras camponesas da Idade Média, corresponde essencialmente à luta das classes oprimidas contra as classes hegemônicas para procurar alterar, em seu benefício, as normas que organizam a vida social e econômica de uma comunidade, o que torna necessário assumir o controle das agências do Estado, de forma revolucionária ou não.

O controle que as classes hegemônicas exercem sobre um território e a população que o habita tem como finalidade principal organizar a atividade econômica em seu proveito e garantir a defesa de seu sistema contra eventuais agressões externas.

Um desafio fundamental do sistema político-econômico liberal nas sociedades capitalistas modernas, desenvolvidas ou subdesenvolvidas, é de como transformar em poder político o poder econômico altamente concentrado nessas sociedades.

No sistema econômico capitalista, cada unidade monetária corresponde a um voto e quanto mais rico o indivíduo, maior seu poder econômico. No sistema político liberal, a partir das conquistas dos movimentos pelo sufrágio universal, pelo sufrágio feminino e dos movimentos políticos dos trabalhadores, a cada cidadão, como tal definido pela norma, passou a corresponder um voto. Estas conquistas pelo sufrágio criaram entre o sistema econômico capitalista e o sistema político liberal uma contradição de grande importância e, na realidade, um dilema crucial da sociedade moderna, pois é no sistema político que são elaboradas as normas que organizam as atividades econômicas de produção e de distribuição dos resultados da produção.

Nos primeiros sistemas políticos liberais a partir da Revolução Francesa, esta questão tinha sido resolvida pela adoção do sistema censitário, que excluía os não-proprietários e as mulheres do sistema político, enquanto que nos Estados Unidos as mulheres e os escravos eram excluídos do sistema político.

À medida que as reivindicações econômicas e políticas das massas de trabalhadores e das mulheres foram sendo vitoriosas, as classes hegemônicas nas diferentes sociedades resolveram este dilema através da influência do poder econômico no processo político de escolha dos representantes do povo; da adoção de sistemas de voto não obrigatório, a partir da ideia de que o voto é apenas um direito e não um dever do cidadão; e da desmoralização permanente pela mídia da atividade política como corrupta e corruptora e, portanto, da qual os cidadãos comuns não deveriam participar a não ser por ocasião das eleições.

Os meios de comunicação, através de seus múltiplos veículos e manifestações, são, no Estado moderno, instrumentos das classes hegemônicas (de seu conjunto ou de frações delas) para garantir o controle por uma ínfima minoria do sistema político e econômico e para garantir que a enorme maioria se resigne ou aceite o domínio das classes hegemônicas em um mundo que, apesar de toda violência, exploração e opressão, é apresentado, por estes meios de comunicação (e pela academia) como o melhor dos mundos possíveis.

Da Política Internacional

O Direito Internacional é construído pela política internacional a qual é, por sua vez, o entrechoque de iniciativas e ações de toda ordem, desde as pacificas às mais violentas, em que se envolvem as diversas agências dos Estados nacionais, os organismos intergovernamentais, as megaempresas multinacionais e as organizações não governamentais.

O sistema internacional durante o período que se inicia com a Descoberta das Américas em 1492 até o inicio do processo de descolonização no final da década de 1960, foi um sistema formalmente oligárquico, dominado por grandes impérios e seus territórios coloniais e resultado da expansão e da evolução do sistema de produção capitalista e das diversas formações políticas em que este foi se estruturando, desde as monarquias absolutas de direito divino, às monarquias constitucionais até as democracias liberais da atualidade.

Durante o longo período que se inicia com a derrota de Napoleão em 1815 e vai até a Primeira Guerra Mundial, a expansão político-econômica capitalista foi liderada pelo Império Britânico quando esta liderança passou a sofrer a contestação alemã imperial na Primeira Guerra Mundial e nazista na Segunda Guerra Mundial e do sistema socialista na URSS e mais tarde na China (e em alguns outros Estados menores, mas não menos importantes pelas consequências, como Cuba e o Vietnam ) .

A partir da Segunda Guerra Mundial e do movimento de descolonização e mais tarde de desintegração e adesão dos países ex-socialistas ao capitalismo, as classes hegemônicas dos países altamente desenvolvidos capitalistas, tendo à sua frente as classes hegemônicas dos Estados Unidos, procuraram reconquistar e  consolidar o seu domínio através de acordos internacionais que consagrassem e legalizassem (e assim de certa forma legitimassem) seus privilégios. Neste processo político-econômico-militar-jurídico tinham elas pela frente o desafio do conceito de Estado nacional soberano (tão caro aos países vitimas do nazismo e em crescente difusão no mundo colonial) e os princípios de não intervenção e autodeterminação, consagrados na Carta das Nações Unidas, e também tão caros aos países menos poderosos militarmente de todos os continentes.

Os Estados nacionais, entre eles especialmente os Estados Unidos, são os atores essenciais do entrechoque de iniciativas e ações que se verificam no sistema internacional e que constitui a política internacional. Gera ela o Direito Internacional.

