Ataque à Síria expõe fundamentos do regime norte-americano
Por qualquer ângulo que se olhe para Donald Trump, depois que ele ordenou o ataque dos Estados Unidos à Síria — com a conivência das potências europeias —, é impossível não ver um criminoso de guerra. Ele é o típico representante do Partido Republicano afinado com os chefes militares do Pentágono, os senhores da guerra que, pela natureza do regime norte-americano, são uma proeminente fonte de poder, o escalão mais importante e mais caro do governo dos Estados Unidos. São os operadores da “ordem militar” que hipertrofiou-se dos anos 1950 para cá.
Eles criaram a carnificina na Síria, que choca porque, primeiro, é cruenta; depois, porque forma assustadoras perspectivas. É, a rigor, uma guerra contra os povos, um genocídio. Com o poderio dos senhores da guerra, saíram de cena os sorridentes homens de relações públicas e entrou em ação a face da sinistra burocracia instalada na máquina mortífera do Departamento de Estado. Todos os fenômenos políticos e econômicos passaram a ser julgados à luz das interpretações militares da realidade.
Desde os anos da Segunda Guerra Mundial, essa força ampliou seu campo de ação em assuntos relativos à política exterior e doméstica. Atualmente, a ordem militar do poderoso Estado-Maior Conjunto está solidamente instalada no Estado. O “realismo militar” dos seus chefes transformou-se no guia mais inspirado dos grupos dirigentes do país.
Força bruta
Existem dois governos nos Estados Unidos — o que o mundo conhece pela mídia e as crianças norte-americanas estudam nos livros escolares, e o invisível, o que conduz a espionagem e a rede de informações, um aparato maciço que emprega centenas de milhares de pessoas secretamente e conduz a política externa do país. Esse governo invisível emergiu das imposições dos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial.
Os demais países capitalistas centrais, exaustos pela guerra, foram obrigados a aceitar essa ordem em troca de ajuda para a sua reconstrução. Assim, os Estados Unidos deixaram de ser apenas mais um agregado no conjunto de países que lutavam por pedaços do mundo e passaram a ocupar o pico de uma pirâmide solidamente dirigida por eles — que funciona pela regra da força bruta, pela qual chora menos quem pode mais. Definiram as regras desse jogo, portanto, num momento privilegiado para eles.
Terceiro Mundo
Nenhum representante do chamado Terceiro Mundo participou desses tratados. A Europa, destruída por duas grandes guerras num curto espaço de tempo, não estava em condições de se opor à grande capacidade de produção norte-americana proporcionada pela Segunda Revolução Industrial — que dotou o país de uma poderosa e inovadora indústria. Na Ásia, o Japão, também destroçado pela guerra, foi ocupado pelos Estados Unidos, que ditaram o rumo da sua reconstrução.
No final dos anos 1940, somente o regime de Washington estava em condições de exportar capital em grande escala. E o país usou essa posição privilegiada para manter sob o seu controle as rédeas num mundo que buscava alternativas ao seu modelo político e econômico. Esse processo do pós-Segunda Guerra Mundial que desencadeou a dominação norte-americana no chamado mundo ocidental, portanto, levou o capitalismo a uma transformação profunda.
Na Europa, o projeto social-democrata procurou adaptar a economia planejada à tradição comercial liberal do velho continente. No Japão, o Estado se reforçava para desempenhar um papel de destaque no planejamento econômico. E cerca de um terço da população mundial rompeu com esses paradigmas e se juntou à União Soviética para reforçar o sistema de economia totalmente planificada. Desde então, os Estados Unidos intervieram em vários países e promoveram uma feroz cruzada anticomunista em âmbito mundial.
