Ingredientes de um golpe parlamentar
O Advogado Geral da União, José Eduardo Cardozo, apresentou defesa da Presidenta Dilma Roussef à Comissão de impeachment, na Câmara dos Deputados. A peça de defesa é uma resposta integral e detalhada às acusações que constituem o objeto do processo de impedimento. Nela, é feita a análise profunda e esgotante dos dois motivos em que se baseia a decisão de instauração do processo contra a Presidenta da República, a saber:
I) a edição, entre 27 de julho de 2015 e 20 de agosto de 2015, de seis decretos não numerados responsáveis pela abertura de créditos suplementares, supostamente sem autorização legal;
II) o atraso, em 2015, no pagamento ao Banco do Brasil das subvenções relativas ao “Plano Safra”, impropriamente conhecido como “pedalada fiscal”.
No recebimento do processo de impeachment, o despacho de Eduardo Cunha circunscreve a acusação a essas duas situações, ou seja, Dilma é acusada de ter cometido essas duas infrações e deve responder apenas por elas.
Esse esclarecimento é fundamental, porque dá a dimensão exata do que está em julgamento no processo de impeachment.
Dilma não é acusada de ter cometido crime de corrupção, não responde por desvios de recursos, por enriquecimento ilícito, por sonegação tributária, por manter contas no exterior, por lavagem de dinheiro, ou por participação em associação criminosa, ou ainda por recebimento de propina e doações ilegais.
Portanto, não existe nada além da expedição dos decretos e dos atrasos nos repasses ao Banco do Brasil, no âmbito das subvenções do “Plano Safra”. Desse modo, a Presidente Dilma Roussef não é sequer indiciada ou investigada em nenhuma operação policial, como também não figura como ré em nenhuma ação penal.
Por absoluta ausência de condições reais para envolver a Presidenta em narrativas criminais bombásticas, restou aos denunciantes e à Eduardo Cunha se agarrarem à única ofensiva possível, qual seja, a tentativa de converter os dois motivos que sobraram da denúncia em “crime de responsabilidade”.
Outro esclarecimento: para a instauração do processo de impeachment não basta a existência de irregularidades ou mesmo a atribuição da prática de alguns ou de qualquer um dos chamados crimes comuns. É preciso que o fato constitutivo do processo corresponda à definição legal de crime de responsabilidade.
Essa é a condição sem a qual não poderá haver processo de impedimento.
Por isso mesmo é que o ato de recebimento da denúncia somente se fez possível como decorrência de um juízo de valor, segundo o qual a edição dos decretos e o atraso no pagamento das subvenções constituem atentado à Lei Orçamentária.
Na falta de elementos fáticos, reais e concretos, para construção de uma versão indicativa de alguma outra categoria constitucional de crime de responsabilidade – uma daquelas previstas no art. 85, incisos I, II, III, IV, V e VII, da Constituição da República –, a denúncia lançou mão de “pedaladas” e decretos de abertura de crédito suplementar para articular uma narrativa acusatória baseada numa interpretação valorativa insustentável, desde o plano da análise abstrata das condutas descritas no art. 10, itens 4 e 6, da Lei nº 1.079/50.
Para tanto, foi preciso criar confusão entre dois conceitos jurídicos distintos, violação da Lei de Responsabilidade Fiscal e atentado contra a Lei Orçamentária.
O erro da denúncia se repetiu na decisão de seu recebimento e foi chancelado pelo Deputado Jovair Arantes, relator da Comissão Especial do impeachment e, nessas condições, pode se reproduzir na votação em plenário da Câmara dos Deputados. Jovair Arantes foi ainda além e classificou os atrasos no repasse das subvenções do “Plano Safra” em norma que não foi sequer recepcionada pela Constituição de 1988 (art. 11, item 3, da Lei nº 1.079/50).
Seu relatório não enfrenta e nem supera os argumentos da defesa, não indica o dispositivo da LOA que teria sido violado por ato da Presidenta da República, despreza o exame do dolo – como vontade e intenção deliberada de atentar contra a Lei Orçamentária – e dos demais elementos que deveriam orientar a conclusão quanto à tipicidade abstrata das condutas imputadas na denúncia.
Pior, o relatório inova e surpreende a defesa, porque ultrapassa os limites demarcados no ato de recebimento da peça inicial do processo, avança sobre matéria estranha ao objeto da acusação, alonga-se em considerações sobre meras suposições, sem nenhum embasamento probatório – como é o caso da delação de Delcídio Amaral. Numa palavra, Arantes introduz em seu relatório acusações que não estão presentes na peça recebida por Eduardo Cunha e não faculta à Dilma Rousseff a ampla defesa, com o que viola flagrantemente o devido processo legal.
Como estratégia do golpe parlamentar em curso, a configuração do crime de responsabilidade se converte em mero detalhe processual.
Esse processo de impeachment é viciado, porque não atende à exigência constitucional de haver correspondência entre o fato criminoso descrito na acusação, recebida por Eduardo Cunha, e a definição legal de crime de responsabilidade.
