O golpe político institucional ocorrido no país com o afastamento ilegítimo da presidenta Dilma Rousseff representa uma nova inflexão na política urbana brasileira, desta vez de caráter conservador. No entanto, ao invés de se considerar o momento de afastamento da presidenta,  decorrente da abertura do processo de impeachment, como um evento isolado, há que se considerar o golpe político do bloco conservador como um processo que já vinha sendo arquitetado e implementado no interior do próprio governo Dilma, como fica evidente na mudança do posicionamento dos partidos e políticos, considerados “aliados”, no momento da votação no Congresso Nacional.

Para entender o golpe político e seus impactos na política urbana, portanto, há que se retroceder um pouco na história recente e identificar as inflexões ocorridas neste processo.

No Brasil, o final da década de 1980 e a década de 1990 representaram uma verdadeira guinada contrarreformista. Com o início do governo Collor de Melo (1989), passando pelos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, uma agenda de reformas econômicas estruturais de caráter neoliberal começou a ser implementada, com a adoção de políticas de liberalização econômica e a privatização de empresas estatais, marcando um novo ciclo de mercantilização das cidades. Como resultado do modelo de desenvolvimento adotado, as cidades brasileiras chegaram ao ano 2000 marcadas por contradições – que, como sabemos, têm raízes históricas – e caracterizadas por profundas desigualdades nos padrões de qualidade de vida, cidadania e inclusão social.  Naquele contexto, as condições de vida nas grandes cidades, principalmente nas metrópoles, estavam se deteriorando e os centros urbanos se tornavam polos econômicos marcados pela fragmentação, dualização, violência, poluição e degradação ambiental.

As raízes desse processo estão ligadas à modernização excludente do Brasil. Como afirma Ermínia Maricato, “é com o início da República que se afirma o urbanismo modernista segregador”[1]. Mas é a partir de 1950, com a intensificação do processo de industrialização, que vamos verificar as mudanças mais profundas no padrão de urbanização brasileira, em um processo que combina um gigantesco processo migratório do campo para as cidades, metropolização, expansão da classe média e assalariamento da mão-de-obra. De fato, “o aparato legal urbano, fundiário e imobiliário, que se desenvolveu na segunda metade do século XX, forneceu base para o início do mercado imobiliário fundado em relações capitalistas e também para a exclusão territorial.” (MARICATO, op. cit. p. 38).

No entanto, a partir da década de 1990, pode-se verificar mudanças no padrão de urbanização brasileira, em grande parte decorrentes das transformações no capitalismo internacional e das formas de inserção do Brasil no processo de globalização, tal como tem indicado a literatura nacional e internacional. De um lado, o aprofundamento da periferização das grandes metrópoles, com o aumento populacional nos municípios da fronteira metropolitana e expansão das favelas e loteamentos irregulares; de outro, o aparecimento de núcleos de classe média e condomínios fechados na periferia, tornando o espaço urbano mais complexo, desigual e heterogêneo. A questão é que o modelo de produção e gestão das cidades brasileiras adotado neste período foi resultado da combinação de processos de inserção seletiva de regiões e áreas competitivas e dinâmicas integradas aos circuitos internacionais de capitais, concentração populacional em áreas metropolitanas, segregação urbana e exclusão socioeconômica, produzindo uma nova ordem socioespacial dividida entre ricos e pobres, entre cidadãos e não-cidadãos.

Ao mesmo tempo, em termos institucionais, a política urbana não era assumida como uma política de Estado. Os sucessivos governos nunca tiveram um projeto estratégico para as cidades brasileiras envolvendo, de forma articulada, as intervenções no campo da regulação do solo urbano, da habitação, do saneamento ambiental, e da mobilidade e do transporte público. Sempre de forma fragmentada e subordinada à lógica de favorecimento que caracterizava a relação intergovernamental, as políticas urbanas foram de responsabilidade de diferentes órgãos federais. Tomando como referência a política de habitação, vale a pena registrar que, de 1985 a 2002, esteve sob a responsabilidade de diferentes Ministérios: de 1985 a 1987, do Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente; de 1987 a 1988, do Ministério da Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente; de 1988 a 1990, do Ministério do Bem Estar Social; de 1990 a 1995, do Ministério da Ação Social; de 1995 a 1999, da Secretaria de Política Urbana, vinculada ao Ministério do Planejamento; de 1999 a 2002, da Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano, vinculada à Presidência da República.

