Algumas questões sobre o “Projeto de Lei Anticrime”
Proposto pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, o “Projeto de LeiAnticrime” é uma iniciativa que suprime direitos fundamentais e garantias individuais e deve ser encarado como parte de um processo de escalada global de gestão dos indesejáveis. Escondido sob omanto da luta contra a criminalidade e a corrupção, duas ideias que vão ao encontro de anseios justos da população, o projeto não terá efetividade no cumprimento de nenhum dos dois objetivos. Resultará, na verdade, em um agravamento dramático da violência policial, do encarceramento em massa e das perseguições contra adversários políticos pelos setores dominantes, principalmente dosmovimentos sociais. Considerando o espaço exíguo deste texto, nos concentraremos na abordagem parcial de três aspectos do projeto: a) violência policial, b) criminalização dos movimentos sociais e partidos políticos, c) encarceramento em massa.
Lei aqui o relatório completo do Observatório da Democracia de Fevereiro de 2019
1. Violência policial
O Brasil é campeão mundial em letalidade policial. Só em janeiro deste ano, a polícia carioca matou 160 pessoas, segundo dados doInstituto de Segurança Pública (ISP): uma impressionante média demais de cinco mortes por dia. As vítimas preferenciais são bastante definidas: jovens negros das periferias das grandes cidades. A lógica da barbárie também vitima os policiais, cuja taxa de suicídio étrês vezes maior do que a da população brasileira em geral1. O pacote apresentado por Sérgio Moro tende a agravar essa situação em função de pelos menos dois dispositivos.
O primeiro deles é aquele que reforma o Art. 25 do Código Penal, introduzindo dois casos específicos de legítima defesa: “I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ouem risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminenteagressão a direito seu ou de outrem; e II – o agente policial ou desegurança pública que previne agressão ou risco de agressão avítima mantida refém durante a prática de crimes”. É necessárionotar que a legítima defesa já é uma excludente de ilicitude consolidada pela legislação. A introdução dos dois itens que sereferem explicitamente aos agentes policiais funciona como uma abertura de mais possibilidades para a violência policial, especialmente pela possibilidade de leitura subjetiva da “iminente agressão” ao agente ou a outrem. A ampliação proposta reforçará nos policiais a percepção da possibilidade de agir de forma preventiva, baseados em uma percepção completamente subjetiva.
Osegundo dispositivo — a inclusão do art. 23, §2º, no CódigoPenal —, é ainda mais grave. Hoje, no caso da legítima defesa, sóse pode utilizar moderadamente dos meios necessários para repelir “injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Caso haja excesso, responde-se pelas lesões corporais ou pelo homicídio do agressor. O projeto quer que o juiz possa reduzir apena pela metade ou mesmo não punir o agente (policial ou não),caso o excesso decorra de escusável medo, surpresa ou violentaemoção. Isso significa que um policial que executar uma pessoa jádominada poderia ser isentado de qualquer penalidade, desde queargumentasse que se encontrava tomado de violenta emoção ou de ummedo significativo. Trata-se de uma verdadeira licença para matardada a uma polícia educada para ser violenta, em uma sociedadetomada pelo sentimento de vingança típico dos paradigmassecuritários. Some-se ao problema as políticas de incentivo aoarmamento da população feitas pelo atual governo.