Do Direito Internacional

Somente os Estados têm o poder de elaborar normas jurídicas e de impor o seu cumprimento, se necessário pela força, aos indivíduos e às empresas que se encontram em seu território. Organismos internacionais, organizações não governamentais, megaempresas internacionais não têm poder para elaborar e impor normas jurídicas, por mais influentes e poderosas que possam ser.

O Estado nacional pode ser definido como o conjunto de órgãos que em uma sociedade elabora normas jurídicas, as implementa e dirime conflitos quanto à sua interpretação e a seu cumprimento. A forma como são escolhidos os indivíduos que integram estes órgãos do Estado – Executivo, Legislativo e Judiciário – varia de país para país, assim como o seu funcionamento, mas isto não afeta a natureza e os direitos dos Estados em nível internacional.

Os Estados podem ser mais ou menos democráticos. O grau de democracia depende do grau de participação da população nos organismos que elaboram as leis, que as executam e que resolvem os conflitos que decorrem de sua execução. Todavia, democráticos ou não, são eles soberanos e tem sua soberania reconhecida pelos demais Estados.

A soberania como característica essencial do Estado corresponde ao poder exclusivo de elaborar leis e de fazer cumpri-las em seu território, sobre todos aqueles – indivíduos e empresas – que nele habitam ou que nele se encontram, ainda que temporariamente. As leis de outros Estados não se aplicam em seu território nem os agentes estrangeiros podem pretender nele implementá-las. Em seu território, tal como delimitado por suas fronteiras e aceito pelos demais Estados, o Estado exerce o monopólio legal da força em relação a qualquer indivíduo ou organização. Não há região da Terra, à exceção dos oceanos, da Antártica, e do espaço aéreo internacional que não se encontre sob a jurisdição de algum Estado.

Não há nenhum poder acima dos Estados na esfera internacional. Os acordos internacionais que limitam a competência dos Estados tem vigência no território dos Estados porque os Estados os aceitam e incorporam suas disposições a seus ordenamentos jurídicos nacionais.  Os Estados podem a qualquer momento denunciar qualquer um desses acordos, sem serem legalmente, ainda que possam ser politicamente, sancionados por isto.

Os Estados não são o resultado de um pacto entre os cidadãos que abdicaram, em um momento histórico, de parte de sua liberdade “natural” em favor de um organismo criado para permitir a convivência pacifica na sociedade. Os Estados são, de fato, a emanação das classes hegemônicas de uma sociedade. São essas classes que os organizam, definem sua estrutura, suas normas de funcionamento e o fazem em seu próprio benefício. Os Estados, que são uma emanação da correlação estrutural de forças em uma sociedade, tem o poder de se autodeterminar. A autodeterminação é o direito de uma sociedade, através de seu Estado, de  definir as normas que regem as relações entre indivíduos, empresas e organizações privadas e públicas, quer sejam políticas, econômicas, sociais, religiosas, sem obedecer a quaisquer parâmetros externos, exceto aqueles que tenha aceito em decorrência de sua adesão a acordos internacionais. Este direito da sociedade, e de seu Estado,  à autodeterminação corresponde à ideias de origens e de evolução distintas das diferentes sociedades humanas.

As relações pacíficas entre as distintas sociedades e respectivos Estados e a segurança internacional dependem do respeito ao princípio de não-intervenção nos assuntos internos dos Estados e do reconhecimento, pelos Estados mais fortes, do direito de autodeterminação. Todavia, a violação do principio de não-intervenção ocorre permanentemente de modo que pode ser direto, militar, ou assumir a forma de ameaças, pressões e sanções políticas e econômicas.

Os Estados mais poderosos, militar, econômica e politicamente, intervém nos assuntos internos dos Estados menos poderosos para fazer com que adotem normas ou políticas de seu interesse, isto é que beneficiem as sociedades que representam, em flagrante desrespeito ao direito de autodeterminação. Esta intervenção pode ter como objetivo modificar a própria estrutura do outro Estado ou modificar as políticas desenvolvidas por seu governo ou promover a queda, a mudança de governo. Esta intervenção pode ser exercida de forma aberta ou pode ser promovida através de operações encobertas, pela ação constante de agências de informação, de contrainformação, de espionagem e de subversão. Essas formas de intervenção são ilegais à luz do Direito Internacional, mas ocorrem todos os dias, sem cessar.

Os princípios de natureza política, econômica e militar que constituem os marcos gerais das relações entre os Estados se encontram definidos na Carta das Nações Unidas. Esses princípios são a igualdade soberana dos Estados; a autodeterminação; a não-intervenção nos assuntos internos dos países; o respeito às fronteiras nacionais; a solução pacífica de controvérsias; o não uso da força e de ameaças à integridade territorial e à independência política; a cooperação entre os Estados para enfrentar os problemas econômicos, sociais e culturais.

