Intelectual entre os bolcheviques, bolchevique entre os intelectuais
Quando o governo soviético se transferiu de Petrogrado para Moscou (1918) Lunatcharski, tal como outros membros do governo, passou a viver no Kremlin. Porém, dado que as visitas tinham que obter um salvo-conduto cada vez que lá entravam, e como não eram poucas as pessoas que desejavam encontrar-se com o comissário do povo (ministro), ele preferiu mudar-se para a cidade. Concederam-lhe um apartamento na Travessa Denejni, onde ele se instalou com sua esposa, atriz do Teatro Mali. A apartamento tinha sete assoalhadas. Na sala de jantar, junto à lareira, havia um piano por cujas teclas correram dedos de mestres muito famosos. A sala de estar comunicava com a sala de jantar. Nela podiam reunir-se quarenta pessoas.
O gabinete de trabalho de Lunatcharski era o aposento contíguo ao hall de entrada: um compartimento pequeno onde mal cabia uma mesa sempre atulhada de livros, papeladas e classificadores. No pequeno sofá e nas cadeiras também se apinhavam livros e manuscritos. A estante, encostada logo à entrada, aprumava principalmente livros de consultas. Lunatcharski não era bibliófago, mas estava longe de ser bibliófilo. O tratamento que dava aos seus livros denotava o esmero de um colecionador (emprestava-os de bom grado a quem precisasse deles, e não se zangava muito se eles ficassem no “rol do esquecimento”); contudo, dava muito bom trato aos livros alheios e nunca esquecia de os devolver à procedência.
Apresentar o círculo dos seus interesses literários é um pouco difícil. As pessoas devotadas às ciências humanísticas manifestam, em geral, certa indiferença para com as ciências naturais, a matemática e a física. Mas Anatoli Lunatcharski frequentara o curso de Ciências Naturais de Zurique e mantinha-se sempre a par das últimas novidades dessa área do saber, nunca deixando de folhear as revistas nacionais e estrangeiras. Os especialistas vinham frequentes vezes ter com ele para lhe colocarem questões estritamente profissionais e nunca ficavam sem resposta imediata, pois Anatoli Vassilevitch usava o código matemático com os matemáticos e a linguagem geológica com os geólogos.
A primeira vez que estive com ele foi em Paris, no ano de 1913. Nesse momento tive a oportunidade de ouvir um episódio curioso ocorrido no exílio. Por volta do Ano Novo, um grupo de bolcheviques exilados reuniu-se em Genebra, na casa de Lênin. A alma de cada um dos presentes estava assoladas pelas saudades da Rússia. Para lhes dar um pouco de alento, Lênin disse: “Quando Anatoli Vassilevitch vier, vamos ficar bem dispotos.” Lunatcharski chegou logo a seguir Vladimir Ilitch disse-lhe: Estamos na época dos contos de Natal. Anatoli Vassilevitch, apresente-nos o relatório do demônio.” Lunatcharski brilhou alegre e graciosamente durante duas horas, contando como o “gênio do mal” é encarado pelos diferentes povos. Foi uma exposição divertida do Diabo na poesia mundial.
Lunatcharski com Lênin no 1º de maio de 1920 em Moscou (Agência TASS)
Quando alguém escreve sobre a biografia de Lunatcharski quase sempre se refere ao discurso que ele proferiu diante de cientistas ilustres de muitos países na sessão comemorativa do bicentenário da fundação da Academia de Ciências, em 1925. Iniciou sua dissertação sobre o significado da ciência em língua russa, depois foi passando sucessivamente para o alemão, o francês, o inglês até acabar em latim.
Quando Anatoli Vassilevitch se preparava para discursar em conferências, raramente delineava para si a minuta pormenorizada do tema que deveria expor, mas mesmo que a delineasse não ficava preso a ela, dissertando de improviso e adaptando-se às reações do público. Uma vez vi um homem extasiado aproximar-se dele e exclamar:” Meu Deus, como é que você arranja tempo para preparar dissertações tão brilhantes? Que erudição pura”! Lunatcharski sorriu e disse: “Vou contar-lhe uma anedota. Uma vez, um catedrático de medicina foi visitar um doente, em dez minutos estabeleceu o diagnóstico e prescreveu o tratamento. A esposa do doente, uma mulher um tanto forreta, não se coibiu de dizer: ‘Senhor professor, você leva dez rublos por dez minutos!’ E ele replicou: ‘Eu levo-lhe dez rublos por toda a ciência da minha vida, acha que é caro?’ Da mesma forma que ele, eu preparei-me durante toda a vida para o discurso de ontem, de hoje e de amanhã. Está vendo quanto tempo demorei para preparar-me?”
