Nada é dado, tudo é conquistado
As políticas adotadas pelo primeiro governo ditatorial suscitaram descontentamento. Os trabalhadores sofriam com o arrocho salarial. Os empresários, com a falta de créditos. As classes médias, protagonistas das Marchas da Família com Deus pela Liberdade, que deram respaldo social ao golpe, não se viam recompensadas. Grande parte da mídia que incentivara os militares a depor João Goulart cobria o governo de críticas, alguns chegavam a pedir o restabelecimento das liberdades democráticas.
Os universitários e secundaristas exprimiam com vigor as insatisfações. Em 1966-1967, passeatas nas grandes cidades do país conferiram musculatura a suas entidades e autoconfiança às lideranças. A repressão policial, sempre violenta, não conseguia deter o processo.
Em 1968, o país vivia sob o segundo governo ditatorial. Ele veio com promessas de “diálogo” e “humanização”, porém, estas boas palavras não mereciam crédito da opinião pública. O assassinato do jovem Edson Luis de Lima Souto, em fins de março, desencadeou novas ondas de protesto em todo o país. No Rio de Janeiro, o enterro do jovem, acompanhado por cerca de 60 mil pessoas, foi pacífico. No entanto, em outras cidades o pau quebrou feio, havendo inclusive novos assassinatos, provocados pela polícia.
As denúncias, entretanto, não esmoreciam. As demandas estudantis tornavam-se conhecidas: ensino universitário público e gratuito, mais verbas para as universidades, melhores laboratórios e bibliotecas, reformulação de currículos arcaicos, novas concepções sobre o ensino e a pesquisa, assistência social aos necessitados, abolição das obsoletas cátedras vitalícias. Havia identidade com a luta pelas liberdades democráticas e o fim da ditadura, mas o movimento ganhara consistência e amplo apoio social, por ter sido capaz de alcançar uma rara sintonia com as reivindicações mais sentidas dos estudantes comuns. Daí provinha a sua força e o prestígio de suas lideranças.
Em maio e junho de 1968, passeatas no Rio alcançaram um novo auge. O processo desembocou em 21 de junho, a sexta-feira “sangrenta”. Os dados oficiais confirmavam a violência dos confrontos: 4 mortos, 57 civis e 35 militares feridos, cerca de mil presos. Para além dos estudantes, surgira um novo protagonista: o “povo das cidades”. Do alto dos edifícios, choviam sobre os policiais cinzeiros, cadeiras, pedaços de pau, tampas de vasos sanitários, máquinas de escrever, tudo o que pudesse machucá-los. Nas ruas, lado a lado com os universitários e secundaristas, comerciários, bancários, funcionários enfrentavam, destemidos, a polícia. Do alto de um poste, Vladimir Palmeira orientava: “Vamos com calma. Agora, se eles atacarem, pau neles”. Uma frase percorria as barricadas que se formavam: “ a gente apanha, mas também dá”.
Era uma luta desigual. De um lado, as armas dos que protestavam: sacos plásticos cheios d’água, pedras, paus, gelo, garrafas, tijolos. Para fazer escorregar os cavalos, bolas de gude, cortiças. De outro lado, as armas dos que reprimiam: revólveres, baionetas, fuzis, bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo.
Noite chegada, foi possível à polícia, afinal, “limpar” uma cidade cheia de escombros e de sinais de luta. Uma triste vitória, pois o prestígio estava com os derrotados. O quadro da época foi bem expresso pelo cândido comentário de José Mauro, um menino de 5 anos: “Depois das cenas bacanas que vi, acho os bangue-bangues da TV muito chatos. Não quero ser mais mocinho. Quero ser estudante”.
As lutas culminaram na passeata chamada dos Cem Mil (a rigor, havia muito mais do que cem mil pessoas no centro do Rio naquele dia), ocorrida há exatos cinquenta anos, em 26 de junho de 1968.
Muito já se disse e se escreveu sobre esta manifestação. Caberia, contudo, destacar alguns aspectos, nem sempre adequadamente avaliados. Ela foi resultado de todo um processo de lutas que se estendeu por vários anos. Organizadas pelas bases, nas faculdades e nas universidades. E por entidades de fato representativas, comprometidas com as demandas estudantis. Além disso, autônomas, em relação ao Estado, aos governos e aos partidos políticos, o que lhes conferia um selo de inegável autenticidade. Demonstrou-se também uma notável capacidade de articulação de diferentes tendências, internas ao próprio movimento estudantil, e também no contexto da sociedade civil: artistas, intelectuais, profissionais liberais, assalariados urbanos. E souberam ainda os manifestantes organizar sua autodefesa, sempre apanhando, é verdade, mas, quando possível, “também dando”.
Legados deixados para o futuro. À procura de olhos capazes de vê-los.
Daniel Aarão Reis
Professor de História Contemporânea da UFF
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