Era para ter sido só mais uma sexta-feira de inverno em Mar del Plata. Tudo se resolveria com um discurso simples, recheado de lugares comuns e uma partida tranquila. Contudo, Maurício Macri, presidente da Argentina, não conseguiu discursar mais do que dez minutos. Ele não resistiu às – nada metafóricas – pedradas desferidas pela multidão aos gritos de “Macri, basura [lixo], vos sos la ditadura”. O líder argentino encerrou seu breve discurso e entrou rapidamente no carro oficial, cercado pelos manifestantes.

Qualquer semelhança com o sumiço do então “presidente” Michel Temer, que quebrou o protocolo ao pedir que seu nome não fosse anunciado na abertura das Olimpíadas e seu desaparecimento no encerramento, além das vaias ensurdecedoras na abertura das Paraolimpíadas, não são meras coincidências. 

Macri chegou ao poder prometendo reduzir a inflação, a pobreza e o desemprego, além de tentar acalmar os ânimos na polarização política. Entretanto, os primeiros efeitos são exatamente o contrário. Embora esteja no poder em virtude do voto, representa setores com agendas políticas parecidas às que aqui sustentam Temer. Como chegou ao poder um pouco antes, a Argentina já sente o peso das medidas de austeridade mais claramente.

Enquanto os manifestantes brasileiros tiveram seus cartazes de protesto caçados dentro dos estádios e são recebidos com cassetetes nas ruas por se oporem ao processo de impeachment, os manifestantes argentinos reagem à repressão. Organizações em defesa de perseguidos e desaparecidos políticos na ditadura conduzem atos enormes de resistência na esteira do rumoroso caso da tentativa de prisão de Hebe de Bonafini, líder das mães da praça de maio – em 4 de agosto último, resultando em um rotundo fracasso e consequente desmoralização das forças da repressão locais. 

Além disso, para colocar mais gasolina na fogueira, aliados de Macri estão relativizando a cifra de mortos da última ditadura e tribunais agora começam a liberar repressores da ditadura.

Várias perguntas se insurgem sobre a atual conjuntura: o que significa a presença de Macri no poder para a Argentina e para a América Latina? O que explicaria tamanha fúria contra um jovem presidente, eleito como novidade, com apenas nove meses de mandato? As suas políticas econômicas estão sendo mal compreendidas? Qual a real situação argentina? Seria a Argentina a imagem do Brasil e da América Latina de amanhã?

Eleito em 2015, Macri conseguiu a “proeza” de se tornar o primeiro candidato neoliberal a presidir a Argentina depois da catástrofe social, econômica e política que explodiu naquele país em 2001, quando cinco presidentes passaram pela Casa Rosada, sede do poder argentino, em poucas semanas – consequência deflagrada diretamente pelas políticas neoliberais que afundaram o país naquela ocasião.

Dali em diante, e com a prosperidade socioeconômica iniciada nos doze anos de governos do casal Néstor e Cristina Kirchner (2003-2015), parecia ser muito difícil que a direita neoliberal voltasse ao poder. Sobretudo por não ter havido nenhuma crise relevante, mesmo nos maus momentos do Kirchnerismo – levando em consideração que a grande crise argentina de 2001 contudo, não foi nem a única, nem a mais trágica dos últimos cem anos naquele país.

A era kirchnerista (2003-2015) foi um dos períodos de maior estabilidade – política, mas também econômica – da história argentina. Quase uma ilha pacifica em meio a um mar turbulento. Desde que o sufrágio universal foi instituído naquele país, pela Lei Sáenz Peña, em 1912, não demorou muito para que os problemas aparecessem: já em 1930 os argentinos se viram diante do primeiro dos cinco golpes militares – totalizando 25 anos de regimes militares de corte fascista.

Filho da elite argentina, ex-presidente do Boca Juniors, ex-prefeito de Buenos Aires, Macri pode ser tudo, menos um elemento novo na política de seu país ou da América Latina. Contudo ele conseguiu ser vendido com ares de novo, eleitoralmente, por uma razão episódica: sem nunca ter sido militar e não vir de nenhum dos dois principais partidos da Argentina moderna, seus marqueteiros conseguiram maquiar sua biografia.