“Intelectual entre os bolcheviques, bolcheviques entre os intelectuais.” Nesse trocadilho de palavras com que Lunatcharski costumava gracejar residia precisamente o segredo da sua grande popularidade entre professores, escritores, pintores e demais artistas. Ele sabia escolher a chave que lhe permitia chegar à alma de cada um, infundir confiança nos seus interlocutores e dispô-los a uma conversa franca e amigável. E nunca se mostrava indiferente para com o destino de um talento jovem. Mal o informaram sobre o talento do extraordinário jovem Dimitri Chostakovitch, ele ordenou logo que diligenciassem no sentido de serem conceidas “todas as facilidades para o desabrochar da mestria” do jovem compositor.
Não há palavras para exprimir as impressões que me ficaram das noites na casa dos Lunatcharski de 1925 a 1933. Recordo as festas de família, as tradicionais noites de Ano Vovo, os convívios literários e musicais, a leitura de novas peças, os saraus de poesia etc. Aí eu encontrava-me com os melhores escritores, dramaturgos, cantores e pintores da nossa praça. Apareciam também velhos camaradas de desterro de Lunatcharski e estadistas. O anfitrião encantava-nos com a sua capacidade de pôr em comunhão pessoas que não tinham nenhuns interesses comuns.
A vida de trabalho nesta casa era também rica de conteúdo. Lunatcharski dormia muito pouco, cinco horas na maior parte das vezes. Deitava-se tarde, mentalmente abatido pela canseira do dia, e levantava-se cedo. Ainda toda a casa dormia. Já Anatoli Vassilevitch sorvia o conteúdo de uma série de páginas, transcrevendo algumas palavras-chave que lhe ajudariam a reavivar na memória o que havia lido. Quando não tinha que ir de manhã para o Comissariado da Educação, a estenógrafa vinha à sua casa. Ele ditava com desenvoltura, ora sentando no sofá, ora caminhando de cá para lá no pequeno gabinete, remexendo distraidamente em alguns livros ou agitando um lápis entre os dedos. Conseguia alhear-se por completo das conversas acaloradas, música de piano ou risadas que de vez em quando lhe chegavam dos compartimentos contíguos. Em tais casos ele costumava dizer que lhe dava imenso prazer sentir sinais de vida em sua casa.
Sempre que trabalhava com estenógrafa ou a escriba, por princípio não o importunavam. Contudo, aconteciam imprevistos, quer fosse uma chamada telefônica ou uma pessoa que o arrebatava por momentos a pretexto de algo muito urgente. Anatoli Vassilevitch interrompia o ditado, mas depois retomava o fio da meada com bastante naturalidade. Nele conjugavam-se de uma forma admirável a aparência de distraído e a contemplação interior. Era precisamente essa faculdade mental que lhe permitia não ligar importância a coisas insignificantes.
Acerca da distração extravagante de Lunatcharski não faltam anedotas, sendo um fruto da imaginação e outras decalques do real. Esquecia-se sempre alguma coisa: galochas, guarda-chuva, bastão… Uma vez, quando ele estava já bastante doente, a casa encheu-se de visitantes. Pelos vistos, a comunicação desgastou Anatoli Vassilevitch. Ele estava sentado no sofá a um canto da sala de estar e pareceu-me que dormia. Aproximei-me dele.
— Prezado amigo — disse Anatoli Vassilevitch —, chame o carro, são horas de ir para casa.
— Você já está em casa! —, disse lhe, sem esconder minha admiração.
E ele respondeu calmamente:
— Tanto melhor. Então vou deitar-me, devagarinho.
Uma outra vez, ele partiu de trem para Genebra, para participar de uma conferência sobre o desarmamento. Nós acompanhámo-lo à estação. Na noite seguinte, altas horas da noite, soou o toque estridente do telefone. Ainda estremunhado, pensei que Lunatcharski estava telefonando de Berlim.
— Os inteligentes já estão em Berlim — disse ele —, mas eu estou em Minsk.
Contou-me que se esquecera do passaporte diplomático e que se viu obrigado a apear-se em Minsk. Telefonava àquela hora da noite porque aproveitara o ensejo para fazer um discurso diante de um auditório de operários.
As redações de jornais e revistas, as instituições científicas e os diretores dos clubes de trabalhadores assediavam Lunatcharski pelo telefone e pessoalmente, surprendiam-no no comissariado, em casa e na rua. Ele não sabia recusar, de resto isso não era do feitio dele. Houve até casos em que administradores deveras insistentes o apanhavam na rua e o levavam para fazer uma intervenção pública. É difícil de imaginar as sobrecargas físicas e mentais que ele suportava diariamente.
