Unir as classes subalternas, reconstruir uma democracia progressiva, restituir o poder ao povo. Pela primeira vez, depois de anos, surge na cena italiana uma força política popular autônoma, com clara conotação de classe, que se propõe – além das circunstâncias atuais marcadas pela época eleitoral – a construção de uma frente social anticapitalista que possa opor-se às tendências regressivas colocadas em ação pelo poder das classes dominantes.

O objetivo de “unir o que foi dividido” é mais do que nunca urgente e necessário. Nas últimas décadas assistiu-se à fragmentação das classes populares em dois planos: por um lado, nos locais de produção material, as terceirizações descontroladas e a compartimentação dos setores produtivos debilitaram a consciência e o sentido de interesse comum dos trabalhadores; ao mesmo tempo, no plano político, a dispersão do enorme aparato organizativo sindical de classe e de partido, exaustivamente construído ao longo de todo o século XX, privou as classes subalternas dos instrumentos fundamentais sem os quais é impensável um reequilíbrio nas relações de força entre as classes sociais.

Serviram-se de tais processos a seu benefício próprio as classes dominantes, as quais, enquanto erguiam a bandeira, quase impassíveis, de que a luta de classe não seria nada mais do que um legado “ideológico” do século XX, conduziam uma investida por toda parte que lhes permitiu colocar em ação um grande processo de redistribuição da riqueza pelo alto, que fez a história voltar cerca de dois séculos para trás, seguido da regressão contextual da democracia moderna, em uma versão soft e pós-moderna de bonapartismo.

A causa da democracia, que passa pela derrocada de tais tendências, pode ser revigorada somente por meio da expansão das lutas pela emancipação das classes subalternas, como a história dos últimos dois séculos nos ensinou. Nessa ótica, a recomposição de classe é objetivo prioritário, e a experiência de Poder ao Povo vai nessa direção. O mundo da cultura, da pesquisa, da universidade e da instrução não deve ficar só olhando. (Marcio Paciotti).

O texto do Apelo está publicado abaixo:

 

O “Ocidente liberal” é a realização ou a negação da democracia? E a Itália ainda é um país democrático? E o é na mesma proporção em que foi nas décadas anteriores, ou seja, naquele sentido avançado e progressista que tinham em mente os partisans ao libertarem o país do ocupante nazi-fascista, e os Pais constituintes ao enfatizarem na nossa Carta fundamental a centralidade do trabalho e da participação popular, mas também da paz, do anti-imperialismo e do anticolonialismo, ou do princípio de igualdade nos planos interno e internacional?

É verdade: talvez não haja um país no qual as pessoas votem frequentemente.

No entanto, o exponencial crescimento da abstenção – sistematicamente motivada pela ideologia dominante e pelas principais forças políticas, com base no modelo anglo-saxão, em níveis que tornam ilegítimo qualquer resultado eleitoral – se configura como o sintoma da desemancipação de fato de milhões de pessoas, isto é, como uma anulação substancial do sufrágio universal tornado, na prática, inútil.

Em quem votamos, além do mais, quando vamos às urnas? Temos realmente aquela liberdade de escolha que a aparente amplitude da oferta deixa pressupor?

Destruídos os partidos políticos de massa, a escolha eleitoral não é mais uma escolha entre posições realmente alternativas, entre programas e ideias que são expressão de interesses diferentes ou contrapostos, mas uma competição entre simples variantes do governo neoliberal das coisas. Uma espécie de um eterno Show de Talentos entre reagrupamentos ou comitês que, à sombra deste ou daquele líder bonapartista pós-moderno e espetacularizado, nos reconduz à práxis da antiga Itália liberal e pré-democrática. Quando os direitos políticos condiziam com o monopólio da riqueza e os governos eram o comitê de negócios das classes dominantes.

E ainda: o que dizer dos direitos econômicos e sociais obtidos no pós-guerra, sem os quais a democracia se torna apenas um privilégio de poucos? A sua universalidade foi em grande parte desmantelada com um método e uma meticulosidade de muitas maneiras semelhantes aos de governos de centro-direita, como aqueles de centro-esquerda, de Berlusconi e Salvini, como de Prodi e D’Alema, de Monti como de Renzi. E essa universalidade hoje está reduzida a um serviço essencial mínimo que se propõe garantir a própria sobrevivência.