Assim, podemos dizer que em 2003, a política urbana viveu uma nova inflexão, desta vez de caráter progressista, com a eleição do presidente Lula. A criação do Ministério das Cidades representou uma resposta a um vazio institucional, de ausência de uma política nacional de desenvolvimento urbano comprometida com a construção de um novo projeto de cidades sustentáveis e democráticas. Por isso, a criação desse Ministério, teria expressado o reconhecimento por parte do governo federal da questão urbana como uma questão nacional a ser enfrentada por macro políticas públicas. De fato, grande parte da competência em matéria de política urbana está hoje descentralizada, principalmente depois da aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, que consolidou e fortaleceu o papel dos municípios no planejamento e na gestão das cidades. No entanto, os problemas urbanos – envolvendo a questão habitacional, o saneamento ambiental, a mobilidade e os transportes – têm dimensões que necessitam de tratamento nacional, seja pela sua importância ou pela sua amplitude, nos quais o governo federal continua tendo um papel relevante. Em especial no que se refere às metrópoles, percebe-se a importância de uma intervenção nacional, tanto na definição de diretrizes como no desenvolvimento de planos e projetos, de forma a impulsionar políticas cooperadas e integradas que respondam à complexidade da problemática urbana-metropolitana no país.

Analisando em uma perspectiva histórica, pode-se dizer que tanto a criação do Ministério das Cidades, como a implantação do Conselho das Cidades, ambos em 2003, e a realização das conferências nacionais das cidades, em 2003 e 2005, são conquistas do movimento pela reforma urbana brasileira que, desde os anos 1980, vem construindo um diagnóstico em torno da produção e gestão das cidades e propondo uma agenda centrada (a) na institucionalização da gestão democrática das cidades; (b) na regulação pública do solo urbano com base no princípio da função social da propriedade imobiliária e da função social da cidade; e (c) na inversão de prioridade no tocante à política de investimentos urbanos, voltado para a promoção da justiça socioespacial.

Na perspectiva da agenda da reforma urbana, a realização das conferências nacionais, bem como a implantação e o funcionamento do Conselho das Cidades deveria criar uma nova dinâmica para a gestão das políticas urbanas, com a participação do poder público e dos movimentos populares, organizações não-governamentais, segmentos profissionais e empresariais. E, de fato, podemos considerar bastante significativas as políticas aprovadas a partir de 2003: o Plano Nacional de Saneamento Ambiental; o Plano Nacional de Habitação, a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, da Política Nacional de Mobilidade Urbana, e do Programa Minha Casa Minha Vida Entidades, são exemplos de políticas que visaram desmercantilizar as cidades e promover a função social da propriedade e a função social da cidade. Apesar da política urbana ser uma atribuição dos municípios, é preciso considerar que este novo arcabouço institucional nacional criava um ambiente propício para a adoção de políticas progressistas no âmbito local. 

Mas os avanços institucionais são apenas uma das dimensões desse processo, que envolveu contradições e lutas cotidianas. De fato, é possível perceber ao longo deste período uma efervescência dessas lutas, com o incremento das ocupações de terras urbanas e prédios vazios, nas manifestações públicas pelo acesso aos serviços de saneamento ambiental e pelo barateamento do transporte público, nas ações de pressão pela melhoria dos serviços de saúde e educação, por lazer e cultura, entre outras tantas reivindicações e conflitos urbanos em torno da reivindicação de bens urbanos comuns e maior democracia na gestão das cidades. 