Dentre as inúmeras “paixões” de Lunatcharski — ciência, literatura, artes plásticas, música — talvez a que mais o empolgava seria a paixão pelo teatro. Qualquer acontecimento da vida teatral — fosse a estreia de um espetáculo, o aniversário de um artista, uma nova peça, o nascimento de um novo estúdio teatral ou um papel bem interpretado — era imediatamente “abençoado” por ele. Assim foram surgindo recensões em jornais, ensaios, intervenções públicas em discussões artísticas, discursos.
Anatoli Vassilevitch era capaz de pôr de lado um livro sem o acabr de ler, mas nunca abandonou uma sala de espetáculos antes da peça terminar, por mais desprezível que ela lhe parecesse. Nisso, diga-se de passagem, manifestava-se a imensa bondade de Lunatcharski. Mas acerca da sua brandura e bondade existe uma ideia um pouco incorreta.
“A voz de Anatoli Vassilevitch nunca conheceu o tom autoritário. Ele passava bem sem esse artifício, já que a autoridade dele advinha não tanto do posto que ocupava, quanto do fascínio da sua cultura, da paixão ardente pela arte, do respeito profundo pelas pessoas de inteligência e talento. Mas está redondamente enganado todo aquele que, por causa do seu modo de ser consciencioso, delicado e excelso, se esquece que o traço melhor vincado da sua mentalidade era o espírito de luta” — escreveu o escritor Tchukovski, que conhecia Lunatcharski bem de perto. Ele cedia facilmente e de bom grado só em questões triviais, de somenos importância.
Lunatcharski enlevava-se com a maestria de Mikhail Tchekhov, ator principal do Teatro MKAT de Moscou. Mas quando Tchekhov começou a tentar refazer o teatro à sua imagem e semelhança, transformando-o em “teatro de mundividência mística”, Lunatcharski, que o apoiava entusiasticamente como ator, foi peremptório neste ponto, alegando que tal teatro seria a vergonha da dramaturgia nacional. Então Tchekhov disse a Lunatcharski que se sentia a mais e que estava disposto a emigrar. Lunatcharski autorizou-o a enveredar por essa via.
Poderia apresentar dezenas de exemplos da atitude frontal e severa de Lunatcharski para com as atividades dos escritores, atores e pintores. Tudo o que ele via no nosso país e no ocidente avaliava com sagacidade, do ponto de vista artístico, determinando sempre o valor social da obra em causa.
Interessou-se pelo repertório dos teatros nacionais desde os primeiros dias da Revolução. Ele tentava corrigir os ímpetos da dramaturgia. Lembro-me de como ele, numa conversa com um jovem dramaturgo, contou uma parábola chinesa muito ilustrativa. Era um mandarim que, no intuito de agradar ao seu senhor, dependurou flores de papel nos ramos nus das árvores e asseverava que chegara a primavera.
— O que mais devemos temer nos nossos teatros são essas primaveras oficiais de papel — dizia ele.
— Eu incito-vos a fazerem peças autenticamente revolucionárias e não sessões panfletárias e com vestígios de sectarismo.
No repertório variado dos anos 20, as peças de Lunatcharski ocupavam uma posição de relevo. Elas eram encenadas nos palcos da capital e da periferia e nos teatros progressistas da Europa Ocidental. Verdade seja dita, havia (e continua a haver) quem considerasse que a dramaturgia de Lunatcharski era a faceta mais pobre da sua versátil atividade de crítico, teatrólogo, historiador e teórico da literatura, filósofo e estadista. Muitos críticos dogmáticos, os autodenominados autênticos marxistas no período de formação do teatro soviético, atacaram o Lunatcharski-dramaturgo, acusando-o de ser ideologicamente incoerente, para não dizer contrarrevolucioário.
Em novembro de 1920 ocorreu um debate público sobre a dramaturgia de Lunatcharski na Casa da Imprensa. Foi um acontecimento muito impressionante e que fez correr muita tinta. “Anatoli esteve durante quatro horas sentado no estrado ouvindo acusações fulminantes endereçadas às suas peças. Os oradores foram aquecendo os ânimos e no fim da sessão tudo indicava que Anatoli Vassilevitch quase que merecia ser preso e condenado à ‘pena capital’, sem direito de recurso. Manteve-se impávido e sereno, ouvindo tudo isso, e já se afigurava qualquer réplica da parte dele. Era já quase maia noite quando ele tomou a palavra. Falou durante duas horas e meia. Ninguém saiu da sala e ouviram-no atentamente. Na sua maravilhosa intervenção, Anatoli Vassilevitch defendeu as suas peças, fulminou e destroçou os seus adversários, um de cada vez e todos em uma assentada. Por volta das três da madrugada, a sala em peso, incluindo os oponentes mais ferozes, homenageou tão fartamente o triunfo de Lunatcharski que apoteose como essa nunca a Casa da Imprensa conhecera”, escreveu o famoso jornalista Koltsov.
