Che Guevara: o anti-imperialismo em atos
CONFIRA O ESPECIAL: CHE GUEVARA, 1928-1967
Uma entranhada presença…
Logo no início de 1997, em prefácio à reedição francesa de seu O pensamento de Che Guevara , Michel Lowy perguntou se ainda era possível “compreender as razões de Ernesto Che Guevara”. Relembrou, à guisa de resposta, o comentário de François Maspero no prefácio escrito em 1995 para a reedição do Diário do Che na Bolívia: num momento em que as noções de fim da História e de pensamento único (entenda-se: neoliberal) se impõem por toda a parte, é preciso, para compreender Guevara, voltar “àquele tempo em que se vivia numa História em marcha e num confronto permanente de pensamentos antagônicos”.
Compreende-se a preocupação dos dois autores, empenhados em salvar o significado da épica revolucionária à qual está associado o nome de Guevara, em restabelecer o contexto histórico de sua trajetória. Não puderam, nem eles, nem nenhum outro, prever que os 30 anos da morte de Guevara seriam muito mais amplamente lembrados na América Latina, claro, mas também na Europa Ocidental e até na matriz imperial estadunidense, do que os 20 e os 10. Sem dúvida, o próprio movimento editorial suscitado pela decenal efeméride, anunciava em alguma medida a “ressurreição de Guevara” (a analogia teológica está na capa de um semanário brasileiro de grande circulação). Pelo menos quatro biografias, três das quais traduzidas no Brasil, foram publicadas em várias línguas e por grandes editoras no primeiro semestre de 1997. Jornais e revistas de grande tiragem, a expressão mesma da ordem burguesa e imperialista que Guevara abominava, festejaram, reforçando-as amplamente com copiosas resenhas bibliográficas e reportagens históricas, estas copiosas iniciativas biográficas. Seria, entretanto, super-estimação da capacidade dos formadores de opinião e outros comunicólogos operando em escala industrial supor que criaram sozinhos, por orquestração mediática, este notável fenômeno político-cultural. Nenhuma das iniciativas que tomaram teria tido repercussão notável se não correspondesse a uma corrente profunda da opinião crítica de nosso tempo.
Cabeça de um dos bonecos colecionáveis de Che Guevara
É da lógica do capitalismo enxertar valor de troca em tudo que tem valor de uso. Mas o interesse mercantil é a conseqüência parasitária e não a origem efetiva do imenso valor de uso associado à imagem do guerrilheiro heróico. A explicação é dialética: a ordem neoliberal, com seu culto descarado do dinheiro pelo dinheiro, da esperteza financeira, do conformismo ético, da sabujice dos deslumbrados com o poder imperial norte-americano, torna sedutores, para fins de consumo cultural, personagens que simbolizam o contrário de tudo isso, que viveram e morreram por um ideal generoso. Por isso mesmo seria descabido ver neste culto a Guevara apenas o aspecto comercial: ele não anula seu oposto, isto é, a utilidade cultural e ética de sua imagem, portadora da negação radical da lógica do Capital. Exatamente porque esta negação é inseparável dos demais aspectos de sua imagem, o culto que está suscitando não deixa de ser surpreendente num momento histórico em que, embora já bastante desgastado,o neoliberalismo continua a ser a ideologia dominante.
Originalidade da revolução cubana
A experiência das revoluções do século XX , a começar, em Outubro 1917, da primeira revolução socialista triunfante na História da Humanidade e prosseguindo com a revolução social da antiqüíssima e imensa sociedade chinesa, mostrou que em parte alguma a classe operária chegou ao poder sem o amplo e decisivo apoio dos camponeses. Variaram (a) o peso relativo destas duas grandes classes sociais e (b) as formas de organização política e militar do combate revolucionário. No entanto, em ambas, vale dizer, nas duas maiores revoluções sociais do século, a direção coube ao partido comunista, mais exatamente, na Rússia, à ala bolchevique do Partido operário social-democrata russo, depois Partido comunista. A fórmula do triunfo foi, num caso como no outro, terem logrado unir no programa e na ação a classe operária e o imenso campesinato (russo e chinês).