A questão é reconhecer que nesse processo que combinou lutas sociais, políticas institucionais e reflexões conceituais se desenvolveu um novo paradigma, ou mais precisamente, as bases de um novo paradigma, identificado com o ideário do direito à cidade, que pode-se denominar da cidade-direito, que tem se caracterizado pela construção de diagnósticos críticos da questão urbana brasileira e pela proposição de estratégicas para um projeto alternativo de cidades.

No entanto, a efetivação deste novo arcabouço institucional e das políticas urbanas nacionais identificadas com este paradigma encontrou diversas barreiras e muitos entraves, não apenas nos setores conservadores fora do governo, o que já seria esperado, mas na coalizão de poder dentro do governo, configurando as bases para o golpe político institucional de 2016, e para a nova inflexão conservadora na política urbana neste contexto. Este processo tem início exatamente na substituição do ministro Olívio Dutra (PT), em julho de 2005. A partir daí, o Ministério das Cidades seria ocupado pelo PP (Márcio Fortes de Almeida, Mário Negromonte, Aguinaldo Ribeiro e Gilberto Occhi) e pelo PSD (Gilberto Kasab), partidos que votaram pelo afastamento da presidenta Dilma e pela abertura do processo de impeachment, até que o presidente interino Michel Temer entregasse a pasta para o PSDB, que indicou o ministro Bruno Araújo.

A partir da captura do Ministério das Cidades pelos setores conservadores, pode-se dizer que a política urbana nacional vem sendo progressivamente marcada por quatro grandes políticas desenvolvidas pelo governo federal: (i) o PAC – programa de Aceleração do Crescimento, lançado em 2007, com grande impacto sobre as intervenções nas cidades, sobretudo no campo da mobilidade, do saneamento e da habitação; (ii) o Programa Minha Casa Minha Vida, lançado em 2009, destinado a promover a produção ou aquisição de novas unidades habitacionais, ou a requalificação de imóveis urbanos, para famílias com renda mensal de até R$ 5.000,00; (iii) o projeto da Copa do Mundo de Futebol 2014 e das Olimpíadas 2016, com intervenções estruturais vinculadas à realização desses megaeventos em 12 cidades brasileiras, em especial no Rio de Janeiro; e (iv) a difusão do modelo das parcerias público-privadas – PPPs para a gestão de equipamentos urbanos, impulsionada em grande medida pela realização dos megaeventos esportivos, que promoveu a adoção deste modelo de gestão em estádios de futebol, aeroportos, sistemas de mobilidade e gestão de espaços urbanos vinculados à operações urbanas consorciadas.

Impulsionado por essas políticas, as cidades brasileiras passaram a ser palco de grandes intervenções com abundância de recursos para obras de infraestrutura e de reestruturação das suas áreas urbana, em especial das suas áreas centrais, enquanto que os instrumentos de promoção da função da propriedade previstos no Estatuto da Cidade ficavam praticamente sem efetividade, encontrando diversas barreiras políticas e institucionais na sua implementação. Em especial no caso dos grandes projetos urbanos, constata-se que as intervenções implementadas nas cidades brasileiras, em geral, não são acompanhadas por políticas de promoção e garantia do direito à cidade, especialmente do direito à moradia dos cidadãos situados nas áreas de intervenção desses projetos, que sofrem diretamente seus efeitos perversos. Assim, em que pese a necessidade de reconhecer, durante a primeira década de 2000, avanços gerais no país no que diz respeito à política nacional de habitação, saneamento ambiental e mobilidade urbana, percebe-se graves situações de violação do direito humano à cidade, expressas, sobretudo, no alto número de remoções vinculados às grandes intervenções urbanas implementadas, em especial, aquelas vinculadas à Copa do Mundo de 2014 e à Olimpíada de 2016.