Vitorioso em segundo turno contra o moderado Daniel Scioli – candidato peronista apoiado, de maneira não muito animada, por Cristina Kirchner – Macri teve um êxito eleitoral apertadíssimo (51,34% contra 48,66% do rival) o exato mesmo placar com o qual Dilma Rousseff bateu seu rival Aécio Neves em 2014 – e um pouco mais do que Maduro bateu Henrique Capriles em 2013 na Venezuela (na ocasião, 50,61% a 49,12%). Nos casos brasileiro e venezuelano, o ponteiro das urnas continuou inclinado para o campo popular, mas no caso argentino ele pendulou a favor das elites.

Depois de anos de constituição de direitos, como a legalização do casamento homoafetivo, o enfrentamento do legado militar, uma lei que *regulamentou* o setor midiático e a realização de eleições regulares, o discurso de Macri explorou o esgotamento do ciclo progressista e um suposto mau momento econômico.

Sem registrar a ocorrência de nenhum desastre político à moda Argentina, a tese do desgaste de Cristina em virtude da situação econômica poderia ser uma explicação plausível. Mas a pergunta de facto é: até que ponto Macri teria razão nisso, qual a real gravidade da situação econômica argentina em 2015?

A economia argentina sob kircherinismo desestabilizou o país? Plano Macri seria a solução?

O gráfico acima é um resumo do crescimento do PIB argentino desde 1961. Os altos e os baixos lembram a melancolia de um tango: da ribalta à sarjeta em uma mesma vida. Não foram poucas as vezes que a economia argentina foi do céu ao inferno em um curtíssimo espaço de tempo. Na era kirchnerista, contudo, o PIB jamais caiu, em que pesem os últimos anos de Cristina serem marcados por uma desaceleração do crescimento – movido, sobretudo, pela queda nos preços internacionais das commodities.

A mídia, que viu seu monopólio ameaçado com a Ley de Medios, e Macri, contudo, conseguiram convencer os argentinos da suposta gravidade da situação econômica do país e, não só, sutilmente deixar no ar que seriam necessários ajustes. Scioli, o candidato peronista, tampouco parecia ter desenvoltura para explicar a queda do ritmo de crescimento ou, quem sabe, defender o modelo socioeconômico que, por sinal, não era exatamente o seu – Scioli é uma cria do menemismo, vertente neoliberal do peronismo, referente ao ex-presidente Carlos Menem (1989-1999).

Visto em conjunto, o período kirchnerista, sob a ótica econômica, registrou uma média de crescimento anual de 5,2% – tendo uma sequência em torno de 9% nos mandatos de Néstor; a taxa de desemprego despencou de 20% no fim de 2002 para 6% no final de 2015 – com queda de 87% na desigualdade salarial e uma valorização salarial, em termos reais, de mais de 70%.

A balança comercial se manteve superavitária, a exportação chegou a quadruplicar em 2011 – indo de 25 bilhões de dólares em 2002 para 84 bilhões dólares. Ano em que o PIB per capita atingiu 17.376 dólares, o maior na América Latina. Em 2015, o país teve seu primeiro déficit na balança comercial depois de 15 anos, mas, mesmo assim, manteve o crescimento do PIB em 2,4%.

Do ponto de vista social, a pobreza recuou severamente: de 57,8% nos anos da crise para apenas 29% no último ano de Cristina Kirchner no poder. A desigualdade social seguiu um rumo de queda muito acentuado depois de ter atingido seu auge, não por caso, em virtude da crise de 2001 – na qual os mais pobres, evidentemente, sofreram mais do que os mais ricos.

Ponto polêmico, a inflação foi controlada, despencou de 40% em 2002 para metade, chegando a 8% no último ano do mandato de Nestor. Embora tenha se elevado posteriormente, tendo uma média de 13,3% nos governos da Cristina, criou-se uma celeuma entre o governo Kirchner e a oposição, que acusava o governo de maquiar dados – muito embora a legislação e a atuação governamental, inclusive nas articulações junto aos sindicatos, sempre garantissem reposições salariais.

Concretamente, a economia argentina passou a crescer menos nos últimos anos de Cristina. Macri tinha esse flanco e a inflação, ainda que com seus efeitos contidos pelas políticas de Cristina. A crise foi desenhada, vendida e, ao final do processo eleitoral, comprada pelo eleitorado argentino, ainda que por uma pequena vantagem. Agora, era hora da nova etapa, quando o discurso de Macri iria encontrar a realidade prática.

A “solução” macriana

As primeiras atitudes de Macri no governo foram surpreendentes para muitos argentinos: ao contrário de resolver pragmática e gradualmente os problemas, da “grande crise” que ele e seus marqueteiros criaram, ele construiu um cavalo de troia para mudar o modelo econômico; apostou todas as fichas em uma mudança completa do modelo econômico do país, dando um enorme cavalo de pau, independentemente do custo que isso tivesse.

Noves meses depois das promessas, Macri, que propagandeava a retomada da economia e o crescimento de 1% em 2016, vai ter de se contentar com a queda de 1%. Basicamente, algumas das mudanças radicais que ele promoveu foram a violenta e abrupta desvalorização do peso argentino (30% já em dezembro) e os cortes nos subsídios implantados durante o kircherismo. 

Em outras palavras, promoveu um verdadeiro tarifaço: 400% nas contas do gás; nas tarifas de energia houve um aumento de 300%, chegando em alguns casos a 700%; o aumento na água oscilou de 216% a 375%; o combustível aumentou 35% acumulados desde dezembro; e o preço do transporte público teve um aumento de 100%.  

A sanha de cortar sem anestesia para “reduzir o estado” foi tanta que o governo chegou ao ponto de cortar 160 remédios distribuídos para aposentados e pensionistas.

Ambas as medidas, com fulcro em aumentar os ganhos de concessionários e grandes detentores de dólares, fizeram, irônica e justamente, inflação disparar, alcançando a casa de 46%, a mais alta desde 1991 – ao fim do governo Cristina, a mesma taxa estava em 25% há oito meses. 

Ironicamente, o governo Macri insiste em dizer que a inflação é menor do que a acusada pelos órgãos independentes, a mesma prática que ele condenava na antecessora. Por outro lado, o governo tem sido duro nas negociações salariais, não repondo as perdas com a inflação – o que torna o problema inflacionário muitíssimo maior.

Ainda, com a retração do consumo interno (o gasto médio de compra caiu 26,5%) e o baixo preço das commodities – sejam os derivados de gás e petróleo ou mesmo os produtos agrícolas –, além da incerteza sobre qual será o novo desenho da economia argentina, que está bem no meio de um cavalo de pau, fez com que o crescimento desacelerasse: nos três primeiros trimestres de 2016 a economia caiu em um ritmo cada vez mais acelerado, sugerindo um desempenho negativo no final do ano, o primeiro desde 2001. 

Segundo a consultora Scentia, alguns setores da economia foram fortemente golpeados pelo aprofundamento da recessão: a atividade na construção civil caiu 19,6% e a indústria recuou 6,5%. Segundo os sindicatos, até junho foram demitidos 200 mil assalariados. E, para piorar, Macri vetou uma lei antidemissões.

Como consequência, com o avanço da inflação afetando os trabalhadores – duplamente, pelo avanço objetivo das tarifas de serviços públicos e como isso aumenta o preço de outras mercadorias por irradiação – e a desvalorização do peso favorecendo os mais ricos – que detinham reservas em dólares – verifica-se um desaquecimento geral que fez o desemprego saltar de 5,9% para 9,3% sob Macri. Ademais, estudos comprovam que neste curto período mais de um milhão de argentinos entraram na linha de pobreza – que agora chega a 34,5% da população.

A popularidade do novo governo também despencou. Ao tomar posse, em 10 de dezembro, Macri contava com 63%. Hoje, segundo a pesquisa da M&F de agosto, apenas 43,1% dos argentinos o aprovam, contra 42,6% que desaprovam. E 43% esperam uma situação econômica pior nos próximos meses.

A política neoliberal ortodoxa de Macri conseguiu destruir até hábitos arraigados entre os argentinos: os churrascos se tornaram vaga lembrança quando preço da carne dobrou. A combinação dos efeitos cruzados da restauração da economia neoliberal e a repressão – necessária para garantir a implementação dessa Doutrina de Choque, mas também dissuasória – não estão isoladas de um contexto internacional turbulento, o qual também está conectado com fenômenos paralelos na América Latina – mas o que representaria, do ponto de vista institucional, a volta da arte de governo neoliberal no cenário pós-inclusão social dos últimos anos?

Restauração neoliberal na América Latina, com as bençãos de Washington

Macri, é verdade, veio num momento no qual as experiências de esquerda popular da América Latina estavam em fase de declínio – do radical Chavismo ao brando Lulismo, as quais nasceram da resposta ao neoliberalismo dos anos 1990. Nesse sentido, Macri é o marco de uma indisfarçável restauração construída sob um véu clean e moderado de mudança.

Não que os governos populares, em que pesem suas inúmeras e relevantes conquistas, não tenham igualmente falhado: fiaram seus planos e projetos nos altos preços das commodities – sobretudo, do petróleo – enquanto supuseram que grandes economias “nacionais” poderiam dar conta de superar ou mesmo enterrar definitivamente o neoliberalismo ou, de maneira ambiciosa, as contradições entre as classes.