A formação pública, da escola fundamental à universidade, está submetida a um formato privatista que configura um sistema dual e classista. Foi imposto um modelo pedagógico que, por de trás da retórica da “excelência”, dissipa qualquer mérito e necessidade real porque –a não ser para poucos privilegiados, isto é, para as elites destinadas a ocupar os segmentos mais altos do mercado de trabalho e absorvidas pelos demais setores industriais avançados ainda presentes no país – deve na realidade preparar mão de obra a baixo custo para um sistema produtivo, que é, em grande parte, atrasado e parasitário e não necessita de cultura e inovação, pesquisa e desenvolvimento, mas é orientado a competir em desvantagem.

O direito à saúde existe hoje apenas no papel e as diferenças sociais, determinando a capacidade de acesso aos tratamentos privados, voltaram a ser diferenças que se refletem na mesma expectativa de vida dos indivíduos e das classes.

Nos sistemas previdenciários toda forma de solidariedade social foi desmantelada e – sobretudo no que se refere às gerações mais jovens, expostas a um mercado de trabalho selvagem como do século XIX no qual a contratação coletiva foi neutralizada e a precariedade se tornou a regra que garante uma exploração crescente – em breve cada pessoa se encontrará sozinha e desprotegida, com os próprios limites e carências.

Como, porém, o sistema de Welfare (Estado de Bem-Estar Social) do pós-guerra foi uma grande operação de redistribuição de riqueza e poder, que partia do pressuposto de intervenção do Estado moderno nas contradições da sociedade civil, o deserto criado em torno de nós representa antes de mais nada o sinal de uma grande reconquista antiestatal das classes proprietárias, cuja luta de classe nunca foi tão eficaz. Em poucas décadas – da derrota dos operários da Fiat em 1980 no referendo sobre escala móvel e, depois, dos acordos sobre conciliação e sobre encargos trabalhistas, até o pacote Treu e o Jobs Act – essas classes recuperaram, com seus interesses já no plano regulatório, tudo o que as classes populares tinham conseguido conquistar em cento e cinquenta anos de conflito com desvantagem. Aproveitando, enfim, da crise econômica para reduzir ao mínimo a própria consciência de direitos sociais e para reduzir o sentimento de justiça a um inócuo moralismo inoportuno.

Exatamente esse é o ponto fundamental. Mas, a quem serve a democracia, tomada no sentido plenamente moderno – aquela democracia que hoje resulta perdida na Itália como no “Ocidente liberal”? Serve aos fracos ou aos fortes? Aos pobres ou aos ricos? A quem é já reconhecido ou aos excluídos?

Como nos explicou, de uma vez por todas, Antônio Gramsci, são as classes subalternas que dela mais precisam. E a história da democracia é, nesse sentido, antes de mais nada, a história da luta dessas classes, da sua organização e da sua complicada unidade, com o objetivo de modificar relações de força milenares e conquistar a dignidade humana e o reconhecimento na coletividade política.

A crise da democracia e a sua minimização – e seu distanciamento de qualquer elemento do socialismo –,ao contrário, é então em primeiro lugar a crise da capacidade popular de se organizar in classe consciente, de lutar e de se defender. A incapacidade dos excluídos de recomeçar a lutar contra todas as discriminações, para trazer maior equilíbrio nas diferenças sociais, e por fim derrubá-las, para colocar em segurança o que foi conquistado – o salário, o tempo de vida, a beleza da participação política… – e para ir anda mais longe na construção consciente da igualdade do gênero humano.

Mas o neoliberalismo dos dias atuais – ou o programa liberal puro e livre de obstáculos com o seu corolário pós-democrático – é um destino obrigatório para esta semicolônia que é a Itália, na qual a retórica verbal “soberanista” dos movimentos populistas e das direitas mais cruéis se defronta com a realidade dos arsenais e dos exércitos da Otan e dos EUA presentes no território?

O aumento dos desequilíbrios sociais, do qual a incessante clivagem entre salários e lucros é uma representação artificial, é certamente o resultado de uma subtração de espaços de decisão, após um deslocamento dos poderes para organismos supranacionais e entidades tecnocráticas irresponsáveis, é verdade. Mas, antes ainda, é o resultado de uma catastrófica derrota social e política que – mesmo sendo um nexo não revogável com os acontecimentos da Guerra Fria e com imensas transformações no cenário global e nas relações de força entre as regiões do mundo – deriva antes de mais nada da falta de solidariedade entre as classes subalternas e do esfacelamento da sua consciência de si e da sua organização autônoma.

