A política externa que queremos
Em uma recente palestra a um grupo de pesquisadores da Universidade de Columbia em São Paulo, o ex-ministro Celso Amorim, símbolo da chamada Política Externa Ativa e Altiva, mencionou como a breve experiência da política externa Independente de San Tiago Dantas foi marcante para inspirar a sua geração a pensar, formular e praticar suas iniciativas posteriores.
Além disso, para Amorim, algumas das ações conduzidas durante o governo Itamar Franco, como a criação da ALCSA (Área de Livre Comércio da América do Sul), depois também ganharam profundidade e outra dimensão em sua segunda oportunidade como chanceler, durante o governo Lula.
Tendo em conta essas observações, podemos perceber que a política externa de um país, como a vida, não é feita de um caminho linear, mas carrega influências anteriores e acúmulos de experiências que podem se concretizar em um futuro, desde que os símbolos e iniciativas marcantes não sejam apagados.
Nesse sentido, momentos como o de agora não podem ser reduzidos ao lamento pelo que acabou ou somente pelas críticas ao retrocesso. Assim como a luta dos que resistem não deve ser resumida a seminários, reuniões, listas e manifestos que circulam entre os mesmos públicos.
A riqueza dessa hora de entressafra deve se dar pela deglutição das razões que levaram à derrocada do sistema anterior e da valorização do que deveria continuar. Deve ser o momento de uma síntese geracional para uma nova política externa: independente, altiva, ativa, latino-Americana e do Sul.
Mesmo sem o domínio político, essa geração Ativa e Altiva de internacionalistas, participantes e herdeiros da política externa de Amorim, deve se posicionar principalmente redefinindo e propondo uma alternativa ao mundo de Trump, Temer e Le Pen, com princípios claros, com contrapartes identificadas (nas sociedades civis e políticas de outros países), para ações práticas que possam ser rapidamente aplicadas.
Para a construção desta plataforma não é desejável, nem preciso, apoio oficial de nenhum governo, e muito menos de instituições do norte. Essa agenda deve ser construída a partir de relações já desenvolvidas e desejadas, e ligadas a problemas latino-americanos e dos povos oprimidos do Sul e não mais a escolas, pensamentos e referências de países tidos como desenvolvidos.
Deve falar da importância da biotecnologia e da defesa de povos originários, mais do que infraestrutura ou segurança. Deve priorizar a economia solidária, as pequenas, médias empresas e governos locais mais do que os grandes acordos comerciais ou estímulos multimilionários aos “campeões nacionais”.
Deve ter uma agenda para as mulheres, para a segurança social, para a saúde, para temas transnacionais Transgêneros – como a exploração sexual e o tráfico internacional de pessoas. Deve se preocupar mais com o estudo sério da biodiversidade do que com a reprodução de modos falidos de desenvolvimento.
É importante mencionar que as ações mais inovadoras da Política Externa Ativa e Altiva foram afins à uma visão e às propostas de uma análise feminista das relações internacionais: a preocupação com a segurança alimentar e com o fim da miséria; a cooperação técnica horizontal Sul-Sul como instrumento de articulação; e a priorização política tomada a partir de nossas raízes socioculturais africanas e latino-americanas. Foi Independente, não-violenta e mais humana. Essas foram a riqueza e a herança que devemos carregar.
Para organizar essa agenda, a nova geração de Ativas e Altivas deve se reunir autonomamente. Iniciativas já ventiladas, como a criação de um Conselho da Política Externa Brasileira (CONPEB), que reúna representantes da sociedade civil e acadêmicos brasileiros da área de relações internacionais, deve se mobilizar para ter autonomia financeira e personalidade jurídica, conselho representativo, e que assim possa organizar eventos e publicações, desenhar e propor políticas.
Enquanto o Itamaraty e a oficialidade nunca decide se nos permite o reconhecimento de um CONPEB, comemoremos essa falta de legitimidade cartorial e façamos o Conselho independente. E que sigamos com essa autonomia, seja qual for a linha do governo do momento.
Esse grupo também deve organizar uma estratégia de disputa de ideias, projetos e de espaço político dentro dos partidos (velhos e novos), e que se possível apresente candidatxs que defendam essas ideias já considerando as bem-vindas próximas eleições.
Temos pouco tempo para construirmos representantxs que possam se dedicar a projetos que estão parados há muito tempo no Congresso Nacional e Ministérios: a criação do Banco do Sul; a eleição direta para o Parlasul; a livre circulação de pessoas e uma institucionalização profunda do Mercosul com orçamentos apropriados; além de uma agenda que abra espaço para a participação cidadã na política pública das relações internacionais do Brasil. Temos que romper com o monopólio do Itamaraty nas nossas relações exteriores.
Independentemente da chance eleitoral, essas pautas devem deixar de ser acessórias nas agendas de nossos representantes e partidos políticos. Há interesse, relevância, público e possibilidade de mobilização rápida em cada grande cidade brasileira para temas internacionais com impacto direto na vida das pessoas.
Essa possível plataforma comum da Política Externa Brasileira deveria ser expressa por um grupo de candidatxs que se dediquem exclusivamente a ela, e que inovem também em suas campanhas eleitorais: gratuitas, com pleno diálogo com a sociedade civil internacionalista brasileira e com uma profusão de ideias e debates tanto nos espaços políticos tradicionais quanto nas redes sociais.
Além das grandes lutas trabalhista, da previdência, pelos nossos recursos naturais e energéticos, por serviços públicos de qualidade, pela justiça e pelas eleições diretas, ainda há uma importante plataforma a ser definida e defendida politicamente: a Política Externa Brasileira Independente, Altiva, Ativa, do e para o Sul.
Há uma geração internacionalista Ativa e Altiva desamparada e desorganizada, carente por saídas que sintetizem nossas melhores experiências anteriores e que siga com ações inovadoras. Um outro mundo sempre é possível, desde que haja sensibilidade, consciência, vontade e organização.
*Fernando Santomauro é membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI, doutor em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e autor do livro “A atuação política da Agência de Informação dos Estados Unidos no Brasil (1953-1964)”, Prêmio Capes de Tese 2016, nas áreas de Ciência Política e Relações Internacionais.
Publicado em Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI)