As interpretações correntes

O Manifesto do Partido Comunista apresenta e desenvolve, ainda que de modo sumário, duas teses relativas à teoria da história que, juntas, continuarão orientando as análises econômicas e políticas de Marx e Engels: o processo de mudança histórica é apresentado, nesse texto, como resultado do crescimento das forças produtivas e da luta de classes.

Esses dois fatores influenciam-se reciprocamente e de diversas maneiras. De um lado, o desenvolvimento das forças produtivas pode produzir novas classes sociais e alterar a base econômica das classes em luta. O Manifesto nos mostra que o desenvolvimento da maquinaria e da grande indústria fortalece a classe burguesa, faz crescer o proletariado e arruína o artesanato e a pequena burguesia tradicional. De outro lado, a luta de classes interfere nas características e no ritmo de crescimento das forças produtivas. Esse é um aspecto que tem passado mais despercebido na leitura do Manifesto. No entanto, esse texto mostra, em primeiro lugar, que a burguesia precisou «pôr abaixo» a ordem feudal para liberar o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, e, em segundo lugar, que essa mesma burguesia trava uma luta – que é uma luta de classe – contra os artesãos e os operários das manufaturas, para colocar a máquina no lugar da ferramenta, isto é, para desenvolver as forças produtivas de modo a desqualificar o trabalho do operário, convertê-lo em mero apêndice do instrumento de trabalho, tornar possível a utilização de mulheres e crianças na produção e reduzir os salários.

Porém, as influências recíprocas existentes entre o desenvolvimento das forças produtivas e a luta de classes não justifica que se negue a especificidade de cada um desses fenômenos. No que diz respeito ao Manifesto do Partido Comunista, esse texto distingue de modo claro forças produtivas, relações de produção e luta de classes. A ideia de Marx e de Engels nesse texto é que o desenvolvimento das forças produtivas, numa certa etapa do processo histórico, coloca em crise as relações de produção vigentes. O desenvolvimento das forças produtivas é apresentado como o elemento dinâmico; as relações de produção, que na fase inicial de constituição de um dado modo de produção tinham estimulado o desenvolvimento das forças produtivas, convertem-se em entrave para tal desenvolvimento e passam a funcionar como o fator de inércia do processo histórico. Marx e Engels aplicam essa tese na análise que fazem, no capítulo I do Manifesto, da transição do feudalismo para o capitalismo, quando tratam do papel revolucionário da burguesia, e, também, ainda no mesmo capítulo, na análise das crises de superprodução do capitalismo – crises provocadas pela contradição entre, de um lado, a estreiteza das relações de produção capitalistas e, de outro, o crescimento das forças produtivas. Esse crescimento é, então, o fator econômico, espontâneo e inconsciente da mudança histórica.

Mas esse fator é também insuficiente. Para que tal mudança ocorra é necessário um segundo fator: a existência de um agente social interessado nela e capaz de promovê-la. É aqui que o papel da luta de classes é decisivo. Essa luta envolve tanto aspectos objetivos, de ordem econômica e política, quanto aspectos subjetivos, de ordem política e ideológica. A classe social que tem interesse na mudança histórica precisará organizar-se para promovê-la e precisará, também, vencer as classes interessadas na preservação do modo de produção vigente. Pois bem, no Manifesto há uma reflexão sobre as condições necessárias para que a classe dominada do modo de produção capitalista, o proletariado, possa organizar-se como uma força social autônoma em torno de um programa comunista e possa se apresentar como a força dirigente da revolução. Esse é o processo que Marx e Engels designam, sugestivamente, com as expressões «constituição do proletariado em classe» e «desenvolvimento do proletariado». As duas expressões são sugestivas porque, de um lado, pressupõem a existência objetiva do proletariado e, de outro, porque sugerem que seu desenvolvimento ou constituição em classe não é um simples reflexo, no plano político e ideológico, daquilo que já estaria dado no plano econômico. Essa constituição, pensada em outros textos de Marx como a transição da classe «em si» para a classe «para si», está vinculada no texto do Manifesto à reflexão sobre as condições econômicas e políticas necessárias para que o proletariado possa (tentar) fazer a revolução.