Na América Latina, entretanto, a primeira revolução socialista triunfante foi conduzida e dirigida por uma coluna guerrilheira operando em zonas montanhosas e em áreas rurais. Em que medida esta diferença político-estratégica corresponde à diferente participação das bases sociais das duas revoluções? A Revolução de Outubro 1917 foi operária e camponesa. A revolução chinesa também o foi, mas com uma participação muito mais longa, constante e decisiva do campesinato, comparativamente à revolução russa. (Basta considerar que dez anos depois da Revolução de Outubro operários e camponeses russos enfrentaram-se numa surda, larvada e mortífera guerra civil). Na revolução cubana a classe operária participou, ao lado da pequena burguesia patriótica e democrática, dos estudantes e outras camadas populares urbanas, da luta contra a ditadura de Fulgêncio Batista, preposto do Império estadunidense e amigo de mafiosos e de outros celerados do crime organizado. Não teve, porém, nenhum papel autônomo nem iniciativa própria em tal combate. Nem ela nem seu partido de vanguarda (os sarcásticos diriam, de retaguarda). A base social do combate revolucionário foi tão principalmente camponesa e o papel próprio da classe operária tão diluído que a classificação do processo cubano vitorioso em 1959 como operário-camponês se afigura de todo imprópria. Mais adequado é considerar que a revolução cubana se inscreveu por sua dinâmica política e estratégica, no vasto processo das revoluções agrárias antiimperialistas de libertação nacional. Como as demais (vale dizer, como todas as lutas revolucionárias nos três continentes submetidos à agressão colonial e à dominação imperialista), foi dirigida por um comando guerrilheiro cuja composição e cujo programa correspondiam ao de uma frente de libertação nacional. Diferentemente das demais, entretanto, assumiu desde logo, não apenas em palavras, mas na dinâmica objetiva que instaurou, uma orientação conseqüentemente socialista.
A ambigüidade estratégica
Em 1960, ano seguinte ao triunfo da coluna guerilheira comandada por Fidel Castro, Guevara, em La guerra de guerrillas, expôs as conclusões gerais da experiência revolucionária que tivera seu epicentro na Sierra Maestra, mostrando como os guerrilheiros compensaram sua inferioridade inicial no terreno militar pela mobilidade e capacidade operacional tática, que lhes permitiu manter constantemente a iniciativa, numa perspectiva estratégica em que sobreviveram e se afirmaram militarmente para poder se desenvolver politicamente, tanto pela incorporação progressiva dos camponeses em suas fileiras quanto pela ampliação gradual do processo insurrecional de um canto a outro do país.
O texto se abre com o enunciado das três grandes contribuições da Revolução Cubana para “a mecânica dos movimentos revolucionários na América” (1) as forças populares podem ganhar uma guerra contra o exército; (2) nem sempre se deve esperar que sejam dadas todas as condições para a revolução; o foco insurrecional pode criá-las; (3) na América subdesenvolvida o terreno da luta armada deve ser fundamentalmente o campo.
A primeira constatação reitera o princípio geral de toda revolução popular. Revoltar-se contra uma ordem iníqua é não apenas justo, mas também possível. A segunda enfatiza a importância da organização e da vontade, vale dizer, das chamadas condições subjetivas da Revolução, dirigindo aos partidos de esquerda latino-americanos, principalmente os comunistas, crítica análoga à que Lênin consagrara ao reformismo evolucionista social-democrata, vale dizer, à concepção segundo a qual a revolução constituía processo essencialmente objetivo, cabendo aos fatores sujeitos deixar-se empurrar pela corrente da História. Mais ainda do que a segunda, é a terceira, porém que, interessa ao tema do presente estudo. Guevara enfatiza-lhe o caráter “estratégico”, criticando “os que com critérios dogmáticos pretendem centrar a luta de massas nos movimentos das cidades, esquecendo totalmente a imensa participação da gente do campo na vida de todos os países subdesenvolvidos da América”. Uma unilateralidade não justifica outra. Qualquer que tivesse sido, com efeito, o grau de subestimação da “gente do campo” por parte dos partidos comunistas e outras organizações da esquerda latino-americana, o fato mesmo de se colocarem como expressões políticas do movimento operário implicavam em concentrar o esforço político nas zonas industriais e urbanas. Se para não esquecer o campesinato é imperativo centrar no campo o combate revolucionário, são os operários que ficarão esquecidos.
