Paradoxos da política peruana
Em meio à destituição de Dilma, às dificuldades de Maduro e aos estragos de Macri, poucos prestam atenção ao segundo turno das eleições peruanas, previstas para domingo, dia 5 de junho.
De fato, o cenário parece afinado com a guinada à direita da região: lidera as pesquisas Keiko Fujimori, filha do ex-ditador encarcerado e que promete anistiá-lo. Os Fujimori representam a narcopolítica no poder, fazendo da corrupção e da repressão o seu cotidiano. Seu contendente é Pedro Pablo Kuczynski, ex-ministro da economia no governo Toledo (2001-2006). Destacado quadro neoliberal, principal lobista dos Estados Unidos no país, PPK é um homem que morava no Sheraton enquanto a família vivia nos Estados Unidos. Para fazer uma analogia regional, o segundo turno peruano é como se Uribe, o líder da parapolítica colombiana, enfrentasse Sánchez de Lozada, o odiado ex-presidente boliviano que fala castelhano com sotaque inglês.
Apesar das coincidências substantivas entre os candidatos – quando Keiko alcançou o segundo turno em 2011, teve o apoio público de PPK –, a maioria dos peruanos não está indiferente ao pleito: há consenso de que a vitória de Fujimori seria um retrocesso que é preciso ser combatido. Por esse motivo, a principal força de esquerda no primeiro turno, o Frente Amplio liderado por Veronika Mendoza, aderiu à plataforma “Keiko no va”.
Frente Amplio e Veronika Mendoza
Mendoza teve um desempenho surpreendente e ao mesmo tempo alentador no primeiro turno. Para chegar até lá, a jovem parlamentar de Cusco, com 35 anos, venceu inicialmente o disputado processo interno do Frente. Seu principal rival foi o padre Marco Arana, um expoente das lutas contra a mineração em Cajamarca. Mais além de diferenças pessoais, Arana lidera a agrupação “Tierra y Libertad”, que assume posições combativas contra o extrativismo multinacional, em diálogo com o ideário do “Bien Vivir” em países andinos vizinhos. Já Mendoza se identifica com uma postura moderada, que reconhece a importância das divisas geradas pela exportação mineral, mas defende um papel disciplinador do Estado. Pois além de recuperar a unidade, a esquerda peruana enfrenta o desafio de dar organicidade política à impressionante combatividade popular, que se expressa sobretudo na resistência à expansão mineradora no país.
Acenando para a renovação em um pleito dominado por diferentes expressões de continuísmo político, Mendoza mostrou firmeza pessoal ao longo da campanha. Um notório jornalista reacionário lhe dirigiu uma pergunta em francês em uma entrevista televisiva, porque a mãe de Veronika é francesa e ela se diplomou neste país. A parlamentar de Cusco lhe respondeu em quechua, língua das maiorias indígenas. Em outra situação, lhe perguntaram qual o momento mais importante da história recente peruana, e ela citou sem titubear a reforma agrária do governo Velasco Alvarado no final dos anos 1960. Essa resposta que lhe valeu o “bullying” permanente da imprensa conservadora.
O crescimento de Mendoza ao longo da campanha motivou a retirada de três dos outros quatro candidatos identificados com a esquerda. Somente o governador regional de Cajamarca, Gregorio Santos, manteve sua candidatura. Porém, a mobilidade política do líder contra os projetos mineiros na região esteve literalmente bloqueada, desde que foi encarcerado sob acusação de corrupção em 2014 – o que não o impediu de ser reeleito no final desse mesmo ano, embora não pudesse ser empossado.
Mendoza disputou até o final um lugar no segundo turno com PPK. Às vésperas do pleito, o economista de 77 anos declarou que Mendoza era “una media roja que nunca ha hecho nada en su perra vida”.1 Também deixou claro que não a apoiaria em um segundo turno contra Fujimori.