Como e porque os operários podem agir unificadamente como classe? O processo de constituição do proletariado em classe é apresentado no Manifesto como um processo irregular, cumulativo mas reversível e, também, marcado por rupturas e saltos de qualidade. É apresentado, também, como um processo bifronte. A resistência econômica do proletariado, na luta direta contra os capitalistas que o exploram, não é propriamente uma ação unificada de classe, embora possa servir de base para esse tipo de ação. A luta sindical não é, ainda, a luta comunista. A ação do proletariado como classe dá-se, no Manifesto, no terreno político, colocando o proletariado em relação com todas as demais classes que compõem a sociedade capitalista. Nesse sentido, a leitura correta do Manifesto é uma leitura leninista, pois o Manifesto distingue a luta pelo poder de Estado da luta sindical reivindicativa. É leninista, também, por uma outra razão. Marx e Engels esboçam alguns dos elementos que Lênin utilizaria, mais tarde, para elaborar o conceito de crise revolucionária: o Manifesto atribui à luta política da burguesia contra a classe feudal decadente e contra as burguesias concorrentes de outros países um papel decisivo na constituição do proletariado em classe. A luta entre «os de cima», como diria mais tarde Lênin ao arrolar as características de uma situação revolucionária, pode educar politicamente a classe operária e criar uma crise política que possibilite a conquista do poder pelo proletariado.

Inúmeras variantes do economicismo ignoram ou rejeitam essa análise presente no Manifesto. Harold Laski, num texto longo e importante sobre o Manifesto, desconsidera o papel que o texto de Marx e Engels atribui às lutas dirigidas pela burguesia no processo de constituição do proletariado em classe. Para Laski, que pretende retratar o que o Manifesto afirma sobre o tema, a industrialização capitalista, o crescimento da classe operária, a resistência sindical, a formação de um partido socialista e a eventual tomada do poder são elos sucessivos de um processo linear, gradual e cumulativo, que seria o processo de constituição do proletariado em classe (1). Jean Jaurès, num texto clássico e primoroso do reformismo social-democrata, aponta, diferentemente do que faz Laski, a importância que Marx e Engels atribuem à luta entre «os de cima» para a constituição do proletariado em classe. Porém, o objetivo de Jaurès é fazer a critica sistemática dessa tese do Manifesto ( 2). No momento atual, o economicismo está de novo em voga. Ele tem informado grande parte das análises que se faz da crise do movimento socialista neste final de século, atribuída, exclusivamente ou principalmente, a mudanças ocorridas no interior das fábricas e no mercado de trabalho e identificada com a crise do movimento sindical. Tratemos de examinar, então, a análise que é apresentada no Manifesto e ver o que se pode dizer de sua eficácia.

O que os comentaristas ignoram

O Manifesto discorre sobre a condição do operariado no mercado e na produção, atentando também para a composição social da classe operária ( 3). O operário é o produtor constrangido (já que não possui propriedade) a vender-se no varejo, isto é, a vender parceladamente seu tempo de trabalho (já que não é um escravo, cuja própria pessoa é objeto de compra e venda) como uma mercadoria. Como uma mercadoria, o trabalho do operário está sujeito às flutuações do mercado e os operários são colocados em concorrência uns com os outros. Na produção, o operário é um apêndice da máquina, está submetido, como soldado raso da indústria, ao despotismo dos oficiais e suboficiais da fábrica moderna. A máquina dispensa, em certa medida, a força física, desqualifica e barateia o trabalho do operário. A classe operária passa a acolher em suas fileiras mulheres e crianças em escala crescente. O desenvolvimento da indústria aumenta o contingente de operários, concentra-os geograficamente e aproxima seus interesses e condições de vida. Por isso, o desenvolvimento da indústria favorece a formação de coalizões para a defesa dos salários. De um lado, essas coalizões podem, no processo de luta, fazer crescer a unidade e a organização do proletariado. Porém, de outro lado, a concorrência entre os operários mina e obstrui o processo de constituição do proletariado em classe. Na maioria dos casos, os comentadores do Manifesto param aí em suas considerações sobre o tratamento que o texto dá ao processo de constituição do proletariado em classe. É como se tal processo estivesse circunscrito ao terreno da economia. Porém, boa parte do capítulo I do Manifesto é escrita para mostrar que a constituição do proletariado em classe não seria possível sem as peculiaridades da política e da luta de classes na sociedade capitalista. No dizer de Marx e Engels, a burguesia «arrasta» o operariado para a luta política.