Sem dúvida, qualquer estratégia revolucionária, para ser séria, deve articular e hierarquizar seus objetivos, determinar onde e como vai concentrar seu esforço. Por isso, a questão colocada por Guevara (onde e como travar a luta principal, isto é, aquela cujo desenvolvimento determinará o de todas as outras lutas) mais do que pertinente, é indispensável. Também incontestável é a necessidade da mobilização dos trabalhadores da terra para levar adiante a transformação revolucionária da ordem estabelecida em países onde a população rural é importante e a terra monopolizada por latifundiários. Em abstrato, sem dúvida, a importância social do campesinato está na razão inversa e a da classe operária, bem como das outras camadas de assalariados urbanos na razão direta do grau de industrialização e de urbanização de cada país. Em países como a Argentina, o Uruguai, o Brasil e o Chile, que então concentravam e seguem concentrando a maior parte dos recursos materiais e humanos da América do Sul , a idéia de que a questão do poder iria se decidir no campo não se apoiava nas condições sociais objetivas. Em todos eles,o centro de gravidade da vida social se encontra nas cidades e não no campo. Mesmo na Bolívia, país onde é tão forte o peso relativo dos habitantes do campo, da floresta e da montanha, a revolução nacional-democrática de 1952 foi obra principalmente do povo de La Paz e dos mineiros de estanho.
No entanto, como sempre demonstraram os protagonistas das grandes revoluções da História, aos fatores ditos objetivos se superpõem aqueles ditos subjetivos: consciência, estado de espírito, mobilização e experiência de ação coletiva das massas, organização, determinação política e preparação teórica das vanguardas, bem como a correlação de forças entre as classes sociais em cada situação política concreta. Temos sob os olhos, no Brasil de hoje, a prova mais eloqüente de que uma classe social cuja função econômica é secundária, os trabalhadores rurais sem terra, podem travar um combate de vanguarda pela democracia, entendida, claro não em seu sentido mesquinhamente liberal, mas como avanço no rumo da igualdade de direitos .
Por definição, todo revolucionário reconhece a necessidade de ativar os fatores subjetivos das transformações sociais. As diferenças estratégicas costumam surgir na avaliação da dinâmica dos movimentos de massa, de seu modo de articulação com a vanguarda revolucionária e conseqüentemente, das formas de luta principais em cada situação concreta. Talvez consciente de que a preocupação de não esquecer o campesinato não constituía fundamentação suficiente para erigir o campo em terreno fundamental da luta armada, Guevara acrescenta um argumento por ele mesmo anunciado como de natureza estratégica. O campo seria fundamental para a luta armada porque, contrariamente às zonas urbanas, onde “os movimentos operários devem tornar-se clandestinos, sem armas, na ilegalidade e enfrentando enormes perigos”, “a situação não é tão difícil em campo aberto , porque os habitantes são apoiados pela guerrilha armada , em lugares que as forças repressivas não podem chegar”. Em sua aparente singeleza, estas considerações, resumem a trágica ambigüidade estratégica do guevarismo, isto é, da concepção e prática da luta armada inspiradas nos escritos e na ação de Che Guevara.
De um lado, com efeito, remete ao “esquecimento do campesinato”, principal, ou, no mínimo, indispensável base social da revolução. De outro, à menor dificuldade da luta no campo. Não há, em princípio, contradição entre as duas teses. A mobilização camponesa (fator político) pode se combinar às supostamente menores dificuldades táticas das zonas rurais (fator militar) de maneira a favorecer uma sinergia estratégica : pequenos grupos armados solidamente apoiados pela população enfrentariam com sucesso um adversário dotado de um poder de fogo incomparavelmente superior. As lutas vitoriosas de libertação nacional dos povos colonizados confirmam esta possibilidade. Como porém são ainda mais numerosos os exemplos em que, em vez de sinergia, ocorreu um desencontro entre a coluna guerrilheira e os trabalhadores pobres do campo e/ou da floresta, da montanha,etc., permanece a grande interrogação deixada pelos escritos de Guevara sobre a guerra revolucionária e em particular pelas conclusões (2) e (3) que tirou da experiência revolucionária cubana. Afinal, qual o ensinamento decisivo que dela podemos extrair? Admitindo que o foco guerrilheiro rural, entendido como destacamento móvel estratégico da luta revolucionária , pode criar (algumas das) condições para a revolução, quais seriam, em cada situação histórica concreta, as condições suscetíveis de serem induzidas pela vanguarda armada atuando no campo?