As eleições foram marcadas por múltiplas denúncias de irregularidades e manipulações da legislação eleitoral. Por exemplo, a lei estabelecia um mínimo de 7% dos votos para que um partido emplaque congressistas. A margem foi reduzida para 5% quando ficou claro que o APRA de Alan García não alcançaria esse patamar, o que garantiu seis parlamentares ao partido. Mas manteve excluído o partido de Gregorio Santos, que em Cajamarca teve 40% dos votos congressuais. As quatro vagas a que teria direito foram assumidas por fujimoristas.
Apuradas as urnas, Keiko teve 39,8% dos votos, PPK 21% e o Frente Amplio, 18,8%. Gregorio Santos obteve 4% dos votos, o que levou alguns a considerarem que Mendoza teria chegado ao segundo turno se a unidade prevalecesse. De todo modo, foi a primeira vez que a esquerda voltou a disputar as eleições desde os anos 1980.
Cadê a esquerda peruana?
Por que o Peru ficou fora da onda progressista que agora se esgota?
Nos anos 1980, a esquerda peruana era considerada como uma das mais poderosas do continente. E o horizonte parecia promissor. O país era presidido pelo APRA, um partido filiado à Internacional Socialista. Enfrentava como principal oposição uma frente partidária de esquerda que governava a capital, Izquierda Unida. Em paralelo ascendiam movimentos guerrilheiros, quando essa forma de luta estava extinta na América do Sul, à exceção da Colômbia.
Entretanto, dois processos colocaram a Izquierda Unida diante de impasses que precipitaram o seu súbito declínio. Por um lado, as ambiguidades do governo aprista,comandado por Alan García (1985-1990). A retórica e o simbolismo progressista do seu mandato disfarçaram o oportunismo e a venalidade que o impulsionava e resultaram em uma situação caótica, que arou terreno para as políticas de choque que viriam. No plano econômico, as ambivalências da sua política heterodoxa conduziram o país à recessão, à hiperinflação e ao isolamento internacional.
Esse cenário se tornou mais nebuloso com a expansão de um fenômeno político original, que pervertia a retórica e a cultura política de esquerda: pois uma organização de característica terrorista aparecia como uma guerrilha marxista. Após semear a guerra civil em rincões empobrecidos do país, o Sendero Luminoso intensificou as ações urbanas, anunciando uma investida para cercar a capital. Isso era propalado em meio ao assassinato de numerosas lideranças civis de esquerda, e atentados que amedrontaram o país.
Diante dos desafios dessa conjuntura complexa, Izquierda Unida não logrou diferenciar-se com clareza em relação ao alanismo e ao senderismo. Ao contrário, sucumbiu à diferenças internas, apresentando-se dividida nas eleições presidenciais de 1990.
Fujimori
Foi nesse contexto crítico que se elegeu Fujimori. No segundo turno, encarnou a oposição à candidatura de Vargas Llosa, que assumiu como plataforma o ajuste neoliberal. Neófito político que se projetou no mês final da campanha cultivando uma imagem de honradez, tecnologia e trabalho, três características associadas ao japonês, Fujimori teve como slogan “Vote no al shock!”.
Uma vez eleito, Fujimori costurou uma aliança com os militares por meio da sinistra figura de Vladimir Montesinos, que se tornaria o homem forte do regime. Há indícios convincentes de que a corporação tramava tomar o poder e colocar em prática um projeto de reordenamento nacional, que teria sido ajustado em função da disposição do novo presidente em se tornar seu cúmplice. Em linhas gerais, a divisão do trabalho estabelecida facultou poderes ditatoriais ao presidente, enquanto as Forças Armadas tiveram carta branca para enfrentar a insurgência, e ambos chafurdaram em corrupção.
Solidificado o seu comando, Fujimori decretou estado de emergência em todo o país, e poucos dias depois, promulgou o conjunto de medidas conhecido como “fujichoque”: em fragrante contradição com seu discurso eleitoral, aplicou um radical programa de corte neoliberal. Em abril de 1992, fechou o congresso e interveio no poder judicial, decretando à moda argentina um “Gobierno de emergencia y reconstrucción nacional”. Foi o chamado “autogolpe”.
O Peru sob Fujimori (1990-2000) é outro exemplo das conexões entre “capitalismo de choque” e ditadura, que Naomi Klein analisa no Chile sob Pinochet.2 No caso peruano, a desordem causada pela degeneração do governo aprista, acentuada pela destruiçãosenderista, criou o ambiente propício à combinação entre ditadura e neoliberalismo que marcou o regime. A ditadura fujimorista reverteu o descontrole econômico, a violência e a debilidade da esquerda a seu favor. O conservadorismo prevalente no Peru está relacionado à sensação ainda vigente de que, a despeito dos meios empregados, o “chino” colocou ordem na casa.
O Peru contemporâneo
Esse regime afirmou os marcos em que se move a sociedade peruana na atualidade: neoliberalismo, extrativismo mineral, livre-comércio, informalidade laboral, economia delitiva, narcotráfico.
Em linhas gerais afirmou-se uma economia aberta, que ancora sua inserção internacional na exportação de minerais potenciada por investimentos atraídos por baixas exigências fiscais, trabalhistas e ambientais. O marco jurídico desse modelo foi consolidado na constituição promulgada em 1993, que assegurou termos privilegiados, além de estabilidade jurídica e tributária aos investimentos internacionais. Esse texto, que segue vigente, também eliminou o caráter inalienável das terras das comunidades camponesas e nativas, além de instituir que os recursos naturais deixariam de ser patrimônio exclusivo da nação.3
Desde então, o crescimento econômico peruano é tributário da extraordinária expansão da mineração multinacional no país. Os picos de crescimento foram alcançados na década de 1990, aumentando em 10,9% (1993), 15,2% (1994), 10,8% (1997), 16% (1999). O investimento incrementou-se nos anos pós-Fujimori, no contexto da alta internacional dos preços das commodities: o investimento externo direto (IED) passou de 4,5% do PIB entre 1990 e 2000 para 25% em 2007. Em 2009, o Peru era o país que mais recebia investimentos em mineração no continente, e o terceiro no mundo, depois de Canadá e Austrália.4 Para efeitos comparativos, em 2011 o gasto brasileiro em investigação geológica totalizou 60% do investimento peruano, embora nosso território seja sete vezes mais extenso.
Expressão territorial dessa expansão, no início dos anos 1990 as concessões mineiras ocupavam 2,3 milhões de hectares, enquanto na atualidade, beiram 25 milhões. A atividade deixou de se concentrar nas alturas andinas, expandindo-se para os vales, a costa e inclusive a Amazônia.5 Atualmente, o Peru é o maior produtor latino-americano e está entre os cinco produtores mundiais de prata (1º), ouro (6º), zinco (2º), estanho (3º), chumbo (4º) e cobre (2º). Também concentrava 40% das reservas auríferas do mundo em 2008. Após vinte anos de expansão, a dependência do país em relação a esse setor da economia se acentuou. Calcula-se que 22% da arrecadação interna entre 2007 e 2010 derivou da mineração, e que cerca de 6% do PIB e 60% das exportações vêm dessas atividades na atualidade.
Outra face do crescimento minerador é o aumento dos conflitos socioambientais. Em contraste com a impotência da política institucional, há numerosos casos em que a resistência popular interrompeu projetos vinculados ao que se descreve como “economía extractivista”, como os projetos mineradores em Tambogrande e Conga, ou a hidroelétrica de Inambari. Dentre os conflitos socioambientais registrados, 64% estão relacionados à mineração e alguns envolvem um alto grau de violência: entre 2006 e 2011 contabilizaram-se 195 mortos em conflitos sociais, além de 2.312 feridos entre civis e policiais, configurando o número mais alto do continente no período. O episódio mais letal foi o chamado massacre de Bagua em 2009, quando contabilizaram-se 34 mortos dentre os quais 24 policiais e 10 indígenas na resistência a um dos maiores projetos auríferos da atualidade.6
Apesar da arrojada resistência popular a projetos de impacto socioambiental diverso, que gravitam entre o desalojamento e a exaustão hídrica, passando por diversos níveis de contaminação ambiental, não houve qualquer mudança palpável nos meios e fins da política estatal desde Fujimori. O governo Humalla, que enquanto candidato defendeu “agua sí, oro no”, logo anunciou uma lista de novos projetos mineiros de valor superior a US$ 41 bilhões, enquanto dados da Defensoría del Pueblo registravam 210 conflitos sociais em janeiro de 2015 no país, dos quais 140 de natureza socioambiental. Até meados de 2015, contabilizaram-se 65 vítimas fatais em conflitos sociais nesse governo, iniciado em 2011. No meio deste mesmo ano Arequipa, uma das principais cidades do país, estava ocupada pelo exército em função dos conflitos decorrentes do projeto mineiro Tía María, para nomear um episódio de maior repercussão.
Transformar essa palpitante resistência popular em um movimento capaz de disputar a política nacional tem sido o desafio enfrentado pela esquerda peruana.
Conclusão
Os paradoxos da política peruana contemporânea – onde governos eleitos como oposição praticam a continuidade; nenhum presidente elegeu seu sucessor, apesar do crescimento econômico; o protesto popular breca projetos extrativistas, mas sem derivar em uma alternativa nacional – expressam, em um contexto particularmente adverso, os impasses América Latina contemporânea.
Observa-se que o neoliberalismo não tem legitimidade para se reproduzir, mas se perpetua apoiado em uma engrenagem política impermeável aos anseios populares, que naturaliza a mentira, a corrupção e a exploração. Isso exigiu a corrosão do tecido social, das formas de resistência organizada e do horizonte utópico, processo que se deu de modo particularmente traumático na circunstância peruana. Um país onde, paradoxalmente, a esquerda parece renascer, ainda que revele características de projetos que estão na defensiva neste momento em outras partes do subcontinente.
Fabio Luis é professor do curso de Relações Internacionais da Unifesp.
1 Expressão de difícil tradução, perra é literalmente “cadela”, ou “bitch” em inglês: “uma meio vermelha que nunca fez nada na sua vida cachorra”.
2 KLEIN, Naomi, Shock doctrine: the rise of disaster capitalism[A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo do desastre], Canada: Knopf, 2007.
3 BEBBINGTON, Anthony; CHAPARRO, Anahí; SCURRAH, Martin, “El Estado compensador peruano y la persistencia del modelo neoextractivista: seis hipótesis sobre el (no) cambio institucional” [O Estado compensatório peruano e a persistência do modelo neoextrativista: seis hipóteses sobre a (não) mudança institucional], Debate agrario. Análisis y alternativas, n.46, Lima, 2014, p.35.
4 ALAYZA, Alejandra; GUDYNAS, Eduardo, Transiciones postextractivistas y alternativas al extractivismo en el Perú[Transições pós-extrativistas e alternativas ao extrativismo no Peru], 2a ed. Lima, CEPES, 2012, p.65.
5 MANSUR, Maíra Sertã, “Peru: agricultura X mineração”, em: MALERBA, Juliana (org.),Diferentes formas de dizer não. Experiências internacionais de resistência, restrição e proibição ao extrativismo mineral, Rio de Janeiro, FASE, 2014, p.75.
6 GUEVARA ARANDA, Roberto,Bagua: de la resistencia a la utopía indígena[Bagua: da resistência à utopia indígena], Lima, 2013.
Publicado pelo Le Monde Diplomatique, em 2 de Junho de 2016