Em junho de 2017, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgaram o estudo “Atlas da Violência“, [1] analisando dados sobre homicídios no Brasil entre 2005 e 2015. A conclusão é de que homens jovens são as principais vítimas (92%). 1) Em Alagoas e Sergipe a taxa de homicídios de homens jovens atingiu, respectivamente, 233 e 230,4 mortes por 100 mil homens jovens em 2015. 2) A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras; informa o Atlas que os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados. 3) São 155 assassinatos por dia, o que equivale a seis mortes por hora em cada estado, e as características das mortes se repetiriam: ligadas ao tráfico de drogas e tendo como vítimas jovens negros pobres da periferia executados com armas de fogo.

O Ipea chegou a simular uma comparação entre os dados da violência no Brasil e no mundo: todos os atentados terroristas do mundo nos cinco primeiros meses de 2017 não superam a quantidade de homicídios registrada no país em três semanas de 2015. Por óbvio, ressalve-se o cotejamento.

A perversão cordial

Evidente: foi-se – definitivamente – pelos ares a infinda e tormentosa discussão sobre “o homem cordial” brasileiro. Publicado logo depois de “Casa Grande & Senzala” (1933) de Gilberto Freyre, em “Raízes do Brasil” (1936) Sérgio Buarque de Holanda também perquiria o “quem somos nós”, objeto inovador da célebre pesquisa do sociólogo pernambucano.

O eminente historiador Holanda, em verdade, foi alterando sua ideia de “homem cordial” (capítulo 4º da 1ª edição), após a poderosa carta crítica de Cassiano Ricardo (1948). O conceito em Holanda inspirava-se, modificadamente, no de seu amigo Ribeiro Couto.

Ricardo então comentara: “…Sérgio Buarque de Holanda reexamina seu conceito de ‘homem cordial’ e agora sob novos aspectos, que não figuravam na primeira edição”. E emenda: “Já isto me honra muito, demonstrando, pelo menos que a minha discrepância não era, de todo, gratuita”. [2] Mas, para Ricardo, a “bondade específica natural” do brasileiro, aí contido “nosso individualismo”, jamais poderia ser confundida com “polidez” (op. cit, p.376).

Secundando a famosa frase de Holanda – “somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra” -, qual mesmo a alteração conceitual que processa Holanda? Emanado das reiterações contrastantes (o rural e o urbano, o semeador e o ladrilhador, o trabalho e a aventura etc.), a tipologia (evidentemente weberiana) de Holanda serpenteia onde se sublinhava a cordialidade expressando uma nítida separação entre o público e o privado. Para ele, o que incide de maneira altamente negativa: “Armado desta máscara (a cordialidade) o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social”. A modernização brasileira seria, por extensão, iníqua, como se anti-histórica (versus Alemanha, Japão, França), inobstante avanços.

Em verdade, a ideia da cordialidade buarquiana assentava-se em relações familiares originárias, atravessando até a esfera do público, achatando, pelo privado, o interesse público que deveria ser prioritário. Nada de impessoalidade “necessária”, no público, por suposto. Como se disse, somente em 1956 (3ª edição), Holanda retifica sua ideia, onde o “coração” – o cordial – brasileiro poderia gerar sentimentos bons ou maus, indistintamente. 

Sabe-se que Sérgio Buarque de Holanda interrompe a polêmica com Cassiano Ricardo com uma fugidia metáfora: “[já foi] gasto muita cera com esse defunto”. 

“Defunto” inventado, replicante, fantasmático – digo eu.

Capitalismo selvagem

Ainda em 1998 os economistas J. M. Cardoso de Mello e F. Novais escreveram um importantíssimo ensaio desvelando o processo acidentado das conquistas da modernização brasileira, em contraposição às implicações econômico-sociais do desastre de governos neoliberais de FHC.

Em “Capitalismo tardio e sociabilidade perversa” (Unesp-FACAMP,1998) – crítica arrasadora da destruição neoliberal de FHC et caterva -, Cardoso de Melo e Novais mais que alertavam, com inteiriça razão, acerca da súbita regressão que ameaçava uma desestruturação nacional. Severa regressão societária, pois, desde o advento da globalização, entronizou-se por aqui a competição selvagem, transformando a violência num recurso cotidiano de sobrevivência; manifestada também no trânsito infernal nas nossas grandes cidades poluídas, servas do automóvel, atravessando as relações de trabalho, deformando a vida familiar, chegando “até ao assassinato”. Assim – continuam os autores a captar um ambiente catastrófico -, “uma sociedade que não dá valor à vida não pode pretender que os excluídos, do emprego, da escola, da vida familiar, considerem a vida um valor” (Cap. “A que ponto chegamos? ”).

