Giannotti, Quartim e Schwartz, que amavam tanto O Capital
Debate sobre O Capital celebra atualidade e força da obra de Marx
Entre os anos 1956 e 1964, um grupo de jovens professores universitários se reuniu para estudar a obra de Karl Marx, estes encontros ficaram conhecidos à época como Seminários Marx. Agora, mais de 50 anos depois que o grupo se diluiu, três destes já não tão jovens professores, se reuniram novamente, durante a 3º edição do Salão do Livro Político, em São Paulo, para celebrar a obra do filósofo alemão e debater a atualidade do Capital.
Com relato de Mariana Serafini (Vermelho)
A noite desta terça-feira (6), foi de celebração à obra de Marx durante o Salão do Livro Político, realizado na PUC-SP, na capital paulista. O painel “Nós que amávamos tanto O Capital” reuniu os professores José Arthur Giannotti, João Quartim de Moraes e Roberto Schwarz, com a mediação de Lidiane Rodrigues Soares, para debater a atualidade da obra máxima do filósofo alemão, O Capital.
O filósofo e professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Quartim, destacou a permanência do marxismo como movimento de ideias que se mantém atual graças ao caráter duplo da obra: que por um lado se propõe a emancipar a humanidade, por outro pretende ser fundamento na lógica objetiva da evolução social.
“A força do marxismo não é apenas este movimento de emancipação adotado desde a origem por uma fração importante do movimento operário internacional, mas também o fato de remeter a um projeto político de emancipação universal da humanidade”, afirmou.
Arthur Giannotti, por sua vez, fez questão de relembrar o período em que o grupo se reuniu pela primeira vez e esclareceu os motivos que levaram estes jovens intelectuais a buscar respostas para o Brasil no marxismo. “Quando nós começamos a estudar Marx era basicamente para estudar um autor que nos desse ferramentas para entender a atualidade. Era um grupo basicamente universitário tentando entender a modernidade brasileira [no final da década de 50]”.
Passados mais de 50 anos da dispersão do grupo, Giannotti ressaltou que a leitura de O Capital é crítica. O intelectual acredita que sempre que houve supressão forçada da propriedade privada, característica que fundamentaria o capitalismo, criaram-se problemas sérios.
Um Brasil mais complexo que a teoria europeia
Já o crítico literário e professor de teoria literária Roberto Schwartz, falou sobre a configuração e a importância dos Seminários Marx para a consolidação do marxismo na academia brasileira, bem como as rupturas que ele implicou. Segundo ele, à época, os professores da USP reunidos no seminário entenderam que a realidade brasileira não cabia no marxismo, mas obrigava a teoria a se reformular, rompendo sua crosta dogmática.
Em 1958, jovens professores esquerdistas de filosofia, sociologia, economia, história e antropologia se reuniram, mostrando o caráter transdisciplinar d’O Capital. Giannotti, Fernando Novais, Rute e Fernando Henrique Cardoso, Paul Singer e Octavio Ianni liam 20 páginas de cada vez e enfrentavam as dificuldades do texto. Os seminários eram marcados também por confraternizações, rodízio de locais que davam um caráter extraoficial, e um sucesso que expandiu até alunos e até secundaristas, que realizavam seminários similares.
Marx nao era ensinado na faculdade, mas era assunto de bares e corredores. Considerado subversivo, seja pela perseguição macarthista ou pela oficialidade soviética, os livros não eram editados aqui. Era um autor que não facilitava as coisas, com livros grandes escritos em alemão. “Assim, o marxismo enfrentava terreno virgem, desprovido de bibliografia de apoio, além de ser subversivo e perigoso. Ausência de tradição do pensamento dialético hegeliano tornava o marxismo algo de outro planeta para os pesquisadores brasileiros.”
Por outro lado, o clima foi muito favorável, pois ninguém precisava se envergonhar que não saber citá-lo. “E podíamos fabricar um Marx sob medida”, diz Schwarz. Segundo ele, o mesmo acontecerá com Brecht no teatro. O total desconhecimento do teatro épico dos anos 1920 fazia os dramaturgos brasileiros juntar pedaços e interpretar a própria maneira os conceitos.
