Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    Comunicação

    A carteira do meu pai

    Muito antes de pensar em sua própria mortemeu pai dizia que gostaria de descansar pertodos seus pais. Sentia muita falta delesdesde que tinham partido.Falou isso o bastante para que minha mãe se lembrasse,e eu me lembrasse. Mas quando o ar deixou seus pulmões e todo sinal de vidase extinguiu, ele se encontrava numa cidade a […]

    Muito antes de pensar em sua própria morte
    meu pai dizia que gostaria de descansar perto
    dos seus pais. Sentia muita falta deles
    desde que tinham partido.
    Falou isso o bastante para que minha mãe se lembrasse,
    e eu me lembrasse. Mas quando o ar
    deixou seus pulmões e todo sinal de vida
    se extinguiu, ele se encontrava numa cidade
    a 512 milhas de onde mais queria estar.

     

    Mas meu pai, ele era incansável
    até na morte. Até na morte
    ele tinha uma última viagem a fazer.
    A vida inteira gostara de perambular
    e agora ele tinha mais um lugar para ir.

     

    O agente funerário disse que cuidaria de tudo,
    que não nos preocupássemos. Uma luz mirrada
    entrava pela janela e caía no chão poeirento
    onde aguardávamos naquela tarde,
    até que o homem surgiu do quarto dos fundos
    tirando as luvas de borracha.
    Trazia consigo o cheiro de formol.
    Ele era um homem forte, disse o agente.
    E começou a nos contar por que
    gostava de viver naquela pequena cidade.
    O homem que acabara de abrir as veias do meu pai.
    Quanto vai custar?, perguntei.

     

    Ele sacou o caderno e a caneta e começou
    a escrever. Primeiro, as taxas de preparação.
    Depois calculou o transporte
    dos restos mortais, a 22 centavos por milha.
    Mas esta era uma viagem de ida e volta para o agente,
    não esqueçam. E mais, digamos, seis refeições
    e duas noites num motel. Fez algumas
    outras contas. Acrescentou uma sobretaxa
    de 210 dólares pelo seu tempo e trabalho,
    e era isso.

     

    Pensou que iríamos barganhar.
    Havia uma mancha vermelha em
    cada uma de suas bochechas quando ergueu
    o rosto de seu caderno. A mesma luz mirrada
    caía no mesmo ponto mirrado
    do chão poeirento. Minha mãe assentiu
    como se compreendesse. Mas ela
    não tinha compreendido um apalavra.
    Nada daquilo fazia o menor sentido para ela,
    começando pelo momento em que saíra de casa
    com meu pai. Sabia apenas que
    o que quer que estivesse acontecendo
    iria custar dinheiro.
    Ela enfiou a mão em sua bolsa e retirou
    a carteira do meu pai. Nós três,
    naquela tarde, dentro daquele quartinho.
    Nossas respirações indo e vindo.

     

    Fitamos a carteira por um minuto.
    Ninguém dizia nada.
    A vida tinha abandonado aquela carteira.
    Era velha, suja e rasgada.
    Mas era a carteira do meu pai. Então minha mãe a abriu
    e olhou lá dentro. E sacou dali
    um punhado de dinheiro que pagaria
    por aquela última, e a mais espantosa viagem.

     

    ESTA VIDA: poemas escolhidos

    Seleção e tradução de Cide Piquet

    Edição bilíngue – São Paulo, 2017 (1a. Edição)

    Editora 34

     

    (Foto: Sienna Perro)

     

    MY DAD’S WALLET

    by Raymond Carver

    Long before he thought of his own death,
    my dad said he wanted to lie close
    to his parents. He missed them so
    after they went away.
    He said this enough that my mother remembered,
    and I remembered. But when the breath
    left his lungs and all signs of life
    had faded, he found himself in a town
    512 miles away from where he wanted most to be.
    My dad, though. He was restless
    even in death. Even in death
    he had this one last trip to take.
    All his life he liked to wander,
    and now he had one more place to get to.
    The undertaker said he’d arrange it,
    not to worry. Some poor light
    from the window fell on the dusty floor
    where we waited that afternoon
    until the man came out of the back room
    and peeled off his rubber gloves.
    He carried the smell of formaldehyde with him.
    He was a big man, the undertaker said.

    Then began to tell us why
    he liked living in this small town.
    This man who’d just opened up my dad’s veins.
    How much is it going to cost? I said.
    He took out his pad and pen and began
    to write. First, the preparation charges.
    Then he figured the transportation
    of the remains at 22 cents a mile.
    But this was a round-trip for the undertaker,
    don’t forget. Plus, say, six meals
    and two nights in a motel. He figured
    some more. Add a surcharge of
    $210 for his time and trouble,
    and there you have it.
    He thought we might argue.
    There was a spot of color on
    each of his cheeks as he looked up
    from his figures. The same poor light
    fell in the same poor place on
    the dusty floor. My mother nodded
    as if she understood. But she
    hadn’t understood a word of it.
    None of it made any sense to her,
    beginning with the time she left home
    with my dad. She only knew
    that whatever was happening
    was going to take money.
    She reached into her purse and bought up
    my dad’s wallet. The three of us
    in that little room that afternoon.
    Our breath coming and going.
    We stared at the wallet for a minute.
    Nobody said anything.
    All the life had gone out of the wallet.
    It was old and rent and soiled.
    But it was my dad’s wallet. And she opened
    it and looked inside. Drew out
    a handful of money that would go
    toward this last, most astounding, trip.

     

    from Where Water Comes Together with Other Water (Random House).

     

     

     

    Tags
    Notícias Relacionadas