Instabilidade política e institucional, imprevisibilidade nos acontecimentos
Suponha um amontoado de fatos, alguns promovendo a sobrevivência, outros a destruição; suponha ainda que eles se sobrepõem no tempo, de modo que o espectador no litoral da história não consegue saber ao certo se a maré ainda está virando: mesmo assim, se ele for suficientemente observador, notará uma onda que se eleva sobre todas as outras, e uma que assinala o primeiro malogro em alcançar aquele nível.
J.M. Thompson, Napoleon Bonaparte
A maré virou, como diz o ditado popular e não foi de agora. No Brasil isso vem ocorrendo com relativa rapidez histórica, repondo os termos da encruzilhada histórica do pais: rumar a um projeto afirmativo de seus interesses nacionais e populares, fortalecendo a democracia, ou a um projeto dependente, antinacional e antipopular.
Consumado o assalto ao poder neste terrível ano de 2016, está em curso a imposição de nova ordem no país em todos os aspectos da vida nacional.
Mas a crise política segue sendo a mãe soberana de todos os acontecimentos recentes. Ela prossegue, marcando com instabilidade e imprevisibilidade o panorama. Não será esconjurada antes de 2018.
O ambiente político e institucional está cheio de material comburente e qualquer fio desencapado provocará grande estrago. Está sob ameaça o Estado de direito democrático e a própria retomada do crescimento econômico.
A economia foi posta sob uma ordem totalmente convergente, relativamente blindada da política. O foco é radicalmente macroeconômico, tendo por âncora a questão fiscal. Gera-se um agenda que polariza o país, malgrado a larga hegemonia do consenso das forças dominantes. São as chamadas medidas amargas para “devolver confiança” ao mercado. O programa de austeridade é violento e, se aprovado, marcaria a vida de todas as gerações atuais e futuras pelas próximas décadas.
A violência da PEC 241 congela por 20 anos o investimento social. Nessa ótica, a reforma previdenciária será indispensável: pretende-se impor idade mínima para a aposentadoria e desvincular a seguridade social do aumento do salário mínimo.
Já está em curso a flexibilização das leis trabalhistas. As privatizações e desnacionalizações estão programadas. A soberania nacional e o pré-sal estão em risco quanto ao conteúdo nacional e ao regime de partilha. O Brasil “está barato” e os credores estrangeiros se dão ao luxo de impor condições, como é o caso recente da exigência de cláusula de proteção cambial nas concessões.
Mas o investimento não foi retomado e a arrecadação segue em queda. A “confiança” está bloqueada pela crise política. Segundo o IBRE-FGV, a perspectiva para 2016 passou de recuo de 3,2% para retração de 3,4% no PIB, ao tempo em que as projeções para retomada em 2017 também estão em queda.
Imprevisível afirmar que, fixada como variável absoluta a questão fiscal para reduzir a dívida pública, sem que aumentem os impostos, tal agenda resultará na retomada do crescimento econômico sustentável.
A situação da economia internacional também não favorece – os efeitos da crise capitalista e as respostas produzidas pelas grandes potências em defesa de seus interesses, prolongam a agonia e reduzem a margem de manobra nacional.
No sistema político e institucional, Executivo, Legislativo e Judiciário estão enredados da crise. É uma barafunda que se retroalimenta.
No Executivo, em condições normais não se reúne legitimidade e autoridade sem o voto popular. Nas condições extremas de Temer, menos ainda; provavelmente jamais as reunirá. Talhado para ser o governo do “serviço sujo” e levar as forças que assaltaram o poder à vitória em 2018, as contradições e disputas desse bloco acumulam-se.
Malsucedidas as medidas econômicas em curso, sem que promovam sensível mudanças na situação social do povo, a agenda em curso estará condenada para disputar as eleições de 2018.
No Judiciário, a situação é grave, devido ao protagonismo da toga. Politizou-se a Justiça, judicializou-se a política. A situação é propícia à noção de cariz místico e fascistizante de “passar o país a limpo” em detrimento da política, promover a “redenção”.
