Contracorrente – reafirmando a classe operária

Em contraposição às teses predominantes no movimento comunista, que defendiam a proletarização da classe média e a incorporação do conjunto dos assalariados urbanos nas fileiras da classe operária, surgiu uma corrente dentro do marxismo que negava essa possibilidade. Dela, o principal expoente era Nicos Poulantzas.

O debate sobre o pertencimento de classe dos “assalariados médios” fez parte da grande disputa no movimento comunista internacional entre os intelectuais pró-soviéticos e os intelectuais pró-chineses, que estavam impressionados com a crítica maoísta ao revisionismo moderno e com a experiência da “grande revolução cultural proletária”.

Os denominados comunistas antirevisionistas condenavam as mudanças de rumo ocorridas na URSS desde a ascensão de Kruschev. Segundo eles, a tentativa soviética de eliminar a nítida divisão entre a pequena-burguesia e a classe operária teria por objetivo justificar o modelo de construção socialista russo, que manteria a divisão entre trabalho intelectual e manual, o despotismo fabril, a burocratização do Estado e da economia. Também acobertaria a submissão ideológica do proletariado.

Poulantzas e a nova pequena burguesia

Poulantzas travou uma luta teórica contra as correntes que negavam a especificidade de classe desse novo conjunto de trabalhadores assalariados não-produtivos, que se desenvolveu na fase monopolista do capitalismo, incluindo-o nas fileiras da classe operária. Discorda da tese de que estaria ocorrendo uma fusão dos trabalhadores não-manuais (e não diretamente produtivos) com a classe operária.

A principal consequência dessa tese (fusão dos assalariados médios e dos operários numa única classe)é que ela omitiria as contradições existentes entre esses dois grupos de trabalhadores, “pervertendo em longo prazo os interesses próprios da classe operária, única classe revolucionária até o fim” (POULANTZAS, 1975:221). O reconhecimento de que esses assalariados médios (não-manuais e não-produtivos) não pertencem à classe operária “é essencial para o estabelecimento de uma base justa de aliança popular, sob direção e hegemonia da classe operária” (POULANTZAS, Idem, ibidem).

Para Poulantzas, esse novo conjunto de assalariados (não-manuais e não-produtivos) pertenceria à outra classe: a pequena-burguesia. Mais precisamente a uma fração desta: a nova pequena-burguesia. Embora a nova pequena-burguesia e a pequena-burguesia tradicional tenham posições diferentes ao nível das relações sociais de produção (relação de propriedade e de assalariamento), elas têm, no plano ideológico, proximidades – e é isso que lhes permite incluir os dois grupos sociais em uma mesma e única classe.
Para ele, a determinação das classes não seria dada exclusivamente ao nível das relações econômicas, no sentido restrito, mas abrangeria outros dois níveis: a dimensão ideológica e política. Seriam as articulações complexas desses três níveis (econômico, político e ideológico) que permitiria determinar o pertencimento de classe dos diversos agrupamentos sociais, especialmente das classes médias ou da pequena-burguesia.

Somente através do rompimento com as concepções economicistas das classes sociais seria permitido compreender o lugar desses assalariados não-manuais e não-produtivos. Afirmou Poulantzas: “a referência às relações políticas e ideológicas é absolutamente indispensável para circunscrever o lugar da pequena-burguesia na determinação estrutural de classe: não somente para fundamentar o pertencimento da pequena-burguesia tradicional e da nova pequena-burguesia a uma mesma classe, mas também e, sobretudo, a fim de entender esse lugar da nova pequena-burguesia em relação à classe operária” (POULANTZAS, 1975:224).

Ele reconhece a existência de diferenças importantes entre esses dois agrupamentos. A pequena-burguesia tradicional seria originária de um modo de produção anterior ao capitalismo e tenderia a desaparecer, a nova pequena burguesia cresceria e se fortaleceria com o desenvolvimento do capitalismo monopolista. Além disso, essa nova pequena-burguesia, ao contrário da anterior, não teria a propriedade dos meios de produção e exerceria um trabalho “remunerado sob a forma de salário” (POULANTZAS, 1975:227). Resultado: ela não teria nenhum apego especial à propriedade privada dos meios de produção.

O conceito de classe operária (ou proletariado), por sua vez, estaria vinculado ao de trabalho manual e produtivo estrito senso. “A classe operária é delimitada (…) pelo trabalho produtivo” e este seria o que produz diretamente a mais-valia: que valoriza o capital e que é trocado pelo capital.