A economia extrativista, pouco preocupada com a natureza e pouco centrada na criação e inovação, indispôs os governos populares com suas bases, mas também encontrou seu limiar econômico com a queda do preço do petróleo, em grande medida pela política americana no Oriente Médio: daí, surgiu um verdadeiro efeito dominó que, a priori, pôs as elites em desespero pela perspectiva de arcarem com algum custo dessa crise.

Como se sabe, a oportunidade é a mãe da invenção. As oligarquias tradicionais sul-americanas, nesse contexto, fabricaram e implementaram um plano arriscado: remover a todo custo os governos populares para, assim, empossar governos dispostos a implementar políticas de “ajuste” que se apliquem apenas sobre os trabalhadores e os mais pobres.

De maneira coordenada, se viu na Venezuela, no Brasil e na Argentina o surgimento de candidaturas dessa nova direita quase idênticas: Capriles, Aécio e Macri – embora só o último tenha vencido uma eleição para dar mostras do que poderiam ser os dois outros.

Distribuição de alimentos em Buenos Aires em 14 de setembro durante protesto de agricultores por acesso a terra. País vive crise (Foto: Eitan Abramovich / AFP)
 

A novíssima direita sul-americana apresenta líderes que contrastam sua estética moderada com, ironicamente, um marxismo às avessas na prática: a defesa de políticas radicais assentadas em um sujeito político classista – não os trabalhadores, mas a oligarquia –, a ação antagônica e nenhuma disposição à conciliação.

Na Venezuela e no Brasil, o jogo eleitoral agressivo foi continuado, após a derrota da direita, com uma pressão para deslegitimar a qualquer custo os líderes democraticamente eleitos. No Brasil, esse movimento chegou ao golpe branco implementado contra Dilma Rousseff. Na Venezuela, a polarização nas ruas e a busca pela revogação do mandato de Maduro não difere em nada.

A aparente normalidade institucional da chegada ao poder de Macri é, portanto, episódica e não uma questão de princípio. Materialmente, a política de Macri é a de Capriles e a de Aécio – e agora a de Temer, vice de Dilma que chega ao poder após uma manobra parlamentar para aplicar, tragicamente, o programa chumbado nas urnas pelos eleitores brasileiros em 2014.

Ainda, o arranjo de direita na América do Sul marca a volta da velha aliança à geopolítica dos Estados Unidos – como sugere a nada inocente visita de Obama à Argentina, durante o processo de impeachment de Dilma, para acordar a abertura de duas bases norte-americanas com Macri. Essa recentíssima investida neoliberal, por sinal, reforça a histórica aliança entre as oligarquias latino-americanas e a ação militar burocrática dos Estados Unidos.

Os discursos assentados na correção técnica dos erros dos governos populares, desse modo, logo se desmontam ao se defrontarem com os dados, assim que os neoliberais voltam ao poder: no caso argentino, os indicadores pioraram com Macri, mas isso pouca importa, visto que o objetivo desde o começo sempre foi uma mudança do modelo socioeconômico.

Nesse sentido, uma escalada repressiva passa a fazer todo sentido – como no caso de Hebe de Bonafini, mas também na ameaça inquisitória contra Cristina Kirchner –, pois isso não é apenas uma forma de conter a contestação social, mas também de literalmente desviar o foco da opinião pública sobre os efeitos desastrosos dessa restauração.

Por ora, Macri passa a usar uma blindagem também nos seus carros oficiais – em virtude da celeuma de Mar del Plata, que deu início a este ensaio – a qual se somar a todas as demais blindagens simbólicas e midiáticas que lhe protegem – mesmo assim, sua popularidade chegou em agosto ao mais baixo ponto de sua breve presidência, lançando dúvidas até onde ele poderá e terá coragem de ir. 

A única certeza, além do derretimento dos indicadores sociais e econômicos argentinos, é que aquele país é a imagem do futuro próximo que assombra a América do Sul – o Brasil de Temer sobretudo.

Cauê Seignemartin Ameni é sociólogo formado pela PUC-SP. Editor de Outras Palavras, subeditor no De Olho Nos Ruralistas e editor da editora Autonomia Literária.

Hugo Albuquerque é jurista, mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP, sócio da Saccomani, Albuquerque & Biral Sociedade de Advogados e editor da editora Autonomia Literária.

Publicado em Carta Capital