No ano seguinte (1999), e dando sequência às indagações dos economistas citados, em “O capitalismo selvagem. Um estudo sobre a desigualdade no Brasil” (Unicamp/IE), a economista Wilnês Henrique assim concluía sua fundamentada pesquisa de doutorado, em verdade um retorno ao longo processo de configuração e os resultados então examinados do capitalismo tardio brasileiro:

“De outro lado, vimos que as relações entre dependência e desigualdade ficaram expostas a olho nu nestes últimos 20 anos. Na época do capital financeiro e da ciência e tecnologia como base ampliada de valorização do capital, a dependência reaparece como dependência financeira e tecnológica. Porque não dispúnhamos e nem criamos um mínimo de capacidade autônoma de inovação e investimento, fomos obrigados a fazer o ‘ajuste exportador’, que culminou no neoliberalismo”. E prossegue a economista: “Ele terminou impondo restrições drásticas ao crescimento e imobilizou a política econômica e social. À regressão econômica correspondeu a regressão social, que se manifesta no desemprego estrutural, na cristalização dos baixos salários, no emprego de terceira categoria, na multiplicação de serviçais, na flexibilização e extinção de direitos”.

Ora, essas duas análises, relativamente pioneiras (e certeiras), ajudam-nos a refletir sobre uma sentença: os 13 anos que vivenciamos de assunção do novo ciclo político no Brasil (governos Lula e Dilma) apenas esboçaram reverter outros dez anos d’“A construção interrompida”, usando aqui os termos visionários do livro de Celso Furtado (Paz e Terra,1992). No segundo governo Dilma, houve, sabidamente, erros enormes, e avanços apenas em parte.

Desse modo, às conquistas que agora se evaporam, urgiam novas exigências duma truncada expansão capitalista que, numa síntese (precária) poderia ser assim formulada: ampliaram-se os direitos das camadas populares, enquanto se reproduz um padrão capitalista nos marcos da hegemonia financeira neoliberal (global).

Ademais, acumularam-se graves sequelas e velhas doenças da referida selvageria capitalista, tornando as batalhas pelo novo desenvolvimento uma verdadeira guerra nacional de classes e frações de classe, incluídos o inadiável e duro enfrentamento contra a burguesia bancária/financeira e os interesses do capital internacional. Este último, seguramente por detrás do golpe.

A catarse republicana cruza agora 128 anos do nosso mosaico nacional – curta vivência. A beleza (ingênua) das palavras de Cassiano Ricardo, fiel a uma outra época, foi trespassada pela consolidação histórica de uma sociedade burguesa cruel, eis a inescapável condição brasileira hodierna. Aqui, as famosas “leis impiedosas” que Marx aludia, uma vez vigentes as forças produtivas do capitalismo, persistem a engrenar o país na condição de periferia sistêmica.

Necessariamente aqui, lembro que o “Mestre de Apipucos”, em suas antinomias de “Nordeste” (1937), referindo-se a esta região como sendo “talvez a mais patológica” do país, aduziu que:

“Também a civilização grega foi uma civilização mórbida… escravocrata… pagã… e… estranhamente criadora de valores, pelo menos políticos, intelectuais e estéticos”. [3]

Às portas da neocolonização neoliberal, cabe aos comunistas, revolucionários e patriotas a plena consciência dos terríveis espectros que rondam a Nação. Cabe-nos lutar sem tréguas pelo desenvolvimento, pela nossa independência e pelo socialismo.

 

(Foto: null)

 

NOTAS

[1]Em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/uma-semana-de-mortes-o-retrato-da-violencia-no-brasil.ghtml

[2] Ver: “Variações sobre o homem cordial”, C. Ricardo, em: “Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. Edição comemorativa 70 anos, orgs. Berzaquen de Araújo, R., Schwarz, L., Companhia das Letras, 2006, p. 366.

[3] Ver: “Nordeste”, Gilberto Freyre, citado em: “Chuvas de verão. Antagonismos em equilíbrio em Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre”, Ricardo Berzaquen Araújo, em: “Um enigma chamado Brasil. 29 intérpretes e um país”; Botelho, A., Schwarcz (orgs.), Companhia das Letras, 2009, p. 220.