Os assalariados da nova pequena burguesia (comerciários, bancários, professores etc.) não produziriam mais-valia. Eles “contribuiriam simplesmente para repartição da massa da mais-valia entre as frações do capital, segundo a taxa média de lucro. Certamente, esses trabalhadores assalariados são também explorados, e seu salário corresponde à reprodução de sua força de trabalho. (…) (eles) são extorquidos do sobretrabalho, mas não são explorados diretamente, segundo a relação de exploração capitalista dominante, a criação de mais-valia” (POULANTZAS, 1975:230).

O autor avança na sua definição de trabalho produtivo, dando-lhe um sentido ainda mais restrito. A mais-valia deveria ser produzida através de um trabalho que intervém diretamente na produção material, ou seja, é preciso que haja uma relação direta (física) com os meios de produção. O trabalho manual, portanto, seria uma das características essenciais na definição de classe operária. Nega as conceituações ampliadas de proletariado e de trabalho produtivo que incluiriam, segundo indicações do próprio Marx, o “trabalhador coletivo”.

Uma das principais distinções entre os assalariados da nova classe média e a classe operária estaria relacionada com a separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. “Essa divisão trabalho intelectual/trabalho manual não somente se limita a uma divisão técnica do trabalho, mas constitui de fato, em todo modo de produção dividido em classes, a expressão concentrada da correspondência das relações políticas e ideológicas (político-ideológicas nesse sentido) na sua articulação com as relações de produção” (POULANTZAS, 1975:253).

A relação, ou polarização, que se estabeleceria entre os diversos segmentos dos assalariados e o trabalho manual e intelectual seria uma das condições para averiguar o pertencimento de classe de cada um desses grupos de trabalhadores. Conforme se localizem do lado do trabalho intelectual ou do trabalho manual, poderiam ser definidos como operários ou como nova pequena-burguesia. Além, é claro, do fato de serem ou não diretamente produtivos para o capital.

O trabalho manual na consciência pequeno-burguesa (tradicional ou moderna) estará sempre relacionado com “um trabalho mais penoso, um trabalho que requer, na ordem de sua valorização do trabalho intelectual, menos ‘conhecimentos’, menos ‘aptidões’. Um trabalho ao qual falta o ‘não sei o que’ que faz a ‘qualidade’ e a ‘superioridade intelectual’” (POULANTZAS, 1975:281). Essa determinação estrutural, divisão trabalho intelectual/trabalho manual, seria sempre uma barreira a separar a nova pequena-burguesia e a classe operária.

Outra distinção, que se articularia com a anterior, seria a existência de uma divisão entre funções de controle/supervisão (não-manual) e de execução, que acabaria reproduzindo uma relação de dominação no próprio interior do processo de produção. Os engenheiros, técnicos, gerência não fariam parte da classe operária justamente porque exerceriam funções de direção delegadas pelo capital e cujo principal objetivo é extrair a mais-valia dos operários manuais. Eles seriam “os portadores da reprodução das relações ideológicas no próprio seio do processo de produção material” (POULANTZAS, 1975.). As distinções entre trabalho intelectual e manual, entre funções de controle e de execução não seriam naturais, ditadas pelos imperativos da técnica moderna, elas seriam constituídas histórica e socialmente – servindo para manter a submissão dos operários ao capital – e deveriam começar a ser superadas durante a transição ao socialismo.

O processo de burocratização das empresas e instituições modernas, ao contrário do que a maioria dos teóricos marxistas afirma, não aproximaria os assalariados da nova pequena-burguesia dos operários. Poulantzas não aceita a tese de que a burocratização seria uma forma particular do despotismo fabril, e, por isso, teria sobre os assalariados pequeno-burgueses (colarinhos brancos) os mesmos efeitos (ideológicos) que o despotismo fabril tem sobre os operários.

A burocratização reproduziria e fortaleceria aspectos da ideologia pequeno-burguesa, por exemplo, a “tendência a exercer relações induzidas de autoridade e de ‘segredo do saber’ sobre os agentes subalternos” (POULANTZAS, 1975:300). O papel da carreira no processo de burocratização só faz reforçar a ideologia meritocrática da ascensão social entre a nova pequena-burguesia. Poderia acirrar a concorrência e não fortalecer a solidariedade.