Esse golpe parlamentar se caracteriza, assim, como atentado à Constituição e ao Estado Democrático de Direito.
Ora, “pedalada fiscal” não é – nem nunca foi – algo que possa ser compreendido como crime de responsabilidade.
A retenção de recursos ou o atraso no repasse de recursos destinados a instituição financeira estatal, fato ocorrido em outros governos federais ou mesmo em governos estaduais, não é o mesmo que operação de crédito, como facilmente se extrai do conceito legal dessa espécie de operação.
Aliás, até dezembro de 2015, era exatamente esse o entendimento do Tribunal de Contas da União, tanto assim que não emitiu parecer pela rejeição das contas de nenhum governo anterior, com base no mesmo argumento utilizado contra a aprovação das contas do governo Dilma, qual seja, violação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ocorre que, nem mesmo em tese, suposta violação da Lei de Responsabilidade Fiscal se confunde com crime de responsabilidade.
Também a abertura de crédito orçamentário suplementar por decreto e em obediência às previsões legais e constitucionais não pode constituir, ao mesmo tempo, crime de responsabilidade – se a conduta tem base legal não pode ser típica! Além disso, é prática comum e corriqueira na Administração Pública e, nessa condição, jamais foi reputada criminosa.
Um exemplo disso foi indicado na defesa apresentada pelo Advogado Geral da União: apenas no ano de 2001, quando da gestão de Fernando Henrique Cardoso, foram editados quase 100 decretos de crédito suplementar. No mesmo ano, inclusive, foi descumprida a meta fiscal da administração direta federal, sem que se cogitasse da prática de crime de responsabilidade – posição correta, segundo a única interpretação conforme ao Direito.
Importante destacar aqui alguns dos esclarecimentos trazidos na peça de defesa oferecida à Comissão Especial da Câmara:
1) A abertura de crédito suplementar não guarda relação direta com o cumprimento ou não da meta fiscal – algo que é sabido por todos os que entendem de orçamento e política fiscal;
2) “O motivo determinante para a expedição de Decretos, e não de envio de um projeto de Lei, é a existência de expressa autorização legal” para que essa medida seja possível (art. 4º, da Lei Orçamentária Anual de 2015);
3) Alguns desses Decretos dizem respeito ao orçamento da Polícia Federal, “referência no combate à corrupção no País”, a transferências a Estados e a Municípios e a outros Poderes, como é o caso do Judiciário (Justiça do Trabalho e Justiça Eleitoral). A razão de ser de uma norma autorizativa de complementação de crédito, de acordo com a decisão do próprio Congresso Nacional, é facilitar a adequada e regular prestação do serviço público;
4) O equivalente a “quase 70% dos valores estabelecidos nos Decretos de abertura de créditos suplementares foram editados para atender a determinação explícita do próprio Tribunal de Contas da União”.
O tratamento diferenciado e criminalizante conferido à Presidenta Dilma é a demonstração eloquente do golpe. O que é o golpe senão a imposição da vontade e do interesse de alguns sem a observância das regras jurídicas?
Esse golpe parlamentar em curso pretende estabelecer um vale-tudo, exercer poder sem limites, contra o qual não existe razão ou argumento. Se nem mesmo a Presidenta da República tem meios para se defender dessa arbitrariedade, dessa injustiça, como ficam os direitos do cidadão comum?
Nenhum dos dois motivos apontados na denúncia se enquadra na categoria constitucional de atentado à Lei Orçamentária (art. 85, inciso VI, da Constituição da República Federativa do Brasil) ou na correspondente definição legal de crime de responsabilidade contra a Lei Orçamentária (art. 10, itens 4 e 6, da Lei nº 1.079/50).
É justamente essa condição que torna o processo de impeachment um arremedo de processo, apenas ritualmente semelhante ao devido processo legal. Chegamos, portanto, ao núcleo central da questão: não basta o cumprimento da ritualística aprovada pelo Supremo Tribunal Federal, para que se possa reconhecer legitimidade e regularidade no processo de impeachment. Processo que apenas satisfaz o requisito formal não é processo, é simulacro de processo. A existência de crime de responsabilidade, desde o ângulo de sua tipicidade em abstrato, é a principal condição do devido processo legal de impeachment.
No regime presidencialista, o julgamento político pertence única e exclusivamente ao cidadão que exerce esse direito soberano na intimidade uterina de uma cabine eleitoral.
A Constituição deferiu a uma casa política o exame da existência do crime de responsabilidade. Isso não quer dizer que o julgamento é político. Quer dizer que uma casa política conduzirá o julgamento jurídico da Presidenta da República.
Como não foi cometido qualquer crime de responsabilidade pela Presidenta Dilma, não haverá golpe!
Beatriz Vargas Ramos – Professora de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de Brasíla/UnB
Luiz Moreira – Professor visitante de Filosofia do Direito da PUC Rio; ex Conselheiro Nacional do Ministério Público.