Polarização latina representa o fim da integração?
Nove dias foram suficientes para deixar a olho nu as divisões políticas que separam a América Latina, especialmente após o impeachment de Dilma Rousseff no Brasil. Argentina, Brasil e Paraguai encabeçam um bloco de pensamento neoliberal que deve permanecer em conflito retórico com o bloco oposto, alinhado à esquerda, composto por Bolívia, Equador, Venezuela e Cuba. No centro ficarão os países que estão mais preocupados com os acordos econômicos firmados com o governo brasileiro antes da crise que culminou na saída de Dilma – Chile, Peru e Uruguai – ou que possuem relações econômicas estáveis com países de fora da região, casos de Colômbia, Chile e México.
As novas fronteiras da América Latina após o dia 31 de agosto foram desenhadas ao longo desta, em que os governos se manifestaram sobre o processo que destituiu Dilma. Segundo levantamento feito pela Calle2, os países latino-americanos se alinharam em quatro posições distintas: condenações e retaliações diplomáticas; repúdios retóricos; neutralidade e reconhecimento oficial ao governo de Michel Temer (veja no mapa interativo abaixo).
Dos 19 países da América Latina, seis condenaram o impeachment de Dilma Rousseff qualificando-o de “golpe”, quatro afirmaram respeitar o processo ocorrido no Brasil – posição do Uruguai que, no entanto, considerou “injusta” a saída da ex-presidente –, sete não se manifestaram oficialmente e apenas dois reconheceram o novo governo.
“A análise das reações dos governos da América Latina após a saída de Dilma é um ótimo indicador para entender o que pode acontecer no futuro próximo: se antes o continente estava dividido entre dois blocos – o Mercosul com uma proposta de integração política e econômica e a Aliança do Pacífico, voltado apenas para intercâmbio de bens –, agora teremos um novo divisor de águas. E ele certamente será mais político”, avalia Wagner Iglecias, professor do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM) da USP.
Os reflexos nos blocos de integração econômica e política podem ser fatais. É o caso do Mercosul, mergulhado em uma crise institucional há dois meses, quando o Uruguai passou a presidência temporária do bloco ao governo da Venezuela, mas diante da oposição da Argentina, Brasil e Paraguai. “A existência do Mercosul está em jogo”, ressalta Iglecias.
“Se essa divisão entre blocos ideológicos acontecer realmente será o fim dos projetos de integração atuais, como o Mercosul e a Unasul”, concorda Moisés Marques, coordenador do curso de Política e Relações Internacionais da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
Em julho, em entrevista à Calle2, a senadora uruguaia Lucía Topolansky já havia dito que a crise no bloco econômico mais importante da América do Sul poderia resultar no seu fim, mesmo com todo o esforço empreendido pela diplomacia do seu país.
Do ponto de vista econômico, o Brasil perdeu o apoio ideológico de países cuja interação de bens não é fundamental para o seu funcionamento, exceção feita à Venezuela, mas se manteve aliado à segunda principal economia do continente, a Argentina.
Bolívia, Equador e Venezuela convocam embaixadores
As iniciativas mais duras diplomaticamente foram tomadas pelos governos da Bolívia, Equador e Venezuela. O presidente boliviano, Evo Morales e o seu homônimo venezuelano, Nicolás Maduro, ordenaram aos seus embaixadores que voltassem às respectivas capitais – ato que simboliza o agravamento do diálogo entre os países. Rafael Correa, do Equador, já havia chamado o representante do seu país em maio, quando Dilma foi afastada.
Para Iglecias, a postura desses países reflete o desmoronamento do projeto de integração latino-americano que surgiu há uma década, quando quase a totalidade dos governos da região tinha orientação progressista. “O processo de destituição da Dilma permitiu uma sinalização clara de que eles não vão se alinhar ao eixo Macri-Temer”.
Marques, por sua vez, lembra da posição do chanceler brasileiro, José Serra, que recentemente disse que “países como Bolívia e Equador precisariam aprender como fazer democracia com o que se passou no Brasil”.
Para o especialista, a postura do Itamaraty no governo Temer é menos diplomática do que deveria. “Serra apenas piorou as coisas. Ele não entendeu que as relações internacionais não se dão em tom político, porque não se trata de dialogar com presidentes, mas com Estados. Ele diz agora que a Venezuela não é democracia, mas daqui algum tempo o Maduro sai do poder e o Estado venezuelano continuará lá”, afirma.
No âmbito econômico, Marques salienta que há uma interação importante que pode ser prejudicada com a ausência de diálogo entre Brasil e Venezuela. “Eles já estiveram entre os dez maiores compradores de produtos do Brasil, então não é bom simplesmente abandoná-los agora. O gás da Bolívia também é importante. Subestimar esses países por causa de suas posições momentâneas é não considerar que não se trata de dialogar com governos, mas com Estados”.
Cuba e Nicarágua denunciam o golpe
O segundo bloco, de repúdio retórico, é liderado pelo governo cubano, que chegou a enviar uma carta para algumas diplomacias e entidades internacionais denunciando o “golpe de Estado parlamentar e judicial no Brasil”. A Nicarágua tomou o mesmo caminho.
A neutralidade do Chile e da Colômbia
Dois países importantes do continente ficaram neutros: Chilee Colômbia. Os chilenos agradeceram os diálogos mantidos com Dilma e pediram que a “as boas relações se mantenham” com o novo governo. Os colombianos seguiram a mesma linha.
O Uruguai demorou a se manifestar, e quando o fez, salientou suavemente que considerou o processo “injusto”, mas que os assuntos brasileiros não eram de sua alçada. Em julho, à Calle2, Topolansky afirmou ser difícil para um país de pequenas dimensões admitir um conflito com o Brasil.
“O Uruguai tem uma posição delicada para afrontar diplomaticamente o Brasil, porque tem uma enorme dependência econômica do nosso país e da Argentina. Chile e Colômbia, por sua vez, estão em outra dinâmica: eles têm muitos tratados comerciais assinados com países de fora da região, como Estados Unidos, Canadá e nações asiáticas. Assim, dependem menos dos laços comerciais internos”, explica Iglecias.
Os países que não se manifestaram apoiam Temer ou estão cautelosos?
Dois seis países que não se manifestaram até agora, chamam a atenção as posturas de Peru e México, economias importantes para a região e ligados em diversos aspectos ao Brasil.
No caso peruano, o ex-presidente Ollanta Humala expressou nas redes sociais seu descontentamento com o impeachment, mas o atual dirigente do país, Pedro Pablo Kuczynski, evitou comentar o assunto até em eventos oficiais. O principal jornal peruano, La Republica, publicou editorial nesta semana cobrando o presidente pela omissão.
Porém, Wagner Iglecias não vê a postura desses governos como passiva. Para ele, o ato de não se manifestar revela também um apoio implícito ao governo de Michel Temer.
“O novo governo peruano e o mexicano Peña Nieto são muito mais alinhados ao PSDB e ao PMDB do que eram ao PT. Ainda que setores políticos importantes desses países se mostraram reticentes ao impeachment, a postura de Estado foi de manter esse apoio, digamos, obscuro”, diz.
O professor Moisés Marques discorda. Para ele, o silêncio de países importantes como Peru e México é uma sinal claro de cautela em relação ao momento brasileiro. “A Dilma acabou de deixar Brasília, as imagens do impeachment ainda estão rodando o mundo, ou seja, é muito cedo para todos os governos tomarem posições. Esses países que não se manifestaram estão, na verdade, cautelosos, esperando o que vai acontecer para tomar uma posição mais clara”, conclui.
Publicado originalmente em Calle2