«A burguesia vive em luta permanente. (….) Em todas essas lutas, vê-se obrigada a apelar para o proletariado, a recorrer a sua ajuda e desta forma arrastá-lo para o movimento político.» (4).

Marx e Engels referem-se, em primeiro lugar, à luta da burguesia contra a aristocracia feudal. Eles escrevem o Manifesto numa época em que a Alemanha e a Itália não tinham realizado sua revolução burguesa. A burguesia da França e da Inglaterra, embora tivessem feito sua revolução, encontravam-se ainda em luta contra os resquícios da ordem feudal e da aristocracia decadente. Referem-se, em segundo lugar, à luta da burguesia industrial contra as frações burguesas que tolhem o desenvolvimento da indústria. Em terceiro lugar, referem-se à luta de cada burguesia nacional contra as burguesias rivais dos países estrangeiros. Por último, Marx e Engels falam da deserção de setores da burguesia que podem passar para o movimento socialista. Tem em mente, especialmente, parte dos intelectuais burgueses que, tendo compreendido o processo de evolução histórica no seu conjunto, poderia passar, nos momentos mais agudos da luta, para o lado do proletariado.

Tudo isso poderá parecer banal. Porém, essa dinâmica na qual a classe dominante introduz ou aceita a participação organizada da classe dominada na luta política é uma particularidade do modo de produção capitalista, e é um dos fatores que explicam o fato de o proletariado ser a primeira classe dominada da história com condições de hegemonizar um processo revolucionário. Se nos três tipos de luta citados, a burguesia pode «arrastar» o proletariado para o movimento político, propiciando sua organização e educação, tal se deve ao fato de o capitalismo ser o primeiro modo de produção na história da humanidade que concede personalidade jurídica plena ao produtor direto explorado – o trabalhador é livre no plano jurídico. O operário moderno não é um escravo e nem um servo de gleba. Resulta daí que a burguesia pode, sem que esse gesto subverta a ordem social existente, apelar ao proletariado: ela apela a um cidadão como outro qualquer. As classes dominantes dos modos de produção pré- capitalistas não podiam estabelecer alianças com escravos ou servos. De um lado, esses produtores, dada sua situação de sujeição pessoal, não possuíam qualquer tipo de organização permanente, não constituíam uma força minimamente organizada a tentar os setores das classes dominantes que lutavam entre si, e, de outro lado, a busca de uma aliança significaria reconhecer nos produtores diretos capacidade jurídica e vontade própria, negando, por esse ato, toda a base jurídica e ideológica sobre a qual se assentava o trabalho compulsório e, por extensão, toda economia escravista ou feudal (5). Também a deserção de parte da intelectualidade burguesa tem a ver com as particularidades do capitalismo. Nos modos de produção pré-capitalistas, a intelectualidade está fundida à classe dominante, não configurando uma camada social específica dotada de relativa autonomia. Portanto, em todos os aspectos examinados, a matriz do modo de produção capitalista é um fator importante para que possa ocorrer o processo de constituição do proletariado em classe.

Voltando às lutas permanentes da burguesia, cabe destacar dois pontos. Primeiro ponto, Marx e Engels consideram que as contradições no seio das classes dominantes podem propiciar não só, como já dissemos, a constituição do proletariado em classe e a oportunidade da revolução, mas também a obtenção de reformas do capitalismo. Eles afirmam que o proletariado aproveita as divisões internas da burguesia para obrigá-la ao reconhecimento legal de certos interesses dos trabalhadores. Citam como exemplo a divisão das classes dominantes inglesas que propiciou a aprovação, pelo parlamento, da lei da jornada de dez horas de trabalho, exemplo que Marx retomará em detalhe no capítulo VIII d’O Capital. Segundo ponto, a divisão que Marx e Engels privilegiam no seio das classes dominantes é, muito compreensivelmente, a divisão típica do período de revolução burguesa no continente europeu.

