Pelo menos desde 2015, observa-se no país um contínuo crescimento de forças antidemocráticas. Com pretextos variados, direitos democráticos vêm sendo solapados. O devido processo legal – pedra de toque de um regime democrático – que define em que condições um cidadão pode ser preso, é aviltado; não se respeita o que a Constituição garante – “a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” – tudo é profanado; não se exige prova de crime, basta a denúncia de um criminoso; o flagrante não é um fato, é uma interpretação; a tortura é ajustada aos tempos modernos: ao invés de choque elétrico, arrancam-se confissões abatendo a moral da vítima, através da prisão sem culpa formada, por tempo indeterminado, com ameaças à sua família e ao fim de seus negócios; juiz não fala apenas nos autos, nem procurador apenas investiga, promovem-se na mídia. 

Tudo isso foi surgindo à margem do Estado de direito, e logo foi crescendo em tamanho e arrogância. O que parecia excepcional foi ficando permanente, e um Estado de exceção foi tomando corpo dentro e em detrimento do Estado de direito democrático. A grande mídia notabilizou-se como cúmplice dessas deformações. Os Tribunais iam se omitindo.

A justificativa geral que se propalava para tudo isso era a do combate à corrupção. Tratava-se de “pegar ladrão”. Esse era o pretexto básico.

Nosso povo, que não foi politicamente bem educado nesses anos de governos de centro-esquerda, não percebe que essa forma de combater a corrupção é falsa, que prender um, dois, cinquenta ladrões, ainda que grandes, não tem nada a ver com fechar dezenas de empresas, acabar com milhões de empregos, enfraquecer o país e abrir suas portas ao capital estrangeiro.
Os homens da Lava Jato, bafejados pela grande mídia, prepararam a grande e espetacular notícia divulgada pelos canais globais: aqui, no Brasil, não dá para se ter grande empresa, que faz grandes obras, porque o empresário brasileiro é corrupto; assim, botemos essa turma na cadeia, acabemos com suas empresas, e recebamos de braços abertos, o empresário honesto, o estrangeiro!!.

Diversos países combatem a corrupção, mas sem destruir empresas, sem desempregar sua mão de obra. Hoje, fabricar armas químicas e bacteriológicas é condenado, é crime de guerra. Mas as fábricas que as produziram até há bem pouco tempo, estão aí, fortalecidas e prestigiadas, nos Estados Unidos, na Alemanha, no Japão. Se algum criminoso foi identificado, foi retirado, e as fábricas nada sofreram.

Aqui não. Para pegar alguns ladrões, grandes que sejam, a Lava Jato arrebentou com nossa indústria, jogou milhões no desemprego, enfraqueceu a Nação.

Naturalmente que esses ladrões, devidamente identificados, deveriam ser apanhados e punidos, exemplarmente, mas sem quebra da base técnica que sustentava milhões de empregos.

Na medida em que o Estado democrático de direito ia sendo desmoralizado e negado, e ao tempo em que crescia o Estado de exceção, alguns setores perdiam força, enquanto outros se projetavam.

Perdia força, em primeiro lugar o povo, ludibriado por uma campanha falsamente moralista, que para prender uns corruptos, tirava o emprego, a saúde, a educação e as garantias do povo em geral; enfraqueceu-se a chamada classe política, mesmo a de centro e até a de direita; debilitou-se o capital nacional, desgastado e desmoralizado.

Ganharam força setores de órgãos como o Ministério Público Federal, a Polícia Federal, o Parlamento e o Judiciário. A grande mídia coordena-se com todo esse pessoal.

O impeachment e o governo Temer foram etapas desse processo. Mas as facções de ultradireita, ao se sentirem cada vez mais pujantes, ao conseguirem intimidar e neutralizar o STF e ao verem suas ações arbitrárias cada vez mais elogiadas, podem tentar avanços maiores, podem achar que o momento é para uma direitização maior, para uma fascistização do país, para um entreguismo mais desenvolto. Em suma paira sobre o Brasil o risco de uma marcha para uma ultradireita.

O que aconteceu ontem com a votação na Câmara é um sinal de deterioração séria de nossas instituições.

Depois de prolongada sessão que varou a madrugada do dia 30, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto chamado de “10 Medidas contra a Corrupção”. Independente do mérito das medidas adotadas, o processo seguiu um ritual normal: da proposição apresentada, até a votação final, tudo normal.

