Somos, de fato, o inferno: uma defesa da retórica na ciência econômica
O artigo “O inferno somos nós”, dos professores Carlos Eduardo Gonçalves e Marcos de Barros Lisboa, publicado em 14 de fevereiro na “Ilustríssima”, levanta instigantes questões sobre o lugar da economia entre duas tradições de pensamento: de um lado, o chamado “iluminismo escocês”, herdeiro do empirismo britânico, cujos desenvolvimentos resultaram na moderna abordagem pragmática das ciências; de outro, a tradição latinista do humanismo, chamada pelos autores de “retórica”, que ajudou a conformar aquilo que hoje são as humanidades.
Os autores argumentam pela impropriedade da tradição humanística na abordagem dos problemas econômicos. Isso porque “economia não é literatura, em que boas histórias são suficientes”. A análise dos problemas econômicos deve embasar-se unicamente na ciência, a qual “requer método: argumentos precisos que possam ser contrapostos a testes empíricos”.
Ao contrário disso, a política econômica recente teria sido tomada de assalto pela “retórica”, substituindo-se a fria objetividade na análise dos fatos por considerações de cunho ideológico. Nas palavras dos autores:
“Como revela o caso brasileiro recente, a estratégia usual de quem fracassa na condução da economia não é reconhecer seus próprios erros e procurar corrigir o rumo, mas sim procurar culpados […]. O inferno são os outros. A controvérsia na academia é de outra natureza. Como evitar que sejamos reféns das nossas crenças, atribuindo os fracassos aos demais? Como identificar eventuais falhas dos nossos argumentos ou das suas implicações empíricas, evitando a armadilha do autoengano? O inferno somos nós”.
Nessa concepção, há um único caminho seguro para evitar que nos tornemos reféns de nossos valores e inclinações: a adesão irrestrita aos princípios do iluminismo escocês, caracterizado por uma postura cética e pragmática diante da verdade. “Não temos acesso à verdade”, dizem os autores; “temos, na melhor das hipóteses, conjecturas que não tenham sido rejeitadas pelos dados”.
Segundo essa compreensão, o progresso da ciência dá-se através da abstrata formulação de conjecturas e suas refutações, processo conhecido como falseabilidade.
Ora, a epistemologia contemporânea mostra-se mais interessada no processo empreendedor e histórico da ciência do que em mecanismos procedimentais. A crítica epistemológica atual afasta-se do logicismo e do empirismo, oferecendo uma série de metateorias acerca das “revoluções científicas” e dos programas de pesquisa. Assim, a opção pelo falseacionismo, que se pretende inescapável, não está isenta de pressupostos que justifiquem sua adoção.
CIÊNCIA
À parte o esforço em postular o caráter científico da economia, o artigo pouco avança. Resume-se a apresentar como inquestionáveis certas concepções de método científico que são, na verdade, bastante passíveis de questionamento. Cabe notar que a palavra “retórica” –usada como antônimo da verdadeira “ciência”– surge sempre como senha para as questões políticas e ideológicas que se pretendem expulsar da economia. Como afirmam os autores, a política “requer um juízo de valor […]. E juízo de valor não cabe à economia, mas sim à deliberação da sociedade”. Essa concepção remete-nos a um questionamento: como devemos compreender as relações entre ciência e opções político-ideológicas?
Sabemos que, na esteira do iluminismo, as primeiras tentativas de traçar uma linha intransponível entre ciência e ideologia remetem ao positivismo. A sociologia fundada por Auguste Comte (1798-1857) foi concebida como uma “física social”. Assim, a sociedade deve ser estudada com a mesma objetividade e neutralidade adotada por físicos, químicos e biólogos. Em seu “Plano dos Trabalhos Científicos Necessários para Reorganizar a Sociedade”, Comte afirma:
“Só o sensível é objeto de conhecimento, só o sensível é real. O homem deve ignorar tudo o que ultrapassa a ordem empírica. Qualquer investigação que pretenda elevar-se acima dos fatos, indagando-lhes a origem, o fim e as causas, está de antemão condenada à irremediável esterilidade. O homem só tem um modo de conhecer: o positivo, isto é, o sensível. […] A metafísica é impossível. Possível é só a ciência positiva”.
Trocássemos “metafísica” por “retórica”, e o excerto poderia passar por trecho do artigo ora comentado. Com efeito, também para os positivistas as humanidades não passam de metafísica ou de filosofia, ambas avessas à ideia de ciência verdadeira que Gonçalves e Lisboa defendem. É o delírio cientificista dos que pretendem expurgar o estudo do homem dos excessos retóricos, tomando como modelo os métodos das ciências naturais.
A questão que se coloca é: por que deveria a economia –uma ciência social– optar pelos métodos das ciências naturais em detrimento da tradição humanística? Que condições tornariam possível uma escolha objetiva e neutra entre humanismo latino e iluminismo anglo-saxão? Existiria mesmo um “ponto de Arquimedes” a partir do qual pudéssemos julgar distintas tradições de pensamento, colocando esta como superior, aquela como inferior? Ou estaria essa régua contida na ideologia que se pretende objetiva e neutra?
RETÓRICA
A retórica é parte importante das humanidades, podendo mesmo ser considerada o coração dessa tradição de pensamento. Já Aristóteles, em sua “Retórica”, a define como a arte de “discernir os meios de persuasão mais pertinentes a cada caso”. Em seus desenvolvimentos posteriores, esse campo conhecerá um momento de esplendor com os oradores romanos Cícero e Quintiliano.