No despotismo fabril a burguesia dominaria e oprimiria a classe operária. Através dele buscaria aumentar o nível de exploração de mais-valia. Por outro lado, o despotismo não permitiria a criação de relações de dominação/subordinação entre os próprios operários. As condições de trabalho da classe operária, vinculadas ao processo de socialização do trabalho produtivo, anulariam, ou pelo menos minimizariam, as tentativas da burguesia de impor fragmentações assentadas na hierarquia, na polarização entre trabalho intelectual e manual. A própria condição operária seria contraditória com a hierarquização burocrática de funções.

Segundo Poulantzas, alguns traços ideológicos dessa nova pequena-burguesia seriam: o anti-capitalismo, mas que se inclinaria fortemente em direção às ilusões reformistas; hostilidade à “grande riqueza”, mas articulada à defesa da manutenção das hierarquias salariais. O principal motivo de sua ação seria ainda o medo da proletarização, ou seja, o medo de qualquer transformação revolucionária que possa ameaçar os “privilégios” de sua condição de trabalhador não-manual, como o status e prestígio. Na consciência pequeno-burguesa polarizada pelo proletariado, o limite estaria na aceitação da socialização das forças produtivas entendida apenas como estatização dos meios de produção. O estatismo, nas suas mais diversas formas, tem sido também uma das características da ideologia pequeno-burguesa no seu conjunto.

Contudo, algumas frações da nova pequena-burguesia possuem condições mais favoráveis para uma aliança com a classe operária, colocando-se, inclusive, sob a sua direção. A fração de assalariados não-produtivos mais próxima dos operários manuais é representada pelos assalariados de base do setor comercial. Estes estariam mais próximos da barreira que separa o trabalho intelectual do manual. Eles estariam nos limites da condição de classe operária, embora ainda não possam se fundir com ela. Esta fração foi também a menos afetada pelo processo de burocratização do trabalho não-produtivo (POULANTZAS, 1975:352). Este seria o único setor da nova pequena-burguesia que teria conhecido um verdadeiro processo de proletarização.

Aqui se encontra um dos limites da análise de Poulantzas. Por que a condição de produtores de mais-valia, o trabalho produtivo estrito senso, deveria ser o principal critério de definição de classe operária? Como ficariam os assalariados não-produtivos (de mais-valia) que não exercem nenhuma função de supervisão e realizam um trabalho majoritariamente, ou exclusivamente manual? Os exemplos mais típicos dessa situação são os faxineiros das grandes empresas capitalistas ligadas ao setor financeiro (ou comercial) e os motoristas de ônibus urbanos. Não teríamos, aqui, a volta de uma concepção economicista das classes sociais tão criticada pelo próprio Poulantzas?

Em minha opinião as duas definições tradicionais de proletariado (como conjunto uniforme dos assalariados ou como sinônimo de operário manufator diretamente produtivo) não satisfazem plenamente.

Conclusão

A principal definição de classe no interior do marxismo foi realizada por Lênin. Ela foi dada num único parágrafo do texto intitulado Uma grande iniciativa. Ali, ele afirma: “Chamam-se classes a grandes grupos de pessoas que se diferenciam entre si pelo lugar num sistema de produção social historicamente determinado, pela relação (…) com os meios de produção, pelo seu papel na organização social do trabalho e (…) pelo modo de obtenção e pelas dimensões da parte de riqueza social de que dispõem. As classes são grupos de pessoas, um dos quais pode apropriar-se do trabalho do outro graças ao fato de ocupar um lugar diferente num regime determinado da economia social”. Aqui Lênin trata apenas da dimensão objetiva da classe social – a “classe em si” – e não dos aspectos subjetivos. E a definição de classe no sentido forte deve ter em conta essas duas dimensões: materialidade (objetividade) e consciência (subjetividade).

Utilizarei essa conhecida formulação leninista para tentar definir (objetivamente) o que seja o proletariado moderno. Este seria composto pelo conjunto dos assalariados vinculados diretamente ao processo de produção e de realização da mais-valia. Portanto, produtivos do ponto de vista do capital. Eles também realizariam um trabalho parcial, subordinado às ordens dos funcionários superiores (chefes e gerentes) que controlariam o processo produtivo – ou seja, decidiriam o que, quando e como produzir —, sob o comando geral dos capitalistas. O proletariado, enquanto classe, não está apenas destituído dos meios de produção e dos produtos de seu trabalho, mas também do controle sobre o processo de produção.

