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A esquerda brasileira não morreu

25 de fevereiro de 2024

A esquerda morreu? Theófilo Rodrigues apresenta um contraponto ao filósofo Vladimir Safatle.

A Folha de SP acaba de publicar uma polêmica entrevista com Vladimir Safatle que ganhou as redes sociais. “Esquerda morreu e extrema direita é única força real no país”, diz Safatle na abertura da entrevista. De fato, Safatle já havia publicado em 2020, no jornal El Pais, artigo com o mesmo teor. Naquele momento, escrevi uma resposta ao texto de Safatle que agora recupero com algumas atualizações.

Bem escrito, o texto de Safatle é um daqueles que vale a pena ser lido e relido com atenção. O principal mérito de Safatle é propor uma relevante discussão sobre as dimensões da fragilidade da esquerda brasileira hoje. Afinal, momentos de crise costumam abrir oportunidades únicas para debates programáticos e estratégicos. Sob esse registro, vale a lembrança de como a queda do Muro suscitou a organização de uma série de coletâneas com artigos dos mais diversos intelectuais sobre o futuro da esquerda como After the Fall, de Robin Blackburn, e Reinventing the Left, de David Milliband, entre tantos outros. Peço, contudo, licença para discordar de Safatle.

Minha discordância em relação ao texto de Safatle reside em dois aspectos: a primeira, de cunho político-conjuntural, refere-se à avaliação sobre a suposta morte da esquerda brasileira; a segunda, de caráter político-programático, diz respeito à sua leitura sobre o significado do populismo de esquerda.

Vamos tratar primeiro da suposta morte da esquerda brasileira. Nos últimos 22 anos a esquerda brasileira esteve no governo federal por 16 anos. Das últimas seis eleições presidenciais (2002, 2006, 2010, 2014, 2018 e 2022), cinco foram vencidas por um candidato presidencial do PT. Além disso, diversas pesquisas sobre identidade partidária no Brasil nas últimas três décadas mostram que algo entre 20% e 30% do eleitorado brasileiro sempre se apresenta como identificado com o PT. Sobre esse tema, recomendo um bom trabalho de David Samuels e César Zucco publicado em 2018: “Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil”. Então fica a pergunta: como assim a esquerda brasileira está morta?

Certamente a esquerda brasileira sofreu duas importantes derrotas nos últimos anos. Primeiro, com o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e, em seguida, com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Mas a derrota momentânea de um campo político não significa a sua morte. Do contrário, alguém poderia dizer que a direita brasileira morreu em 2002 e permaneceu dentro do caixão até 2016. Mas sabemos que não foi exatamente isso o que ocorreu.

Ademais, bom que se diga que a esquerda brasileira não é homogênea. Vejamos alguns exemplos. O PSOL dobrou sua bancada na Câmara dos Deputados em 2018 e cresceu novamente em 2022. Em 2024, o partido tem grandes chances de eleger Guilherme Boulos como prefeito da cidade de São Paulo. O PCdoB elegeu e reelegeu um governador no Maranhão, Flávio Dino, e hoje ocupa o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação com Luciana Santos. Além da presidência da República, o PT governa a Bahia, o Ceará e o Piauí e o PSB governa Paraíba, Maranhão e Espírito Santo. O Supremo Tribunal Federal, pela primeira vez na história, tem um ministro que foi dos quadros do Partido Comunista do Brasil por mais de dez anos. No Rio de Janeiro, o PCdoB acabou de ter a maior votação de sua história para a ALERJ com os mais de 65 mil votos para a deputada estadual Dani Balbi. E cada vez que a vice-presidenta nacional do PCdoB, Jandira Feghali, faz um discurso no plenário da Câmara dos Deputados, podemos ver que a esquerda brasileira não morreu. Não, a esquerda não está morta, ainda que não tenha uma força correspondente aos seus sonhos.

Confesso que a leitura de Safatle me remeteu imediatamente ao mesmo erro de avaliação cometido por Alain Touraine, um dos principais sociólogos franceses, quando declarou a morte da esquerda na década de 1980. Em 1980, Touraine publicou um pequeno livro intitulado O pós-socialismo. Relembrando: após o período disruptivo de maio de 68, a sociedade francesa, que parecia querer respirar ares libertários, elegeu uma assembleia e um governo conservador que durou mais de uma década. Inconformado com a situação, Touraine apontou o fim da política socialista e a urgência da construção de um novo tipo de ação capaz de dialogar com os então novos movimentos sociais que surgiam. Disse Touraine, com uma inabalável certeza: “na França, como aliás em toda parte, o socialismo chegou ao final de seu caminho. Sua grandiloquência limita-se a uma política politiqueira e sua voz sufoca a voz dos novos movimentos sociais”.

