Resenha de “Os dissidentes quânticos: reconstruindo os fundamentos da mecânica quântica (1950-1990)”, de Olival Freire Jr.

Por Suman Seth*, em Physics Today

Em setembro de 1967, o experimentalista Otto Frisch escreveu uma carta ao seu primo Hugo Tausk, pai de um jovem físico chamado Klaus Tausk. Um ano antes, Klaus havia distribuído uma versão ainda não publicada de um artigo crítico a uma teoria ortodoxa chamada de Interpretação de Copenhague, a interpretação mais comum da mecânica quântica. O artigo de Klaus havia acendido uma controvérsia feroz e em sua carta Frisch deixava claro que o que estava em jogo era muito mais do que física.

A visão ortodoxa, observou ele, estabelece que a preocupação da física são as medidas, muito mais do que os objetos. “Isso cheira a idealismo e é, portanto, rejeitado pelos comunistas. O contrário também se aplica, já que aqui no Ocidente qualquer pessoa que duvide da interpretação ortodoxa, mesmo que por motivos objetivos, se torna suspeita de ser comunista”.

É claro que esse binarismo não funciona, continua Frisch, já que o debate possui “a complexidade e a falta de sentido de uma guerra religiosa, incluindo a parte dos convertidos: o maior defensor da ortodoxia é um comunista [Léon Rosenfeld], e muitos na oposição são totalmente burgueses”.

Apesar do apoio de alguns, o jovem Tausk sofreu por sua apostasia. Seu orientador, por exemplo, se recusou a participar da defesa de sua tese e os membros da banca examinadora que aceitaram comparecer quase o reprovaram. Sua carreira se desenvolveu de maneira errática depois dessa controvérsia na qual ele entrou quase que inadvertidamente.

A controvérsia de Tausk e de outros pesquisadores relacionada aos fundamentos da mecânica quântica é o tema do livro excepcionalmente bem apurado “Os dissidentes quânticos: reconstruindo os fundamentos da mecânica quântica (1950-1990)”, de Olival Freire Jr.

Freire é um dos principais historiadores do mundo quando o assunto é teoria quântica pós Segunda Guerra Mundial. Os episódios que ele narra são fascinantes.

Na década de 1950, a questão da epistemologia apropriada e dos fundamentos ontológicos da mecânica quântica pareciam ser um caso encerrado. Foi por isso que Rosenfeld se opôs ao termo “ Interpretação de Copenhague”, cunhado por Werner Heisenberg por volta de 1955: ele deixava implícito a ideia de que haveria uma interpretação alternativa.

Na década de 1980 —época em que surgiram experimentos envolvendo testes com as desigualdades de Bell— questões de fundamentos estavam entre os assuntos mais excitantes da física contemporânea. A pergunta que o livro faz é tão simples quanto relevante: como esse assunto conseguiu escapar da periferia dos estudos da física, deixando de ser considerado um tema digno de contemplação filosófica, mas não de pesquisadores da prática científica, para atingir o centro dos estudos dessa área?

Freire trabalha com três linhas de raciocínio que podem oferecer explicações para o assunto. A primeira hipótese, levantada por aqueles que trabalham no campo dos fundamentos quânticos hoje e pela historiadora Joan Bromberg, aponta para a disponibilidade dos meios técnicos para testar hipóteses experimentalmente. A segunda levanta o contexto social e cultural no qual esse trabalho foi desenvolvido, incluindo, como a citação de Frisch sugere, o marxismo e o movimento de contracultura de maneira mais ampla (analisados em detalhe por David Kaiser em “Como os hippies salvaram a física”, W. W. Norton, 2012). A terceira linha de pensamento trata de como as correntes e os problemas conceituais (discutidos por Freire com destreza e precisão) ajudaram a produzir um terreno fértil para que eventuais avanços tecnológicos pudessem prosperar.

Em seu livro, Freire argumenta que os físicos mais propensos à heterodoxia eram vistos como dissidentes. Eles não tinham uma posição comum, mas todos se opunham à ortodoxia. Assim como seus adversários, eles não chegaram a um consenso sobre o que exatamente seria uma posição ortodoxa. Os dissidentes acreditavam que questões fundamentais eram dignas de estudo profissional e que a recusa em abordar esses assuntos levava a um dogmatismo.

Histórias sólidas geralmente não têm heróis, mas é difícil não pender para o lado dos dissidentes aqui, especialmente quando postos lado a lado com figuras como Rosenfeld, cuja hostilidade e certeza fizeram com que o físico Wolfgang Pauli o apelidasse de √Bohr × Trotzky.

O livro é estruturado de modo cronológico. O primeiro capítulo se debruça sobre a teoria das variáveis ocultas de David Bohm e situa o pesquisador intelectual e politicamente. O capítulo seguinte examina a “heresia” de Hugh Everett III. Embora ambos os cientistas tenham inspirado uma controvérsia considerável, nenhum conseguiu alterar a “monocracia da escola de Copenhague”. Para isso, foi necessária a autoridade de uma figura como Eugene Wigner, responsável por aquela que ficou conhecida como a “escola de Princeton,” que disputava a hegemonia do pensamento ortodoxo com Rosenfeld e seus aliados.