Se a democracia surgiu quando o que era fraco e dividido se uniu, tornando-se forte no partido e no sindicato até se fazer reconhecer e respeitar como classe dirigente nacional, a crise da democracia explode, ao contrário, quando o que tinha se unido novamente se divide e se torna fraco. Até o ponto em que hoje a luta não ocorre mais entre o que está em baixo e o que está em cima, como muito frequentemente também pensam os teóricos do “populismo”, mas se manifesta cada vez mais como uma guerra entre pobres. Uma guerra na qual os mais fracos não estão mais em condições de compreender as razões do próprio sofrimento e – coisa ainda mais evidente em relação ao fenômeno atual das migrações dos povos, hoje muitas vezes grotescamente identificado com um misterioso complô substitucionista contra a “raça branca” –, se digladiam entre si, expondo-se à influência das direitas mais perigosas tanto de velho quanto de novo tipo.

É um resultado esse, ao qual infelizmente não pode se dizer estranho o mundo da cultura, da arte, da formação, da universidade e da comunicação – ao qual nos voltamos de modo particular –, tendo por muito tempo acompanhado a viragem à direita do quadro político global mediante a elaboração de formas de consciência ultraindividualistas e de valores competitivos, e com a contestação relativista da própria ideia de progresso, igualdade e justiça social.

Não há alternativa, então, e não existem atalhos “governistas” para quem quiser redescobrir a democracia moderna e relançar – em uma fase que está longe de ser “revolucionária” ou mesmo apenas expansiva – aquele projeto inacabado que a Constituição nos transmitiu como herança: não o pesadelo patronal de uma maravilhosa democracia imediata da rede, nem o vão esforço de condicionar ou reconquistar o PD, mas um longo trabalho de organização e auto-organização, de confronto e mediação, que reconstrua uma frente popular, tendo junto e fazendo interagir partidos políticos, forças sociais, movimentos de luta, e que o faça bem além do horizonte eleitoral contingente. Um trabalho que – com humildade e modéstia – hoje semeie coerência e austeridade para amanhã colher confiança.

Renunciar, portanto, aos compromissos com desvantagem e à simples redução de danos no âmbito de um percurso de minimização da democracia, e tentar, ao contrário, alterar decididamente a rota. Mesmo com mil falhas e contradições – e recomeçando, depois de ter aprendido com aqueles erros que deram militantes de bandeja para o abstencionismo, ao Movimento 5 Estrelas e às direitas –, repensar a crise da esquerda (que é ao mesmo tempo a crise da política e da consciência moderna) e reconquistar autonomia, para novamente nos fixarmos nos interesses dos subalternos. Acumular forças para tornar a repercutir o mais rápido possível na realidade – também por meio dos instrumentos necessários de organização, debate e comunicação – e para manter aberto o horizonte de uma transformação do estado de coisas atuais.

Unir o que foi dividido, restabelecendo o tecido dilacerado da sociedade.

Restituir às classes subalternas organização e representação, e defender os povos e países oprimidos ou ameaçados de opressão

Reequilibrar as relações de força no conflito político e social

Redistribuir riqueza e igualdade no país e no mundo todo

Combater, por toda parte, o capitalismo, o colonialismo e o imperialismo

Restituir, por fim, paz e poder ao povo.

Leia o original italiano aqui. 

Primeiros assinantes

 

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Raffaele D’Agata (Universidade de Sassari);

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Roberto Fineschi (Escola de Siena para artes liberais);

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Gianni Fresu (Universidade Federal de Uberlândia, Brasil);

Fabio Frosini (Universidade de Urbino);

Guido Liguori (Universidade de Calábria);

Giuliano Marrucci (jornalista, Rai-Report);

Raul Mordenti (Universidade de Roma Tor Vergata);

Alessandro Pascale (professor provisório de História e Filosofia, Milão);

Marco Veronese Passarella (Universidade de Leeds);

Donatello Santarone (Universidade de Roma III)