A Lava Jato é, ela própria, um fio desencapado. O chamado “direito excepcional” pregado por Moro e o seus, apoiado em elementos da alta burocracia do Estado, avançou sem freios, mas não sem contradições. A Operação paralisa ainda mais a economia e ameaça todo o edifício do sistema político. Alegar direito excepcional frente a situações excepcionais faz desmoronar o próprio ideário da Justiça, ameaça todo o sistema político e o próprio Estado de direito democrático.
No STF, são manifestas e diuturnas as divergências políticas. Choques com a Lava Jato são explícitos por parte de Ministros. Ações e reações se sucedem, em meio também a omissões da própria instituição. No caso da invasão do Senado sem autorização do STF e sem comunicar o presidente do Congresso, o STF praticou o escapismo político de proteger corporativamente os juízes sem qualquer consideração de mérito sobre o grave acontecimento.
O Congresso reage, corretamente, ao desequilíbrio de poderes provocado pela sanha judiciária. Afinal, o Legislativo é consagrado pelo voto popular com atribuições bem demarcadas e autônomas enquanto Poder. Como não há mal isolado, o rechaço do presidente do Senado alcançou frontalmente também o Executivo, na figura do Ministro da Justiça.
Pairando sobre tudo e todos, as delações premiadas que se seguirão acentuam a imprevisibilidade dos acontecimentos. Depois da mudança de qualidade do processo, com a delação de Sérgio Machado seguida pela de Delcídio do Amaral, os entendimentos do grupo Odebrecht com o Judiciário já promovem mais instabilidade e imprevisibilidade.
As perguntas se multiplicam. Temer manterá seu mandato tampão? Seu ministério será abalado em que medidas pelos conflitos políticos e institucionais? O país marchará para eleições indiretas a presidente no Congresso? A Lava Jato alcançará o PMDB líder do Executivo e do Senado? Se houver eleições indiretas a presidente no Congresso, mudam por acaso as condições de “pacificação” da nação, como apregoado?
O STF fará valer as garantias ao devido processo penal, ao habeas corpus, às garantias individuais?
O Congresso votará sempre e alegremente contra os interesses populares vitais? Vai se manter sob a batuta da agenda do Executivo? Vai ser preservado um mínimo de institucionalidade nos seus trabalhos, sob o manto das relações políticas e institucionais entre suas diversas facções, inclusive a oposição?
São muitos os fatores de imprevisibilidade. Menos num aspecto nevrálgico: a nova ordem nascente com o assalto ao poder põe a democracia em crescentes riscos. No enfrentamento da situação, ao lado da luta social contra a agenda regressiva, torna-se também decisivo salvaguardar ao Estado Democrático de direito. O mais grave retrocesso a enfrentar é a marcha insensata do Estado de exceção.
As forças democráticas, progressistas e da esquerda, precisam ampliar seu apoio social e, além da clareza política e da mobilização social, precisam travar o combate simultaneamente no terreno da legítima ação política e das instituições.
Não se trata de ser apenas presença testemunhal no litoral da história, não se deve temer unir amplas forças para uma missão comum – defesa da Democracia. Nessa grande luta, não bastam apenas as forças da esquerda política e social.
É preciso alcançar interlocução ampliada no Congresso, malgrado o conservadorismo acachapante. Neutralizar forças nesse terreno, explorar as contradições existentes, disputar segmentos e bancadas, anda lado a lado com entendimentos tópicos que salvaguardem o terreno da política e das instituições como esfera de ação irrecusável.
Para tal empreendimento, é bom debater as palavras de André Singer em seu recente artigo Por uma frente ampla, democrática e republicana: “ […] a batalha será árdua e exigirá alto grau de abertura, no sentido de constituir frente ampla [e] vai desafiar a capacidade política da esquerda […] O sectarismo precisa ser considerado pecado mortal. A frente ampla tem de […] reunir todos aqueles que são a favor da democracia…”.
A frente imediata em torno da questão democrática é condição para seguir buscando, no seio da resistência, e em condições menos ásperas, a perspectiva de entendimentos progressivos para constituir uma organização frentista com escopo estratégico em torno de questões programáticas básicas, de caráter nacionais e populares, de afinidade entre as forças progressistas e a esquerda política e social – dando-lhe até mesmo, se possível e necessário, dimensão eleitoral.
Walter Sorrentino é vice-presidente do PCdoB