«É sobretudo para a Alemanha que se volta a atenção dos comunistas, porque a Alemanha se encontra às vésperas de uma revolução burguesa e porque realizará essa revolução nas condições mais avançadas da civilização européia e com um proletariado infinitamente mais desenvolvido que o da Inglaterra no século XVII e o da França no século XVIII; e porque a revolução burguesa alemã só poderá ser, portanto, o prelúdio imediato de uma revolução proletária.» (6)

Não é para a Inglaterra, país da indústria capitalista moderna e do operariado mais desenvolvidos da Europa, que Marx e Engels dirigem sua expectativa de revolução. Esse fato evidencia a importância apenas relativa que conferem ao tamanho e à concentração do operariado; evidencia também a impropriedade dos comentadores que ignoram o processo político estrito senso como elemento fundamental na constituição do proletariado em classe. A revolução proletária poderia partir do país que possuía a economia capitalista e o movimento operário menos desenvolvidos dentre as grandes nações europeias. A hipótese é que o operariado alemão poderia dar um salto no seu processo de constituição em classe graças à crise revolucionária que deveria ocorrer naquele país. Uma situação em que o proletariado se constitui em classe através de um salto abrupto, sem acumulação gradativa, e em decorrência de uma crise política, não do desenvolvimento econômico. Tal deslocamento, para a Alemanha, do centro de gravidade da revolução prenuncia, mais uma vez, um conceito leninista. A Alemanha aparece, no Manifesto, como o «elo mais fraco» da cadeia capitalista europeia, do mesmo modo que a Rússia aparecerá, mais tarde para Lênin, como o «elo mais fraco» da cadeia imperialista internacional. O essencial nessa questão é a crise revolucionária aberta pelo processo de revolução burguesa na Alemanha, no curso do qual o proletariado poderia, não apenas constituir-se rapidamente como classe, como também tomar o poder de modo revolucionário, desviando o curso inicial da revolução.

Esse enfoque do Manifesto sugere algumas conclusões importantes. Primeiro, ele permite dizer que, nesse texto, não apenas o proletariado, criado pelo desenvolvimento do capitalismo, pode fazer, desde que as condições o permitam, a revolução, como também a revolução, isto é, a crise revolucionária, pode fazer o proletariado; ou seja, pode ensejar sua constituição em classe com um programa político próprio. Em segundo lugar, tal enfoque implica que o movimento operário seja analisado nas suas conexões com as demais lutas políticas em curso nas sociedades capitalistas. O movimento socialista deve ser visto como um movimento que cresce junto com as demais lutas sociais progressistas, não como algo isolado na fábrica, no sindicato ou no partido socialista. No capítulo IV, intitulado Posição dos Comunistas Diante dos Diversos Partidos de Oposição, Marx e Engels propõem que os comunistas se aliem, nos diferentes países da Europa, com as lutas democráticas, camponesas e de libertação nacional. 

A atualidade da polêmica com Jean Jaurès

Jean Jaurès, como anunciamos, critica essa concepção do processo de constituição do proletariado em classe e da tomada do poder pela classe operária. Para Jaurès a classe operária avança para o comunismo através de um processo gradual, cumulativo, sem saltos, e baseado, no plano da economia, no desenvolvimento industrial e no crescimento dos sindicatos, e, no plano político, no sufrágio universal e na democracia. É uma visão economicista do processo de constituição do proletariado em classe e legalista da transição ao socialismo (7). Jaurès argumenta que a análise de Marx e Engels é, de um lado, equivocada na sua formulação e, de outro lado, referir-se-ia a uma realidade histórica que, no início do século XX, já teria sido eliminada.

Ele chama a teoria de Marx e Engels de teoria da «revolução parasita»: a revolução de uma classe (o operariado), ainda imatura e incapaz, que depende da revolução desencadeada pela classe inimiga (a burguesia). O erro da teoria da «revolução parasita» seria ignorar que se a classe operária é incapaz de desencadear a revolução, ela o seria, também, para desviar a revolução do seu curso burguês. Sobre a necessidade que o movimento operário teria da «muleta» da revolução burguesa, Jaurès é incisivo: se uma característica importante do pensamento utópico é ignorar a força própria da classe operária, o Manifesto pertence, ainda, ao período da utopia. Para Marx, diz Jaurès:

«(….) é a própria burguesia que, tendo de completar seu próprio movimento revolucionário, dará o sinal de desmoronamento.» (op. cit.. p. 141) «Assim, é com base em uma revolução burguesa vitoriosa que se enxertará a revolução proletária.» (op. cit. p. 142).

«Robert Owen e Fourier contam com a generosidade das classes superiores. Marx e Engels esperam, para o proletariado, o favor de uma revolução burguesa.» (op. cit. p. 143).