Teria sido uma preciosa intervenção teórica e política sobre aquele momento histórico, não fosse por um pequeno detalhe que marginalizou o sucesso do livro: no ano seguinte, em 1981, o Partido Socialista francês, sob a liderança de François Mitterrand, venceu a presidência e lá permaneceu até 1995; em Portugal, o socialista Mario Soares foi eleito primeiro-ministro em 1983 e, em 1986, assumiu a presidência, de onde o Partido Socialista saiu apenas vinte anos depois, em 2006; na Espanha, Felipe González do PSOE foi eleito primeiro-ministro em 1982 e deixou o cargo apenas em 1996; e na Grécia, Andreas Papandreu, do PASOK, foi eleito primeiro-ministro em 1981 e só deixou o posto em 1989. Afinal de contas, nem sempre os sociólogos acertam em suas previsões.

Claro, alguém poderia argumentar que todos aqueles partidos de esquerda que venceram eleições nas décadas de 1980 e 1990 passaram por um aggiornamento programático rumo ao centro, na direção daquilo que Anthony Giddens convencionou chamar de “terceira via”, ou como Tarik Ali prefere, de “extremo-centro”. Concordo com essa avaliação. Mas não é essa a abordagem de Safatle.

Aliás, esse ponto me remete à segunda discordância em relação ao texto do autor. Embora não cite, Safatle claramente utiliza o conceito de populismo formulado por Ernesto Laclau e propagandeado por Chantal Mouffe. Mas quando dá um passo adiante para a definição do “populismo de esquerda”, há certo deslize.

Crítico da ideia de populismo, Safatle enxerga o “populismo de esquerda” como um tipo de articulação política homogênea. Nas palavras de Safatle, no populismo de esquerda o “povo” “nasce como uma monstruosa entidade meio burguesia, meio proletariado. Uma mistura de JBS Friboi com MST”. Tudo bem que essa possa ser uma forma de articulação do populismo. Mas não é a única. Mouffe e Laclau, por exemplo, entendem que o populismo de esquerda é aquele que articula uma política de democracia radical. Em “Hegemonia e estratégia socialista” os dois argumentam em defesa de uma política em que as lutas contra o racismo, o sexismo, a discriminação sexual e em defesa do meio ambiente precisam ser articuladas às dos trabalhadores num novo projeto hegemônico de esquerda. A filósofa marxista Nancy Fraser tem sustentado exatamente a mesma opinião. E parte da esquerda brasileira já tem caminhado nessa direção como, aliás, fica claro em todos os posicionamentos públicos de uma liderança do porte de Manuela d´ Ávila. O que talvez ainda falte seja justamente uma leitura comum da esquerda brasileira em geral sobre a importância da articulação dessa agenda do reconhecimento de identidades com a agenda da redistribuição econômica e da soberania nacional, a partir da compreensão das nuances da luta de classes em nossa formação social.

O texto e a entrevista de Safatle, no entanto, têm o mérito de trazer o debate sobre os rumos da esquerda para o centro da esfera pública. Infelizmente, esse debate programático e estratégico muitas vezes é invisibilizado pelas urgências táticas e conjunturais. Ademais, o modo tóxico, intolerante e debochado das redes sociais não contribuem para um bom debate público que seja dialético e promotor de sínteses. Seja como for, é muito importante que intelectuais como Safatle façam esse esforço de reacender a chama das discussões sobre os rumos da esquerda brasileira de tempos em tempos.

A esquerda brasileira certamente esteve na defensiva nos últimos anos, mas não está morta. Quem impediu a aprovação da capitalização na reforma da previdência de Paulo Guedes foi a esquerda brasileira. Quem impediu a aprovação do excludente de ilicitude de Sergio Moro foi a esquerda brasileira. Quem organizou um projeto de frente ampla em 2022 para impedir a vitória de Bolsonaro foi a esquerda brasileira. O que talvez nos falte seja um olhar mais generoso para as pequenas experiências sociais e políticas que emergem cotidianamente no país. É esse o lugar em que germina a volta da esquerda para seu protagonismo na democracia brasileira.

Theófilo Rodrigues é cientista político.