Posteriormente, já na aurora da contemporaneidade, o termo ganha um sentido pejorativo indissociável da crítica desferida pelo iluminismo. Ela encontra-se bem representada nas ideias do artigo: “Nem todos os caminhos levam a Roma. Por maiores que sejam as suas limitações, argumentos precisamente definidos e testes empíricos que verifiquem a validade das conjecturas são preferíveis a teses de ocasião, desconexas, recheadas de retórica e latinismos, que buscam muitas vezes a simples desqualificação da divergência”.
É necessário destacar, na contramão desse posicionamento, o inestimável valor da retórica. Na política, no direito, na moral, na pedagogia e na economia, somos o tempo todo chamados a tomar decisões sem que possamos contar com previsões seguras ou parâmetros irrecusáveis como os termos de uma equação matemática.
Nesses campos não podemos dizer “é verdadeiro”, mas podemos dizer “é provável” ou “é verossímil”. Em mundo de evidências escassas, o papel da retórica é também o de instaurar um debate contraditório a serviço da descoberta de certezas mínimas. Nas ciências do homem e da sociedade, é necessário trocar a “busca da verdade” pela construção dialógica da opinião. Não é possível fugir do debate. Ele deve, obviamente, respeitar as regras da lógica tanto quanto as evidências empíricas.
Isso, porém, é muito diferente de dizer que, em uma ciência como a economia, devemos ater-nos a “evidências” que falam por si, independentemente de um debate entre partes que afirmam seus pressupostos. Esse debate não é exterior às ciências. Não é possível pensar que “cabe à política, não à economia, fazer a escolha entre essas opções”. As ciências sociais não podem ser apartadas, senão artificialmente, do debate político em curso.
Aqui, a pergunta que fica é: a economia deve mesmo ser expurgada do debate democrático, apartada da política, para tornar-se um instrumento frio e neutro, objeto das considerações herméticas de especialistas supostamente estribados em “evidências”? É este o sonho tecnocrático de boa parte de nossos economistas.
O que faz a retórica é chamar atenção para o fato de que, na prática científica –ainda mais nas ciências sociais e humanas–, não podemos nos livrar dos pressupostos que configuram nossa visão de mundo. Há sempre um resquício pré-compreensivo que conforma, em última instância, a própria noção de “dados observados”.
Todo o esforço para deixar a história “livre” e “neutra” como a matemática mostrou-se não apenas ineficaz mas, sobretudo, contraproducente, levando à adoção de soluções universalistas e genéricas para problemas concretos e historicamente situados –como são os problemas econômicos.
EVIDÊNCIAS
É interessante analisar alguns dos exemplos citados pelos autores como “evidências” corroboradas pelas melhores práticas metodológicas. Segundo Gonçalves e Lisboa, “a evidência indica que graves desequilíbrios fiscais geram inflação e juros elevados; que controle cambial gera desequilíbrios nas contas externas”.
Ora, o deficit fiscal norte-americano alcançou, ao longo dos primeiros seis meses de 2015, a astronômica cifra de US$ 439,5 bilhões, 6% maior que no mesmo período de 2014, e não consta que os EUA tenham inflação e juros elevados. Já o caso chinês atesta que controles cambiais não necessariamente geram desequilíbrios nas contas externas de um país. Em ambas as afirmações não há “evidências” em sentido empírico ou matemático. O que existe é um modelo interpretativo operando com hipóteses para as quais não são admitidas evidências em contrário.
Mas a melhor “evidência” de todas é a última: “Intervenções setoriais discricionárias podem ser contraproducentes”. Ora, aquilo que “pode” ser “pode” também não ser. A afirmação é tão vaga que devemos nos perguntar por que não ganhou a forma contrária –”intervenções setoriais discricionárias podem ser producentes”. Note-se que os autores da frase –absolutamente retórica e reveladora de intenções ideológicas– são os mesmos que pretendem expulsar a retórica da economia.
É esta a crítica tecida pelo humanismo contra o iluminismo positivista. Ele é também portador de uma retórica. Isso fica evidente se tomarmos o termo no sentido aristotélico, como ciência e arte da persuasão. Não pretende também o iluminismo persuadir-nos de algo? Sim; ele pretende convencer-nos de que eliminou quaisquer pressupostos para instaurar o império das “evidências”. Quando analisamos essa reivindicação, percebemos que se trata, também, de retórica. E do pior tipo, pois pretende recusar a própria retórica.
Ao contrário do que se afirma no artigo, a retórica e as humanidades são instrumentos tão legítimos quanto a ciência anglo-saxã para pensar a sociedade e propor alternativas. Excluí-las da elaboração de políticas públicas é excluir o próprio humanismo. Pretende-se que o gestor público comporte-se de um jeito “frio” e “matemático” na lida com problemas humanos!
O que fazem Gonçalves e Lisboa é afirmar uma concepção despolitizada da economia. Pretendem entregá-la a um “método científico” que, ao eximir-se de refletir sobre a posição do sujeito que conhece e enuncia, termina por legitimar os princípios funcionais à ordem dominante. A operação ocorre sob a cortina de fumaça do discurso antirretórico, pelo qual se propõe uma fantasiosa eliminação dos pressupostos de última instância.
Ao analisar atentamente essa reivindicação, vê-se que os pressupostos continuam lá, como que à espreita. Pressupostos são assim: expulsos pela porta, voltam pela janela. Numa coisa, ao menos, não é possível discordar dos autores: o inferno realmente somos nós.
CRISTIANO CAPOVILLA, 42, é mestre em ética e filosofia da linguagem pela Universidade Federal do Piauí e professor de metodologia científica da Universidade Federal do Maranhão.
FÁBIO PALÁCIO, 41, é doutor em ciências da comunicação pela USP e professor de retórica na Universidade Federal do Maranhão.
Artigo publicado na Ilustríssima da Folha de S. Paulo em 20/03/2016.