Sobre a dependência da classe operária frente ao «favor» da revolução burguesa, cabe lembrar, em primeiro lugar, que o Manifesto mostra, na crítica que faz aos «verdadeiros socialistas», que priorizar a luta contra a burguesia no momento em que essa luta contra a nobreza feudal é fazer o jogo da reação – é por isso que Marx e Engels incluem os «verdadeiros socialistas» na categoria «socialismo reacionário». Em segundo lugar, é importante indicar que o «enxerto» de uma revolução num movimento que lhe é estranho não constitui primazia do proletariado. A burguesia também dependeu, para fazer sua revolução na França, do «favor» da revolta da nobreza feudal contra uma monarquia feudal que, por via autoritária, procurava impor-lhe sacrifícios. Foi a revolta da nobreza feudal contra a tentativa de reforma fiscal de Luis XVI, e a consequente convocação dos Estados Gerais, que «arrastou» a burguesia, e atrás dela a pequena burguesia e o campesinato, para a luta política ( 8). O processo político é repleto desses «paradoxos». O egoísmo de classe ou de fração pode cegar: a nobreza feudal recusou-se a entregar os anéis na reforma fiscal e perdeu tudo na reforma agrária realizada pela revolução. Tais «paradoxos» não indicam, ao contrário do que pretende Jean Jaurès, imaturidade ou incompetência das classes que se aproveitam das brechas abertas pela ação de seus inimigos.

A segunda crítica de Jaurès consiste em afirmar que a teoria da «revolução parasita» está, no ano de 1901 quando ele escreve o seu artigo, superada pela história.

«O período revolucionário da burguesia terminou. (….) Agora, é sem cobertura, no amplo terreno da legalidade democrática e do sufrágio universal, que o proletariado socialista prepara, estende, organiza a sua revolução.» (op. cit. p. 149)

Ora, é possível sustentar que, alguns anos após a publicação do texto de Jean Jaurès, a teoria da «revolução parasita» funcionou na Rússia Czarista. Uma revolução democrático-burguesa transformou-se numa revolução operária e popular. Isso não significa que a história confirmou o conjunto da análise de Marx e Engels, e não nos dispensa tampouco de apontar onde Jean Jaurès errou.

Marx e Engels erraram na avaliação das potencialidades de expansão do capitalismo em meados do século XIX. A revolução proletária não se converteu em possibilidade real em nenhum país europeu na crise revolucionária de 1848. Porém, seu método de análise sobre o processo de constituição do proletariado em classe e sobre as condições para que o proletariado erija-se em classe dominante revelou-se correto. O desenvolvimento industrial e o tamanho do contingente de operários, se podem ser importantes para a formação do movimento sindical, revelam-se de importância apenas relativa quando se trata da formação do movimento socialista. Nesse terreno, são as contradições que dividem o conjunto das classes em presença e as crises oriundas dessas contradições, bem como a importância e o posicionamento da intelectualidade, que propiciam o crescimento do socialismo e a revolução proletária. Durante a segunda metade do século XIX, a Inglaterra, país de maior desenvolvimento capitalista, foi a pátria do sindicalismo e ignorou o movimento socialista. No início do século XX, a Rússia, país de baixo desenvolvimento capitalista e de sindicalismo incipiente e fraco, converteu-se no principal centro do movimento socialista internacional. E esse socialismo desenvolveu-se inextrincavelmente ligado à luta camponesa, democrática e de libertação nacional. O contraste maior entre grande desenvolvimento capitalista e debilidade do movimento socialista talvez tenha se dado nos EUA. A rigor, apenas na Alemanha do início deste século, o desenvolvimento industrial, o sindicalismo e o socialismo caminharam juntos; mas não necessariamente nessa ordem: como se sabe, na Alemanha, foi o partido socialdemocrata, que crescera devido a implantação do sufrágio universal, que criou o sindicalismo operário.

Os erros de Jaurès foram, em primeiro lugar, considerar a revolução burguesa apenas na Europa Ocidental. Ora, o século XX foi o século das revoluções burguesas em inúmeros países da Europa Central, da Ásia e da América Latina. Em alguns desses países uma revolução proletária ou popular foi enxertada na revolução burguesa. Ademais, a passagem do poder político para a classe burguesa é o momento essencial do processo revolucionário burguês, mas não o esgota. O movimento negro pelos direitos civis nos Estados Unidos das décadas de 1950 e 1960 deve ser visto, rigorosamente, como prolongamento da revolução burguesa estadunidense, e é desnecessário lembrar o impulso que tal movimento deu à luta popular naquele país. A luta pela reforma agrária no Brasil também é parte da revolução burguesa, ainda que se desenvolva em bases novas.