Anatoli Vassilevitch era dramaturgo perspicaz e experiente, e quando recitava os seus dramas mostrava ter veia de artista. Uma vez, quando recitava num teatro, um ator disse-lhe: “Você é um ator nato! Venha trabalhar para a nossa trupe, será bem compensado.” Ele desatou a rir. “Obrigado, mas nas funções de comissário do povo também não estou deslocado.”
Anatoli Vassilevitch tinha muitos conhecidos e amigos no estrangeiro, entre eles contaca-se Jean Jaurès, Paul Lafargue, Laura Marx, Romain Rolland, Henri Barbusse e Bernard Shaw. Muitos homens da cultura que vinham ao nosso país faziam os possíveis para estar com ele. No verão de 1931, Mikhail Koltsov convidou-me a passar pelo seu gabinete. Aí encontrei-me com um jovem elegante. Tinha nas suas mãos um álbum e um lápis. Era Adolf Hofmeister, famoso caricaturista tcheco.
— Desenhe-nos qualquer coisa — pedi eu — para a revista Ogoniok.
Foi nesse momento que soubemos qual o sonho de Hofmeister. Que sentido fazia vir a Moscou e não desenhar e entrevistar Lunatcharski?
Nessa noite Anatoli Vassilevitch estava em forma. Respondia prontamente às perguntas do hóspede e fazia prognósticos arrojados sobre o futuro da União Soviética. Verificou-se que ele conhecia razoavelmente bem a literatura e a arte tcheca. Após a entrevista, Hofmeister disse-me: “Eu não mostrei o desenho a Anatoli Vassilevitch. Que acha? Ele ficará zangado por eu o ter retratado com uma barriga enorme?” “Esteja descansado, ele não se zanga – asseverei eu. – Trata-se de uma charge amistosa; além disso, o seu retrato servirá de pretexto para ele ir descansar para Karlovy Vary.”
O ano de 1932 foi difícil para Anatoli Vassilevitch. A sua saúde, outrora abalada pelo cativeiro e desterro czarista, pelo exílio e trabalho descomedido, começou a piorar. À hipertonia aguda e estenocardia veio juntar-se o glaucoma. Esteve a tratar-se em Genebra e depois em Frankfurt em Main, vivendo numa estação balnear nos arredores da cidade. Tornava-se cada vez mais difícil trabalhar e ler, mas ele ditava e a esposa escrevia, ela lia-lhe livros, jornais e revistas nas diferentes línguas europeias. Mas as suas capacidades mentais mantinham-se apuradas como outrora. Estávamos no ano do primeiro centenário da morte de Goethe. Ainda na Primavera ele fizera em Moscou um brilhante discurso intitulado “Goethe e a sua época”. Foi um dos melhores discurso que alguma vez proferira. E quando soube que em Frankfurt ia ocorrer um grandioso espetáculo ao ar livre dedicado à epopeia histórica de Goethe, fugiu aos médicos e à família e foi assistir ao espetáculo. Depois ditou um grande artigo intitulado “Goetz na praça”…
Chegou a Primavera de 1933. A saúde de Lunatcharski continuava a piorar. Começou a sofrer ataques cardíacos frequentes, teve que ficar preso à cama, mas isso aborrecia-o sobremaneira, pois continuava cheio de energias. Os médicos moscovitas aconselharam-no a ir tratar-se na França.
Recordo um serão de maio, um dos nossos últimos encontros. Anatoli Vassilevitch estava semideitado num cadeirão, abraçara-o um estado de espírito elegíaco e pensativo. Ele nunca falou do medo da morte e provavelmente não sentia esse medo. Nessa noite estava cheio de planos e intenções. Disse que tinha que terminar imprescindivelmente uns estudos sobre Gogol, Fausto, sobre a sátira e o riso, e acabar de escrever um livro sobre Bacon. Pôs-se a recordar e a enumerar o que gostaria de ver publicado de entre o que havia escrito…
A 26 de dezembro de 1933, chegou à Rússia uma mensagem emitida da cidade francesa de Menton notificando o seu falecimento.
Do livro de A. Deutsch “A Voz da Memória”, trascrito da revista “Sputinik” (maio/87)