A disparidade de poder — sobretudo militar — entre os Estados Unidos e os demais países é um dos pontos que explicam o rompimento brusco da institucionalidade internacional nas guerras no Oriente Médio. Até recentemente, sob a proteção do guarda-chuva nuclear norte-americano, esteio da Guerra Fria, as demais potências capitalistas se desenvolveram num ambiente sem guerras. A economia japonesa, umbilicalmente ligada à norte-americana, floresceu. E a Europa Ocidental evoluiu ao ponto de construir uma entidade supranacional, a União Europeia.
Fim da história
A derrota da experiência socialista, depois de surgir triunfante e ter parecido realmente capaz de superar o capitalismo — especialmente nos dois pós-guerras —, fez com que o domínio norte-americano da pirâmide mundial passasse a ser ainda mais ditatorial. Com a derrocada de um dos pratos da balança da Guerra Fria, a oposição aos ditames de Washington praticamente desapareceu.
O fim do bloco soviético, em seu sentido econômico e político — anunciado por Francis Fukuyama, então figura chave dos estrategistas da Casa Branca, como “o fim da história” —, fez o ex-presidente norte-americano George Bush pai proclamar o advento de uma “nova ordem mundial”, quando os monopólios do país anunciaram o início de uma era “pós-moderna” de “globalização” e liberalismo renovado. Mas essa nova fase também privou os Estados Unidos de um inimigo definido, que negociava conflitos localizados e equilibrava as ações bélicas de largo espectro — e fez com que antigos aliados, entre os quais os fundamentalistas armados para combater os soviéticos, se voltassem contra Washington. Como resultado, a ação política de viés moderno cedeu lugar ao emprego do terrorismo — incluindo o terrorismo de Estado — numa escala sem precedentes.
As tensões antes abafadas pelo jogo internacional afloraram e foram reduzidas à pura expressão militar. Novos inimigos, reais ou forjados, entraram em cena e passaram a ser considerados pela estratégia do Pentágono como alvos — destacadamente as nações e regimes que não rezam pela cartilha de Washington e as organizações políticas que em diferentes pontos do planeta discordam da hegemonia norte-americana. No âmbito do regime de Washington, esse quadro foi construindo uma tática belicosa fundada basicamente num imaginário “choque de civilizações” — ideia expressa por Samuel Huntington em seu livro homônimo. Segundo o autor, a conjunção da “civilização confuciana com a islâmica” seria, hoje, a maior ameaça ao ocidente.
Declaração de Independência
A relação do ocidente com o oriente é uma das formas clássicas de entender a configuração mundial moldada por duas guerras mundiais — e algumas guerras locais — ao longo do século XX. Mais do que projeções geográficas e culturais, esse modo de ver o planeta é corroborado pela análise econômica. Afinal, o corte é preciso em discriminar os países relevantes para a economia norte-americana daqueles que não o são. É evidente que a América Latina e a África não têm o mesmo assento no termo ocidente, mas são regiões que, consideradas globalmente, ainda não oferecem perigo à hegemonia anglo-americana construída ao longo do século XX.
A política norte-americana sempre causou reação porque ela é expansionista e agressiva. A própria constituição dos Estados Unidos como nação encerra uma contradição entre o que foi proclamado dia 4 de julho de 1776, quando o povo norte-americano aprovou a Declaração de Independência, e a política exterior da jovem pátria. As premissas do expansionismo continental norte-americano foram criadas com as guerras contra a população indígena e as reivindicações dos latifundiários do sul do país de ampliar o território avançando pelas fronteiras de seus vizinhos.
Pretensões pan-americanas
William Foster, estudioso da história política do continente americano, diz que o próprio nome do país — Estados Unidos da América — expressa suas pretensões pan-americanas. Já no começo do século XIX, a contradição entre os princípios humanitários e democráticos proclamados pela Declaração de Independência e a política exterior do jovem Estado levou à renúncia das suas tradições libertárias. A doutrina do direito natural de todos os povos decidirem seu próprio destino — um dos fundamentos da Declaração de Independência — passou a ser interpretada de modo a justificar como “natural” o expansionismo norte-americano.