Em segundo lugar, Jean Jaurès menosprezou a importância da luta de cada burguesia nacional contra as burguesias rivais dos países estrangeiros. A Guerra Franco-Prussiana esteve na origem da Comuna de Paris. A Primeira Guerra Mundial esteve na origem da Revolução Russa, e originou, também, situações revolucionárias em alguns países da Europa. A Segunda Guerra Mundial favoreceu a luta de libertação nacional e a luta operária nos países periféricos, além de ter favorecido a Revolução Chinesa. A classe operária pôde também se aproveitar dos conflitos entre as burguesias imperialistas para obter reformas importantes, repetindo um caminho já elucidado no Manifesto. De fato, a burguesia inglesa, para conquistar o apoio do «seu» operariado na luta contra a agressão do imperialismo alemão, viu-se obrigada a elaborar o programa do Estado de bem-estar, algo semelhante ao que o gaulismo fora obrigado a fazer na França para soldar a frente de classes do movimento da Resistência Francesa.

Em terceiro lugar, Jaurès ignorou que as contradições entre as diversas frações burguesas – Marx e Engels citam a contradição entre a burguesia industrial e os setores burgueses que tolhem a industrialização, mas poderíamos colocar aqui a contradição entre o grande e o médio capital, entre as burguesias nacionais e o imperialismo etc. – não desapareceram com o desenvolvimento do capitalismo.

Em suma, o século XX mostrou que a afirmação segundo a qual «a burguesia vive em luta permanente» não pertence a uma realidade histórica superada. As revoluções e reformas realizadas e obtidas pelo movimento operário mostraram também a justeza da tese segundo a qual a luta entre «os de cima» favorece a constituição do proletariado em classe.

Acrescentaríamos que o enfoque esboçado no Manifesto pode oferecer pistas importantes para compreender o refluxo do socialismo e da revolução no final do século XX. Mas isso seria tema para outro ensaio (9).

Notas

* Este texto está publicado em Armando Boito Jr., Estado, política e classes sociais. São Paulo: Editora Unesp, 2007, pp. 201-212. A sua primeira versão foi publicada na revista Crítica Marxista, n. 6, São Paulo, Editora Xamã, 1998, pp. 106-125. 

** Professor Titular de Ciência Política da Unicamp e Editor da revista Crítica Marxista.

1 O artigo de Harold Laski, intitulado «Communist Manifesto», foi escrito em 1947 por encomenda do Labour Party para a comemoração do centenário da publicação do texto de Marx e Engels. Ver Osvaldo Coggiola (org.) Manifesto Comunista, São Paulo, Boitempo Editorial, 1998, pp. 169-231. A passagem que nos interessa encontra-se às páginas 185-186.

2 O artigo de Jean Jaurès, intitulado «Le Manifeste Communiste de Marx et Engels», foi escrito em 1901 para o jornal Petite République. Como o artigo de Laski, ele ganhou, neste ano, uma tradução para o português. Ver Osvaldo Coggiola (org.) Manifesto Comunista, São Paulo, Boitempo Editorial, 1998, pp. 137-159.

3 As considerações que seguem baseiam-se, fundamentalmente, no capítulo I do Manifesto, intitulado Burgueses e Proletários, e no capítulo IV, intitulado Posição dos Comunistas Frente aos Diferentes Partidos de Oposição. É nesses dois capítulos que Marx e Engels tratam diretamente do nosso tema.

4 Utilizo a tradução portuguesa de Álvaro Pina, publicada no livro organizado por Osvaldo Coggiola Manifesto Comunista, op. cit., p. 48.

5 Alain Badiou e François Balmès mostraram que nos modos de produção pré-capitalistas não pode exisitir movimento e organização permanente da classe dominada. Ver dos autores De l’Idéologie, François Maspero, Paris, 1976.

6 Manifesto Comunista, edição citada, p. 69.

7 Ver o artigo de Jean Jaurès publicado em Manifesto Comunista, op. cit., pp. 137 – 159.

8 Ver o clássico de Georges Lefebvre 1789, O Surgimento da Revolução Francesa, São Paulo, Editora Paz e Terra, 1990.

9 Abordei esse tema no artigo «O Economicismo Oculta a Revolução», Crítica Marxista, n.2. 

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