Pois não é que, depois de tudo isso, um funcionário público, chamado Rodrigo Janot, pago regiamente para defender a lei e a democracia, do alto do cargo de Procurador Geral da República que exerce, vem a público dizer que ele, ou melhor, que o “Ministério Público Brasileiro não apoia o texto” aprovado?

Mais que isso, uma turma do Ministério Público, ligada à Operação Lava Jato, resolve afrontar escancaradamente o Legislativo e, portanto, o Estado de Direito democrático, ameaçando renúncia coletiva de seus afazeres, se o Congresso não mudar o que já foi aprovado na Câmara.

A afronta é aberta. Sinal de que o que era tendência, já está mostrando a cara, o que crescia, já arreganha dentes ameaçadores ao Estado de direito.

Na ditadura militar, sabíamos que nem todos os militares estavam com ela comprometidos. Mas os que assim estavam, eram ousados, atrevidos, e nós os chamávamos de membros da “comunidade de informações”. Hoje, claro, nem todos os juízes, nem todos os procuradores, nem todos os policiais federais fazem parte do Estado de exceção que se movimenta. À falta de nome melhor, os que fazem parte desse Estado podem ser identificados como membros da “comunidade da Lava Jato” .

O caráter grotesco da reação do Ministério Público ao resultado da votação na Câmara faz-nos lembrar o personagem Eremildo, o idiota, criado pelo Elio Gaspari e que, inocentemente, talvez perguntasse à “comunidade da Lava Jato”: mas, para aprovar uma lei, a Câmara precisa de seu apoio prévio?

Faz-nos lembrar também do Trump, o presidente eleito dos EUA, que perguntado em um debate se respeitaria o resultado das eleições, insolentemente sapecou: “só se eu ganhar”.

Um ministro do STF, que não sendo da “comunidade da Lava Jato”, tem feito judiciosas e corajosas reflexões, de março para cá, sobre o quadro que se está criando no país, é o Ministro Marco Aurélio.

Em março, resgatou a advertência do Ruy acima lembrada: “A pior ditadura é a do Judiciário.”
Logo depois, mostrou-se escandalizado com o abuso de poder exibido pelo Juiz Sérgio Moro decidindo pela condução coercitiva de Lula. E disse: “Condução coercitiva pressupõe recusa a uma intimação prévia.” “Até o regime de exceção observava essa norma”.

Sobre as tendências absurdas a privilégios de casta para a magistratura, agregou, em março Marco Aurélio: “As cortes superiores não devem ser protegidas sob o manto da intangibilidade”; “Não somos semideuses, somos apenas operadores do Direito”; “A despeito de estar fragilizado, é o Congresso que legisla. Se o Supremo não exercer autocontenção, onde vamos parar? ” “O país está desprovido de segurança jurídica para a quadra delicada que atravessa”.

E não é só o Supremo que precisa ser contido dessa sua propensão legiferante, mas também o Ministério Público, que está posando de semideus da ditadura do Judiciário que emerge. O Procurador Deltan Dallagnol, um dos chefes da “comunidade da Lava Jato”, esteve há pouco na Câmara, como porta-voz de um pleito absolutamente despropositado: retirar os Procuradores e o Juízes da lei que iria coibir o abuso de autoridade!!

Era de se supor que Juízes e Procuradores, ciosos da ideia de que “ninguém está imune à lei”, procurassem o Parlamento para dizer mais ou menos o seguinte: “se as autoridades do país vão ser fiscalizadas, na forma da lei, queremos ser tratados como as demais autoridades, pois não somos uma casta, não somos diferentes, não somos imunes à lei”. Mas, qual não foi a surpresa de todos quando se soube que o Procurador Deltan foi ao Parlamento pedir para que os Juízes e Procuradores não fossem colocados na lei, porque se sentiriam ameaçados!!! Quer dizer, todos têm que ficar nos limites da lei, e isto não é ameaça; mas Juízes e Procuradores terem que respeitar, a lei é uma ameaça?

As forças vivas da Nação, políticos democratas de uma maneira geral, trabalhadores, estudantes, intelectuais, empresários, todos devem se unir, inclusive com Juízes, Procuradores e Policiais Federais, defensores do Estado de direito democrático, para repelir a marcha da “pior ditadura” que ameaça o país.

Haroldo Lima é membro da Comissão Política Nacional do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil e foi deputado federal na Assembleia nacional Constituinte (1987-1988)