A inflexão conservadora já vinha mostrando sua força nestes projetos, e as intervenções urbanas implementadas já expressavam claramente um novo ciclo de mercantilização das cidades, com a entrega de seus espaços mais rentáveis e valorizados àiniciativa privada e transferência da população pobre para regiões cada vez mais afastadas do centro, muitas vezes situadas em áreas de risco. Neste novo ciclo de mercantilização das cidades, pode-se observar a progressiva adoção da gentrificação como estratégia de renovação urbana, entendida como a progressiva elitização de certas áreas da cidade marcadas pela centralidade social, política e econômica, e a simultânea expulsão das classes populares que residiam nestas mesma áreas.

Tal processo é evidenciado no contexto da realização da Olimpíada, no qual a Prefeitura do Rio de Janeiro aparece diretamente envolvida na promoção da gentrificação, atuando tanto na retirada dos obstáculos políticos e econômicos existentes, tornando-a possível através dos mecanismos de mercado, como diretamente, promovendo a remoção das comunidades de baixa renda e sua transferência para localidades mais distantes. Nesse sentido, os processos de gentrificação deixam de ser apenas o resultado da lógica do mercado imobiliário, e passam a configurar uma estratégia de classe, da coalizão dominante, envolvendo uma particular interação entre o poder público e agentes privados, na qual são adotadas políticas e implementadas ações voltadas para a sua promoção em áreas consideradas atraentes para o capital imobiliário e grandes investidores.

Mas os setores conservadores não se mostravam satisfeitos com as concessões feitas em nome do direito à cidade e o golpe político institucional cria as novas condições para esta nova inflexão, de aprofundamento do ciclo de mercantilização das cidades. Nas primeiras semanas após o golpe, o governo do presidente interino Michel Temer anunciaria mudanças políticas radicais, com cortes consideráveis nas políticas sociais, entre os quais no programa Bolsa Família, a suspensão do edital do programa Minha Casa Minha Vida Entidades (MCMV-Entidades – programa complementar do Minha Casa Minha Vida voltado para a construção de moradia pelas cooperativas e entidades populares), e a anúncio da criação do Programa de Parcerias de Investimento (PPI), que tem por objetivo promover a privatização e o investimento do setor privado em projetos públicos.

Com o golpe, a perspectiva é de aprofundamento do paradigma da cidade-mercado na política urbana, envolvendo a difusão de estratégias de empresariamento urbano, city marketing, e certos modelos de planejamento estratégico. A política urbana deve ser progressivamente transformada em relações de mercado, no qual ganha quem tem maior poder para impor os lucros e os custos da ação do poder público. Nessa concepção, a participação estaria fundada no reconhecimento dos agentes como clientes-consumidores, portadores de interesses privados, impedindo a construção de uma esfera pública que seja a expressão do interesse coletivo. A cidade deixa de ser tratada como totalidade e a noção de cidadania perde sua conexão com a ideia de universalidade.

Nesse cenário, os avanços decorrentes do ideário do direito à cidade e do paradigma da cidade direito, que foram conquistados através das lutas das classes populares e das políticas institucionais progressistas ao longo dos últimos anos, estão em risco de serem perdidos pela hegemonia do pensamento neoliberal. No contexto das contradições desta inflexão conservadora, cabe avaliar a natureza dos novos conflitos urbanos decorrentes da implementação deste projeto excludente e a capacidade das forças progressistas de se articularem para resistir contra o golpe e lutarem pelo direito à cidade como um bem comum.

Orlando Alves dos Santos Junior é Sociólogo, doutor em planejamento urbano e regional, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional –IPPUR da Universidade do Rio de Janeiro – UFRJ, pesquisador do Observatório das Metrópoles –Instituto do Milênio –CNPq.

 

[1]           MARICATO, Ermínia. Metrópole na Periferia do Capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo: Editora Hucitec, 1996, p. 38
  

Publicado em Le Monde Diplomatique em 2 de Junho de 2016