A Carta das Nações Unidas foi aprovada por 51 Estados, na Conferência de São Francisco, em 1945, e tem hoje 194 membros. Seu objetivo principal era criar um sistema de segurança coletiva que evitasse um novo conflito mundial de dimensões catastróficas, como a Segunda Guerra Mundial, e organizações econômicas que impedissem uma nova crise econômica internacional das dimensões da crise de 1929, que contribuiu para a emergência do nazismo. A Carta dividiu os Estados em dois grupos: aqueles cinco Estados – Estados Unidos, União Soviética, Grã Bretanha, França e China – com direito a assentos permanentes no Conselho de Segurança e os demais Estados. O Conselho de Segurança detém o monopólio legal do uso internacional da força e todos os Estados, enquanto membros das Nações Unidas, são obrigados a cumprir suas decisões. Todavia, os membros permanentes tem o poder de impedir, pelo exercício do direito de veto, o exame e a tomada de qualquer decisão pelo Conselho de Segurança que possa prejudicar seus interesses.

As regras jurídicas fundamentais que regem as relações econômicas entre os Estados se encontram definidas principalmente nos acordos que criaram o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio e seus princípios correspondem basicamente aos conceitos da economia clássica liberal, hoje sob o nome de neoliberalismo.

O Fundo Monetário Internacional exerce uma função fiscalizadora dos compromissos de política econômica que dezenas de Estados subdesenvolvidos vieram a assumir em decorrência de dificuldades de balanço de pagamentos e de endividamento externo que os levaram a solicitar o auxilio do FMI para renegociar dividas e obter empréstimos junto a bancos privados e instituições financeiras oficiais de países altamente desenvolvidos. O FMI  somente atende a estas solicitações em troca de compromissos de execução rígida de políticas econômicas clássicas.  Naturalmente, os desequilíbrios e os desregramentos na execução das políticas econômicas dos grandes Estados não ficam de nenhuma forma sujeitos à fiscalização e muito menos às sanções do Fundo Monetário.

A Organização Mundial do Comércio resultou de uma longa negociação, iniciada e conduzida pelos Estados Unidos no âmbito do Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio – GATT, cujo objetivo, aliás alcançado, era criar uma entidade econômica de nível mundial que pudesse tornar legitimas e obrigatórias, em especial para os países subdesenvolvidos, políticas econômicas baseadas em princípios adotados pelos países altamente desenvolvidos, basicamente os princípios do neoliberalismo. 

Na área militar, os acordos para impedir a proliferação de armas de destruição em massa – em especial nucleares – dividiram os Estados em dois grupos: aqueles Estados que tem o direito legal de possuir e de usar tais armas – por “coincidência” os membros permanentes do Conselho de Segurança-  e os demais Estados.

A construção do Direito Internacional, desde a Segunda Guerra Mundial, correspondeu a um esforço no sentido de fortalecer os direitos oligárquicos das Grandes Potências capitalistas ocidentais, conduzidas pelos Estados Unidos, nas áreas política, econômica e militar. As tão apregoadas conquistas na área de direitos humanos, tais como o Tribunal Penal Internacional e os tratados sobre direitos humanos nas Américas, não contam com a participação dos Estados Unidos, a grande potência com capacidade de intervenção em nível mundial.

A atual sociedade internacional não é, portanto, nem de fato nem de direito uma sociedade democrática criada e constituída por Estados iguais e soberanos, mas sim uma sociedade oligárquica em que, no dizer de Tucídides,
“… os poderosos extorquem tudo que podem e os fracos concedem o que são forçados a conceder.”

Este processo de consolidação do Poder pelos Estados Unidos (e os Estados desenvolvidos em sua órbita) através da negociação sob intensa pressão, de uma teia de acordos de toda ordem ocorre sob  disfarce ideológico e midiático permanente que divulga a visão utópica  de uma comunidade internacional democrática, regida pelo direito internacional, voltada para os ideais de segurança, de desenvolvimento e de progresso, objetivos que não se alcançam apenas devido à existência e à ação maligna de Estados párias, fora da lei, e de organizações terroristas demoníacas.

Se não fosse pela ação destes Estados e destas organizações, (que “tem” de ser combatidos a qualquer custo, tais como assassinatos seletivos, embargos econômicos, ações militares unilaterais) a comunidade internacional, sob a liderança “benéfica” dos Estados desenvolvidos, capitalistas e liberais, em especial os Estados Unidos da América, o Novo Império, certamente, segundo eles, atingiria aqueles objetivos de paz, igualdade soberana, desenvolvimento e progresso.

Todavia, diante dessa hegemonia dos Estados Unidos (para a qual colaboram e da qual se beneficiam os Estados desenvolvidos capitalistas em sua órbita) surge a “ameaça” da República Popular da China, em pleno processo de acelerado desenvolvimento econômico, científico, tecnológico e militar, diante da qual já se organiza a defesa americana de seus privilégios imperiais.

Publicado em Carta Maior