“Pouco depois, a leitura de Marx se tornou uma coqueluche mundial e nosso grupinho se tornou pioneiro. Isso favoreceu nossos estudiosos, que deixaram de estar a reboque do debate, como ocorria na maioria das universidades da periferia do capital, acumulando independência e elaboração própria”. Giannotti pode contestar Althusser e Fernando Henrique se contrapunha com propriedade às teorias de Nikos Poulantzas.
“As relações de opressão entre centro e periferia existem também na vida científica, que é menos neutra do que parece”, diz o crítico literário. E momentos como esse mostram a tentativa de escapar da situação subalterna.
A radicalização do desenvolvimentismo encontrou parâmetros nos temas do marxismo, ao contrário das teorias mais ou menos conservadoras do equilíbrio social, que dominavam a universidade. Com a Revolução Cubana, explica ele, o escopo marxista vai se impondo em todo o continente como aspiração; assim como o ascenso do terceiro-mundismo e do antiimperialismo encontram no marxismo uma base que torna irrevelantes as demais teorias sociais.
Para Schwarz, a contribuição científica dos seminários aparecia desde a competição das teses entre o marxismo e as demais teorias, demonstrando a força da análise dialética. Também na valorização de temáticas novas, como assuntos ligados ao Brasil: escravo, trabalhador, negro, imigrante, caiçara, caipira, religião popular, cangaço.
Neste confronto com os temas do Brasil, o marxismo é levado a se reformular, pois o que havia politicamente, eram termos doutrinários aprovados pelo Partido e que deviam ser assimilados pela militância para o debate ideológico. “Não estamos submetidos à autoridade do partido, nem à necessidade de fazer propaganda, mas de fazer ciência, e não encaixar os fenômenos nos esquemas pré-fixados de verdade indiscutível”.
A contribuição das teses se deu em demonstrar que a conceituação marxista era insuficiente para a verificação da experiência brasileira, defende ele. “Os melhores trabalhos do seminário recusaram o dilema entre rejeitar os fatos que não concordam com a teoria ou a teoria que não concorda com os fatos. Conservaram tanto a teoria como os fatos, e transformaram a discordância em problemas significativos capazes de serem solucionados através da reflexão sobre o país e sua inserção no mundo, a exemplo de Maria Sílvia Carvalho Franco, Fernando Henrique Cardoso e Fernando Novais”.
Descobriu-se que havia homens livres no Brasil, mas que eles não eram livres como aqueles da Europa, a que se referia Marx. Havia classe operária, mas fora do modelo canônico; havia nação, mas que não se completava. “As realidades de Marx existiam no Brasil, mas se moviam de forma diferente, sendo que esse descompasso é parte da lógica mundial e geração de constante conflito político”.
“Estava-se se formando entre nós um marxismo que participava do debate científico aberto, disputando posição de ponta, além de esclarecer as questões com relevância política imediata”, declara Schwarz.
Marx acreditava que o capitalismo inglês era o espelho do futuro do capitalismo atrasado alemão. “Essa lei da evolução do capitalismo enfrentava a necessidade de reformulação em países com passado escravista e colonial como o nosso”, concluiu o pesquisador.
O nome do painel é inspirado na obra homônima lançada recentemente pela editora Boitempo. Trata-se de uma coletânea de artigos dos três participantes da mesa, além do cientista político Emir Sader, cujo objetivo é retomar os estudos de meio século e refletir sobre a atualidade do tema.
O Salão do Livro Político começou na segunda-feira (5) e segue até a quinta-feira (8) com palestras, debates e exposições sobre diversos temas, entre eles o marxismo, a Revolução Russa, feminismo e a questão dos refugiados e dos povos indígenas. A programação completa pode ser conferida no site oficial do evento.
[vídeo disponibilizado posteriormente:]