Para os dirigentes dos Estados Unidos, essa doutrina dava ao país o direito de encarar o continente como sua área de influência direta. Com esse argumento, a princípio os presidentes Thomas Jefferson e John Adams “compraram” a Luisiana — que pertencia à França — e ocuparam a Flórida — que pertencia à Espanha. Depois, em 2 de dezembro de 1823, com a mensagem do presidente James Monroe ao Congresso foi proclamada a famosa “Doutrina Monroe” — que expressa sem ambiguidades as pretensões norte-americanas à hegemonia em todo o hemisfério ocidental.
Influência da religião
Desde então, a propaganda norte-americana invocou esses princípios para justificar as ações políticas e militares extraterritoriais dos Estados Unidos. Para aquele sistema de poder, fortemente vinculado ao seus interesses econômicos, os norte-americanos têm o dever natural e sagrado de levar as suas tradições liberais e “democráticas” aos povos “incultos” do resto do mundo. Por mais simplista e racista que esse pensamento possa parecer, ele é abertamente proclamado no país desde a instauração do chamado “Destino Manifesto”.
É forte a influência da religião nessa “teoria”, um destino que teria sido profetizado pela “providência divina”. O ex-presidente George W. Bush, por exemplo, levava ao pé da letra a frase “In God we trust (Em Deus nós confiamos)” impressa em cada nota do dólar. As reuniões ministeriais na Casa Branca começavam com oração e frases bíblicas sempre apareciam em seus discursos.
Em sua gestão, Bush propôs a canalização de recursos sociais para entidades religiosas, a autorização de preces e sermões em escolas públicas, o subsídio a faculdades geridas por grupos religiosos e o financiamento do trabalho de entidades religiosas em presídios — uma ofensiva jamais feita, apesar da tradição religiosa do país, contra a separação entre igreja e Estado, um dos princípios basilares consagrado na Primeira Emenda à Constituição. Mas o ex-presidente norte-americano certamente não era refém da fé e pode-se dizer que a rigor ele tomava o nome de Deus em vão.
Anticomunismo sem escrúpulo
A ideologia do “Destino Manifesto” age como um poderoso elemento mobilizador da energia do país para a conquista de novos territórios. Ao longo da história, ela foi um verdadeiro elixir do expansionismo e do intervencionismo norte-americano. No século XX — particularmente na sua segunda metade — essa ideia, traduzida em anticomunismo sem escrúpulo, permeou a propaganda do regime. Isso explica a visão dominante no país de que o restante do planeta — sobretudo o chamado Terceiro Mundo — é cultura e economicamente subdesenvolvido.
Essa propaganda ganhou, evidentemente, novos contornos desde a queda do Muro de Berlim. Mas sua essência permanece a mesma e constitui, basicamente, na prática de levar a “democracia” aos países que recusam a cartilha de Washington e em “ensinar” os “segredos” da boa gestão econômica. O aparato de propaganda norte-americano, por exemplo, contra todas as evidências diz que a presença militar do Pentágono no Oriente Médio tem uma missão modernizadora e libertária. Mesmo quando os fatos insistem em desmenti-lo, nas entrelinhas essa ideia é largamente difundida.
Mar de petróleo
Essa premissa, com seus tiques primitivos, na verdade sempre se soube na contramão do progresso humano. A base da sua aplicação é a geografia do petróleo, dominada por um cartel que merece um capítulo à parte na história do capitalismo. E dentro deste capítulo cabe um importante item sobre o Oriente Médio. No livro A Ditadura dos Cartéis o pesquisador Kurt Rudolf Mirow descreve como o Iraque — o detonar da fase mais recente da guerra na região — entrou na divisão mundial do cartel.
Segundo Mirow, uma das mais ricas reservas, conhecida desde 1929, ficou escondida por um bom tempo para que não surgisse um dilúvio de petróleo que afetaria a rentabilidade das corporações. São elas que, aliadas a outras — sobretudo as produtoras de armamentos —, constituem o cerne dos lobbies da política expansionista da Casa Branca. Para esse condomínio, o controle das principais artérias da geopolítica mundial é um ponto nevrálgico, uma tarefa vital ao domínio dos depósitos de matérias-primas estratégicas, como petróleo e gás natural.
O Iraque flutua sobre um mar de petróleo de 112 bilhões de barris comprovados ao longo de um cinturão de campos petrolíferos que correm paralelos à fronteira iraniana. E um verdadeiro maná ainda está invisível: existem projetos para a exploração de várias jazidas com um potencial de produção gigantesco. Esse pote de ouro negro desperta o interesse, além do das empresas anglo-americanas, de empresas francesas, italianas e espanholas. Mas não é só isso: o país é o único da região com múltiplas vias para as exportações, uma das quais — através da Turquia — evita o vulnerável Estreito de Ormuz, que pode ser fechado com facilidade, por onde passa um quinto do petróleo consumido no mundo.
Tratados e pactos
Hoje, os países que se contrapõem a essa ofensiva do “realismo militar” do Pentágono ainda são frágeis internacionalmente. E a consciência anti-imperialista das massas é algo que, embora veloz e ampla, ainda está se formando. Ela parece mais viçosa nos países do Oriente Médio. Uma das explicações para esse fenômeno talvez seja o histórico de lutas dos povos árabes contra as invasões ocidentais do século XX.
O Oriente Médio sempre despertou o interesse dos impérios por ser uma rica fonte de matéria-prima e estar no entroncamento de três continentes. Já no pós-Primeira Guerra Mundial, os trustes norte-americanos se empenharam em conseguir ali concessões petroleiras, apesar da resoluta oposição da Inglaterra e da França — países que controlavam a região. Em 1940, as petroleiras inglesas detinham 72% de todas as reservas de petróleo exploradas, enquanto as empresas norte-americanas 9,8%.
No pós-Segunda Guerra Mundial, a região passou a ser um dos principais pontos de prioridade da política exterior de Washington. Por estar nas proximidades da Rússia e da China, o Oriente Médio também sempre mereceu atenção dos Estados Unidos quanto à influência de ideias que poderiam se traduzir em ações concretas de anti-imperialismo. Logo após a Segunda Guerra Mundial, o regime de Washington iniciou uma série de “tratados” e “pactos” envolvendo Inglaterra, França e alguns países da região — com o intuito de jogá-los uns contra os outros.
Círculo vicioso
No centro da estratégia estava o Estado de Israel, que desde a sua criação agiu como força de choque da política imperialista no Oriente Médio. Segundo dados do Instituto Internacional de Estocolmo de Estudos para a Paz, nos cinco anos transcorridos depois da guerra de outubro de 1973 entre Israel e seus vizinhos árabes os países pró-Estados Unidos do Oriente Médio receberam 70% de todas as armas norte-americanas exportadas para os países do chamado Terceiro Mundo.
Em 1979, o Irã fez a revolução que derrocou o regime dos Estados Unidos no país e desencadeou mais uma onda de ações anti-imperialistas na região. No mesmo ano, o conflito no Afeganistão, ocupado por forças militares soviéticas, marcou mais uma etapa da presença norte-americana no Oriente Médio — que armou os fundamentalistas para combater os invasores. Mais tarde, esses grupos angariaram para si o resultado de toda uma reserva de ódio, medo e desesperança para levar a efeito o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. E rezaram por uma reação violenta dos Estados Unidos, que terminaria mobilizando outros em torno de sua causa.
E assim o mundo entrou num círculo vicioso — um efeito gerando outro e mergulhando os povos na hedionda “guerra infinita” iniciada pelo ex-presidente Bush. Os terroristas fundamentalistas compartilham de um ódio que é sentido em todo o Oriente Médio pela presença norte-americana, pelo apoio dos Estados Unidos às atrocidades cometidas por Israel contra o povo palestino e pela devastação de muitas sociedades com a promoção da chamada “primavera árabe”.