O resto do livro narra o episódio Tausk; a influência do curso de verão de Varenna de 1970 sobre os fundamentos da mecânica quântica, descrito como “o Woodstock dos dissidentes quânticos”; e os avanços experimentais a partir de 1970, incluindo os supracitados testes das desigualdades de Bell. O capítulo final oferece uma breve biografia coletiva dos dissidentes.

A escrita de Freire é clara e despretensiosa. Ele se dedica com igual afinco a explicar teorias de sociólogos e físicos. A história, no entanto, é complexa. Aqueles que não têm intimidade com o assunto podem ler a introdução e a conclusão de cada capítulo antes de partir para o texto em si como forma de se orientar melhor pelo que às vezes pode parecer uma avalanche de nomes, filiações, teorias e experimentos. Infelizmente, e talvez porque se trate de uma visão geral, o único e mais complexo capítulo sobre o trabalho na década de 1980 e início de 1990 carece de um resumo final.

Mesmo assim, “Os dissidentes quânticos” é um livro impressionante e será, talvez ironicamente, fundamental para estudos futuros.

* Suman Seth é professor de história da física da Universidade de Cornell.

Confira abaixo, entrevista com o autor:

Portal Vermelho: Explique um pouco as dissidências de que o seu livro trata. Qual era a polêmica exatamente?

Olival Freire Jr.: Tão significativo quanto o conteúdo da controvérsia científica na qual surgiu o que denominei de dissidentes quânticos é que este estudo ilustra como em controvérsias científicas fatores cognitivos, ligados ao conteúdo das disputas, e extra-cognitivos, como componentes culturais, políticos, ideológicos, econômicos e tecnológicos podem comparecer mesclados influindo na história desta controvérsia. Então acho que o livro contribui para que se forme uma imagem da ciência real, não idealizada, em seu processo de produção.

Quanto ao conteúdo, a controvérsia sobre a interpretação da teoria quântica envolve questões filosóficas, a exemplo do valor do determinismo e das descrições probabilisticas, bem como do realismo, mas também questões mais conceituais, como a não-localidade para sistemas espacialmente separados.

No campo da física, como costumam se dar as controvérsias sobre temas considerados estabelecidos? A resenha que publicamos fala que os hetedoxos se uniram contra a ortodoxia, apesar de suas divergencias. Há política nos debates de física?

A dimensão política, cultural, ou ideológica sempre esteve presente na prática da ciência. Por vezes tais aspectos aparecem mais em segundo plano, em outros com mais relevância. No caso da controvérsia dos quanta, nos anos 50 e na virada dos anos 60 para os anos 70 estes fatores foram salientes. Este aspecto foi ressaltado no primeiro parágrafo da resenha que vocês tiveram a gentileza de traduzir, escrita pelo historiador Suman Seth da Universidade de Cornell, e publicada na revista Physics Today.

Como esse embate se relacionou com o marxismo?

Na década de 1950 foi uma relação muito forte. Em parte este embate foi alimentado pela posição dos marxistas soviéticos de busca de uma posição marxista mesmo em questões para as quais a opção pelo marxismo não era suficiente para definir de maneira unívoca qual posição adotar. Como consequência, não existiu uma correlação direta entre a condição de marxista e a posição adotada nesta controvérsia. Neste caso, como em muitos outros da história do século XX, é mais correto falar de marxismos, no plural, que de marxismo, no singular.

O campo da história das ciências parece pouco desenvolvido no Brasil, Isso é verdade? Quais são os principais polos de pesquisa no país? Sobre que áreas da ciência os historiadores brasileiros mais se debruçam?

Creio que esta apreciação não procede. Uma evidência disto é que em julho de 2017 será realizado no Rio de Janeiro a 25a edição do congresso internacional mais importante da área. Este congresso é realizado a cada 4 anos, e a sua vinda para o Brasil, em sua primeira edição no hemisfério sul, foi um reconhecimento do prestígio dos historiadores da ciência brasileiros. Ademais, temos uma sociedade científica, a Sociedade Brasileira de História da Ciência (http://www.sbhc.org.br/), que eu já tive a honra de presidir, que tem mais de 3 décadas de atividades ininterruptas, publicando revistas e com um seminário nacional a cada 2 anos.

A propósito, esta entidade posicionou-se firmemente contra o pretendido impeachment da presidente Dilma. Os polos mais fortes, com oferta regular de cursos de pós-graduação estão em São Paulo, com cursos na USP, PUC, UFABC e Unicamp; no Rio de Janeiro, com cursos na UFRJ (dois programas) e na Fiocruz); na Bahia, com curso na UFBa-UEFS; e em Minas Gerais, na UFMG. Muito desta pesquisa está voltada para a história da ciência no Brasil, particularmente séculos XIX e XX, mas também para a pesquisa em história da ciência em geral. Como exemplo, no caso do meu livro sobre os dissidentes quânticos, parte desta história se passou no Brasil, mas a maior parte nos EUA e Europa.

Tradução da resenha: Juliana Cunha para o Portal Vermelho