Ainda no mesmo contexto, isto é, nas páginas iniciais de La guerra de guerrillas, lemos que “a luta guerrilheira é uma luta de massas, é uma luta do povo”, do qual “a guerrilha é a vanguarda combatente”. O guerrilheiro deve contar “com todo o apoio da população do lugar (onde atua). Esta é “uma qualidade sine qua non”. Poderíamos multiplicar citações como esta, retomadas num texto de 1963, Guerra de guerrillas: un metodo. No plano dos princípios ou, como diz Guevara, das leis da guerra , a exigência de apoio da população é, portanto, um corolário da caracterização da guerrilha como luta de massas, como guerra do povo. Mas tão logo consideramos este princípio ou lei do ponto de vista de sua aplicação, reencontramos a ambigüidade : o apoio da população deve se manifestar desde o início da ação do foco guerrilheiro ou pode ser criado pela própria ação?
Karl Marx costumava responder a questões como esta com uma irônica expressão francesa: Ça dépend. Não havendo, com efeito, fatalidade na história, sempre é possível imaginar que um esforço quase sobre-humano em uma causa aparentemente perdida, possa salvá-la. Porém tudo investir na obstinada tentativa de transformar uma derrota quase inevitável em uma vitória quase impossível implica em continuar a empenhar as forças da revolução num combate em que é quase certa a probabilidade de que sejam aniquiladas. Não se trata aqui de um escrúpulo moral: Guevara não hesitou em sacrificar a própria vida. Trata-se de pôr em relevo a responsabilidade histórica de um núcleo dirigente revolucionário com respeito ao modo de empregar as forças da revolução. O general Giap, que à frente do heróico povo vietnamita libertou seu país, infringindo aos exércitos do Império norte-americano a maior derrota que jamais sofreram, observou a propósito da “menor dificuldade” do combate guerrilheiro em zonas rurais, que a floresta é neutra. Tanto quanto a cidade, de resto.
A antiqüíssima anedota chinesa sobre um mercador de armas que oferecia à venda um escudo impenetrável e uma lança capaz de varar qualquer escudo resume com singela profundidade a dialética sem síntese da ofensiva e da defensiva. Os métodos de guerra contra-revolucionária desenvolvidos pelo imperialismo, em particular pelas tropas especializadas de rangers apoiadas pela aviação, mostraram-se terrivelmente eficazes cada vez que enfrentaram um grupo de guerrilha mais ou menos isolado . Operações de cerco e aniquilamento puderam ser efetuadas no seio das mais densas florestas. Mas os que daí inferiram, no início dos anos 70, que já tinha passado o tempo da guerrilha rural, foram desmentidos, no final da década, pela vitória da guerrilha sandinista. Mais recentemente, o festejado sociólogo Jorge Castañeda, que havia publicado em 1973, em inglês e em espanhol, Utopia desarmada , livro cujo título constitui por si só um manifesto daquela esquerda da qual a direita gosta, teve de escrever às pressas para a edição brasileira, lançada no ano seguinte, um curioso Prefácio em que procura demonstrar que longe de desmentir sua apologia do desarmamento da esquerda, a guerrilha de Chiapas, ao contrário, veio confirmá-la. Embora compatriotas de Castañeda, os guerrilheiros zapatistas cometeram a indelicadeza de desencadear seu movimento armado justamente quando ia ser publicada no Brasil a Utopia desarmada!
O último combate
Em muito forte medida, a trágica precipitação da tentativa de tornar a Cordilheira dos Andes uma Sierra Maestra da América do Sul está anunciada na célebre Mensagem à Tri-continental (divulgada em março de 1967 , quando já se haviam desencadeado as operações guerrilheiras em Ñancahuazú), na qual sintetizou sua concepção da estratégia revolucionária em escala mundial na célebre palavra de ordem : “Criar dois , três ….muitos Vietnãs” . Neste pungente apelo à solidariedade de combate com o povo heróico do Vietnã, após evocar a escalada aérea estadunidense, inicialmente encoberta com os mais cínicos pretextos, até se converter numa apocalíptica agressão, “com o propósito de destruir todo vestígio de civilização na zona norte do país”, declara com a solenidade exigida pelo assunto: “Há uma penosa realidade: Vietnã, essa nação que representa as aspirações, as esperanças de vitória de todo um mundo preterido, está tragicamente solitário…A solidariedade do mundo progressista para como povo do Vietnã assemelha-se à amarga ironia que significava para os gladiadores do circo romano o estímulo da plebe. Não se trata de desejar êxitos ao agredido, mas de partilhar sua sorte, de acompanhá-lo à vitória ou à morte. Quando analisamos a solidão vietnamita nos assalta a angústia deste momento ilógico da humanidade”. Seis meses depois, mostrou, pelo sacrifício da própria vida que, como de costume, estava falando para valer em “vitória ou morte”.