Portanto, o conceito de proletariado vai muito além do de operário fabril tradicional, mas não chega a se confundir (ou se fundir) com o conjunto dos trabalhadores assalariados. Ele incorpora os bancários, comerciários, professores.

Embora concorde que essa ampla gama de assalariados compõe uma única e mesma classe (o proletariado), não acredito que seja possível afirmar que exista uma fusão entre todos eles (manuais/não-manuais, produtivos/não-produtivos), que poderia se traduzir na constituição de uma única ideologia, um único partido ou um único projeto societário – modelo único de socialismo.

Utilizando livremente uma contribuição teórica do próprio Marx em suas obras históricas, podemos afirmar que a classe proletária, como a burguesia, não se compõe enquanto um bloco monolítico, sem fissuras. Ela se divide, e se subdivide, em frações e camadas distintas. Cada uma dessas frações, e camadas, é portadora de ideologias próprias e, por conseguinte, projetos societários e formas de organização corporativas e políticas também diferenciadas. Levamos aqui em conta uma preciosa indicação de Marx, para o qual “entre o empregado do comércio e os trabalhadores diretamente empregados pelo capital industrial deveria se dar a mesma diferenciação que se dá entre o capital industrial e o capital mercantil” (MARX, K. O Capital, Livro 3, Vol. 5, p. 345).

Analisemos o caso das frações da burguesia. Embora a burguesia comercial não extraísse diretamente a mais-valia dos operários, como ocorre com a burguesia industrial, ela não deixa de compor com esta uma única e mesma classe – a classe burguesa. O interesse que as une é a manutenção do sistema capitalista. Mas, em conjunturas nas quais este interesse fundamental não está ameaçado, elas podem se confrontar em relação às políticas econômicas a serem adotadas pelos governos capitalistas, se organizar em entidades corporativas e partidos distintos. Estas desavenças não raramente desembocaram em conflitos armados (golpes de Estado, guerra civil e revoluções).

Se no processo da revolução burguesa a sua fração industrial teve o papel de vanguarda, unificando e às vezes combatendo outras frações de sua própria classe, no processo da revolução socialista caberá à classe operária estrito senso o papel de vanguarda. Portanto, o futuro do socialismo não é indiferente em relação a qual fração de classe do proletariado estará à frente do processo revolucionário e de construção do novo Estado socialista.

Nenhuma das frações, ou camadas, do proletariado tem interesse na manutenção indefinida do modo de produção capitalista. Como assalariados, não têm interesse especial pela manutenção da apropriação privada dos meios de produção. E justamente por isso podem se unificar num projeto de transição revolucionária. Mas existe uma forte tendência nos setores médios – assalariados intelectuais – em apostar nas saídas reformistas e de obstaculizarem o próprio processo de transição do socialismo ao comunismo.

A transição para ser bem sucedida, e não ficar incompleta, deve romper com a burocratização da vida social – eliminando gradualmente o Estado – e a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, ou seja, não basta a estatização dos meios de produção é preciso também que sejam revolucionarizadas as relações de produção. A ideologia (meritocrática) particular dessa fração do proletariado é avessa a essas tarefas essenciais no processo de transição. Nesse sentido, podemos afirmar que grande parte da descrição que Poulantzas faz da ideologia desses “assalariados médios” é correta.

Isto, no entanto, não nos deve fazer aceitar as suas teses que incluem esses “assalariados médios” na chamada classe dos pequeno-burgueses. As diferenças entre eles e os pequenos proprietários e profissionais autônomos são muito grandes. Não só em relação aos meios de produção (relação de propriedade e não-propriedade) e ao assalariamento, mas também em relação à ideologia. Entre outras coisas, os assalariados não têm um apego especial à apropriação privada dos meios de produção, visto que não são proprietários e esse fato tem consequências no plano ideológico e político.

A incorporação dessa fração do proletariado (de camadas médias) no processo revolucionário e de construção socialista não será um processo fácil, pelos limites apresentados acima, mas é algo possível e necessário. Será preciso um grande esforço político-prático da classe operária, dirigida pelas suas organizações de vanguarda, para afastar importantes setores dos assalariados não-manuais e maiores rendimentos (e status social), impregnados por preconceitos pequeno-burgueses (antissocialistas), das malhas complexas das ideologias burguesas e pequeno-burguesas.

* Essa é uma versão revisada e ampliada do artigo publicado na revista Princípios n°64 – de fevereiro/abril de 2002.

** Augusto C. Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

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