Terceirização: a ponta de um enorme iceberg
A ênfase da mídia e dos seus representados na defesa do Projeto de Lei da terceirização revela a alma da direita brasileira. Ela tira a máscara da hipocrisia dos que tentam tergiversar quando assuntos que mexem com o cotidiano da sociedade são debatidos e mostra com nitidez a memória da elite senhorial associada à Coroa Portuguesa que historicamente se formou por aqui, beneficiária do mercantilismo e do trabalho escravo. Uma elite que, não por acaso, é definida como branca, conceito que ela tenta desqualificar por atingi-la em cheio.
Até Cândido, Poliana e a Velhinha de Taubaté encontrariam dificuldades em acreditar que esse Projeto de Lei significa a modernização das relações de trabalho. Em bom português, ele é uma empulhação que troca o futuro pelo passado. Ou por outra: deixa evidente que a luta política feroz da ideologia direitista para que o século XIX nunca termine no Brasil é para valer. Ainda temos por aqui a dominação de oligarcas que consideram desacato, ofensa pessoal mesmo, o fato de serem tratados como iguais.
Produtivismo versus distribuitivismo
Nos governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) essa lógica era explícita; dizia-se abertamente no governo que ao enfraquecer o trabalho o capital seria atraído mais facilmente. Já no seu discurso da primeira posse, em janeiro de 1995, o presidente neoliberal prometeu acabar com a “era Vargas”. E, ao longo do seu reinado, fez do Brasil um dos recordistas mundiais de desregulamentação trabalhista. FHC, na verdade, radicalizou um processo iniciado com o golpe militar de 1964, quando as bases das relações entre capital e trabalho instituídas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943 começaram a ser atacadas.
Mário Henrique Simonsen e Roberto Campos, os mais destacados formuladores da política econômica do regime militar, publicaram, em 1974, um livro chamado A Nova economia brasileira no qual não deixaram dúvidas sobre o que estava em jogo quando os militares golpistas assaltaram o poder. Segundo eles, o dilema produtivismo versus distribuitivismo precisava de uma imediata solução. “A primeira estabelece como prioridade básica o crescimento acelerado do produto real, aceitando, como ônus de curto prazo, a permanência de apreciáveis desigualdades sociais individuais de renda. A segunda fixa como objetivo fundamental a melhoria da distribuição e dos níveis de bem-estar presente”, escreveram.
Tecnocracia privada
O modelo seguido, evidentemente, foi o produtivista, que tornou-se popular quando Delfim Netto afirmou que primeiro era preciso fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo. O seu pré-requisito básico era garantir força de trabalho barata, incluindo nesse conceito, além do achatamento salarial, o enfraquecimento dos sindicatos e a “flexibilização” das leis trabalhistas. Ao definir os aumentos salariais como uma das principais causas da inflação, os gestores do modelo estabeleceram uma austera política salarial — como se viu ao longo desse tempo, principalmente com o salário mínimo — e a precarização do vínculo empregatício.
A ordem estabelecida em 1964 também inaugurou a gestão econômica do país por uma tecnocracia privada, que representa os negócios das corporações dentro do governo, tendência que se acentuou na “era FHC” e cujos preceitos ideológicos ainda são fortes, mesmo depois de tantos anos de governos progressistas. Mas ela é, há muito tempo, desmascarada de forma consistente — já em 1981, no livro O Brasil pós-milagre, Celso Furtado constatou amargamente: “Poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão anti-social.”
Completa subordinação
O resultado mais nítido dessa imposição é o alargamento da enorme distância entre patrão e empregado, em termos econômicos e políticos. Poucos países ostentam uma distinção social tão marcada como a nossa. A elite brasileira, que sempre viveu sob a proteção do Estado, de modo fisiológico e clientelista, não aceita outra posição do restante da população senão a completa subordinação. E os governos quase sempre estiveram ao seu serviço, criando fontes de lucros e, não raro, pagando suas contas.
Lembremos que quando Luis Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência da Republica, em 2003, havia no país muita gente sem trabalho e sem o que comer. Aproximadamente 57% da População Economicamente Ativa (PEA) estavam na informalidade, sem carteira de trabalho, férias, descanso semanal remunerado, Fundo de Garantia e Previdência Social. Esses dados — além de muitos outros — são imprescindíveis para esclarecer o conjunto dos trabalhadores o que de fato representa a permanente luta do capital contra as conquistas trabalhistas.
O chicote e a cenoura
Concretamente, esse debate tem de começar pelo conceito amplamente difundido pela direita de que o conflito entre capital e trabalho é uma questão individual. A lei, segundo esse preceito, não pode se sobrepor à realidade do “mercado”. O Estado não pode determinar quais são os interesses dos trabalhadores e como eles devem ser exercidos. E as diferenças entre patrões e empregados devem ser negociadas, não legisladas. É a ideia cristalina do liberalismo direitista que privilegia o individual em relação ao coletivo. Para ela, tanto um poderoso executivo de uma multinacional quanto um operário têm as mesmas condições de negociar a duração do período de férias, o tempo da licença-maternidade e o pagamento do 13º salário.
Na economia, a linguagem cifrada em geral tem o objetivo de ofuscar as verdadeiras intenções de uma determinada política. E as mudanças globais com o fim do campo socialista têm ajudado enormemente o recrudescimento dos ataques aos direitos sociais e trabalhistas. Por trás dessa ofensiva pulsa a lógica de que a manutenção do emprego é um favor concedido pelo capital aos trabalhadores. É possível dizer que a analogia da cenoura e do chicote está presente nessa relação. Com a característica de que há muito chicote e pouca cenoura. Ou seja: há exploração demais e compensação de menos. De mãos livres, o capital arranca o cumprimento das metas de produção e de custo a seu bel prazer.