Não viveu portanto o suficiente para testemunhar o desfecho da gloriosa guerra de libertação nacional do povo vietnamita. Vale lembrar, para tirar os devidos ensinamentos, que entre a “ofensiva do Têt” de 1968 e a ofensiva final da FNL do Vietnã do Sul transcorreram quatro anos. Nesses quatro anos muitos combatentes morreram, outros foram feridos e as calamidades da guerra, multiplicadas ao infinito pelos métodos genocidas do imperialismo norte-americano, impuseram terríveis sacrifícios ao heróico povo vietnamita. Por que esperar quatro anos e não três ou dois, para lançar a nova e definitiva ofensiva que pôs em debandada as tropas coloniais estadunidenses e seus asseclas locais? Simplesmente porque os dirigentes revolucionários do povo vietnamita fizeram uma análise completa da situação política e militar e escolheram, para desencadear a ofensiva, o momento em que, por maiores que fossem os sacrifícios e as perdas humanas, eles seriam compensados amplamente pelo fortalecimento das forças revolucionárias, pela derrota do inimigo, pelo avizinhar-se do fim da guerra e, portanto, por uma efetiva preservação de vidas humanas. Evidentemente, nenhuma vitória é garantida de antemão, mas é conquistada na luta, com os riscos que lhe são inerentes. O problema decisivo é sempre o de saber se um determinado método de luta, em uma dada situação, leva à organização ou à desorganização das forças revolucionárias, leva ao seu fortalecimento ou ao seu enfraquecimento. Por isso, a consigna dos dirigentes cubanos de que o dever do revolucionário é fazer a revolução só contribui para a causa da emancipação dos povos e dos trabalhadores se levar e conta que o dever de uma direção revolucionária é o de medir, com o máximo senso de responsabilidade, quais são as probabilidades efetivas de vitória, de modo a fazer todo o possível para que os mortos não caiam em vão.
Renato Sandri, um dos principais especialistas em América Latina do ex-P.C. Italiano, caracterizou em 1987 (a propósito dos 20 anos da morte de Guevara), a empreitada de Ñancahuazú como “tentativa desesperada de vencer o cerco, de incendiar a pradaria latino-americana, de contribuir do coração do continente para a romper as linhas de força dominantes em escala mundial. Eu posso fazer isto que a ti é negado pela tua responsabilidade na chefia de Cuba…: nesta passagem da carta de adeus a Fidel Castro está a chave da última empreitada de Guevara, concebida e conduzida contra tudo e contra todos, contra a própria teorização da sua experiência que ele havia agudamente recolhido em seus escritos sobre a guerra de guerrilha. Então, nos escritos dos últimos meses, não menos que no seu agir, emerge o sentimento trágico da vida, o desafio à morte… , em uma palavra, a natureza hispânica que o havia nutrido. Mas, para além da literatura, a sua resposta ao horizonte que parecia sem aberturas racionais foi em termos de voluntarismo extremo; concretizou na sua última ação a necessidade de absoluto que havia percorrido todo o seu pensamento (tinha dito na Argélia em 1964: hoje buscamos desesperadamente o melhor caminho. Enganamo-nos. Tornamos a nos enganar… Vamos pondo o nosso pequeno grão de areia a serviço da grande aspiração da humanidade: o advento definitivo do comunismo, a sociedade sem classes, a sociedade perfeita…)” .
* Versão alterada de um artigo publicado na revista Crítica Marxista em 1997.
** João Quartim de Moraes é professor titular aposentado da Unicamp. Presidente da Fundação Maurício Grabois de São Paulo. Desenvolveu pesquisas e publicou artigos e livros nas áreas de história da filosofia antiga, teoria política, materialismo, marxismo, instituições brasileiras etc.