2. Perseguição aos movimentos sociais
O projeto determina a criação do tipo penal de resistência qualificada com o seguinte texto: “se da resistência resulta morte ou risco de morte ao funcionário ou a terceiro: Pena — reclusão, de seis a trinta anos, e multa”. O objetivo do artigo parece ser preparar a perseguição contra os movimentos sociais, utilizando-se especialmente dos conflitos entre forças policiais e manifestantes. Há uma enorme indeterminação na (in) definição de “risco de morte” e a pena designada é completamente desproporcional, o que é contrário aos princípios mais básicos do iluminismo penal. Uma outra disposição do projeto altera a Lei 12.850/2013, passando a definir organização criminosa como sendo “a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”. Se o projeto for aprovado como está, passam a se enquadrar como associações criminosas quaisquer grupos de mais de quatro pessoas que “se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica, como o Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos, Milícias, ou outras associações como localmente denominadas”. Na aparência, o texto parece visar as facções do crime organizado que ele próprio cita explicitamente. No entanto, o advogado criminalista Fernando Hideo explicou como a medida é supérflua no combate a essas organizações criminosas e abre brecha para a criminalização de basicamente qualquer organização do movimento civil:
Tal como outras alterações propostas nesse projeto, a modificação doconceito de organização criminosa é, na melhor das hipóteses, supérflua e, no pior cenário, uma medida extremamente autoritária.Embora mencione nominalmente organizações criminosas ligadas aotráfico de drogas e extorsão, a reforma mira essencialmente em outras formas associativas. Se fosse apenas para perseguir grupostradicionais criminosos como PCC e Comando Vermelho, seriaabsolutamente desnecessário modificar o artigo, porque é evidenteque essas organizações criminosas já estavam contempladas no conceito original (tráfico de drogas, homicídio e extorsão são crimes com pena máxima superior a 4 anos e nunca houve qualquer dúvida de que tais organizações já estavam contempladas na lei). É preciso enxergar além dos nomes explicitados na reforma ? econsagrados eternamente na história do direito penal brasileiro poressa “menção honrosa” ?, que evidenciam não apenas uma péssima técnica legislativa, mas servem de cortina de fumaça para ocultar a essência da proposta. Na verdade, a nova redação retira a necessidade de se apontar a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 anos para qualificação de uma organização criminosa, estabelecendo apenas dois requisitos paraque os grupos sejam entendidos como tal: (i) uso de “violência ouda força de intimidação do vínculo associativo” (ii) para “adquirir o controle sobre a atividade criminal ou sobre aatividade econômica”. A abertura semântica das expressões “força de intimidação do vínculo associativo”, “controle sobre a atividade criminal” e “controle sobre a atividade econômica” cria espaço para interpretações autoritárias que criminalizem as atividades não violentas de movimentos sociais, partidos políticos,grupos empresariais e sindicatos. Caso as interpretações sigam pelocaminho autoritário, bastaria a existência de um grupo estruturadode mais de 4 pessoas que, mesmo sem praticar atos violentos, se valham de uma suposta “força de intimidação do vínculo associativo” para buscar o controle de uma “atividade criminal ou econômica” para caracterizar.2
3. Encarceramento em massa e justiça penal negociada
OBrasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo. Dentreos países que ocupam os primeiros postos da lista, é o único cujonúmero de presos continua crescendo em escala vertiginosa, segundodados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias divulgados em 2017. O projeto fará com que esse processo se ampliede forma aguda em função de uma série de mecanismos, sendo o maisgrave deles a adoção da justiça penal negociada,copiadada experiência norte-americana. Nela, o promotor e o réu podemnegociar a pena de modo que o processo nem mesmo seja instaurado. Oque aparenta ser uma medida positiva, pois, em tese, garantiria eficácia e celeridade, desafogando o judiciário é, na verdade, umagrave ameaça às liberdades individuais, uma ruptura com princípios básicos do Estado democrático de direito e uma experiência que temprovocado o crescimento acelerado da população carcerária noslugares em que foi adotada.
Ajustiça penal negociada é um instrumento que vem crescendo emvárias partes do mundo e que está diretamente associado ao processode crise das garantias e de transfiguração neoliberal do processopenal. Paralelamente a esse crescimento, avultam-se pesquisasdemonstrando seu caráter nefasto. Dentre as conclusões mais comunssobre os males do instituto estão a ausência do devido processolegal; o excesso de discricionariedade do Órgão Acusador; aausência de um efetivo “acordo” entre as partes, já que oacusado sempre estará em situação de desvantagem em relação aoEstado; e a ignorância em relação às críticas elaboradas pelaCriminologia Crítica, especialmente em relação à seletividaderacial e classista do Sistema de Justiça Criminal. A experiêncianorte-americana tem sido especialmente ruinosa para as garantias individuais e persecutória contra os mais pobres. Sobre isso, Angela Davis escreveu o seguinte:
Promotores sãoos funcionários mais poderosos do sistema de justiça criminal. Suas rotinas e decisões diárias controlam a direção e o resultado doscasos criminais e tem imenso impacto e consequências mais sériasque de qualquer outro funcionário do sistema de justiça criminal.
Acaracterística mais marcante destas importantes, às vezes sobre avida e morte, decisões é que são totalmente discricionárias evirtualmente sem possibilidade de revisão. Promotores tomam amaioria dessas importantes decisões discricionárias atrás deportas fechadas e respondem apenas a outros promotores. Até mesmopromotores eleitos, que presumivelmente respondem ao eleitorado,escapam da prestação de contas, em parte porque suas maisimportantes responsabilidades — particularmente a acusação e asdecisões de pleabargaining —estão protegidas do acesso público.
Em um estudo que também trata da realidade americana, Michelle Alexander, mostra o papel da justiça negociada para a explosão da população carcerária naquele país e para a construção de uma verdadeira casta de excluídos. Essa casta inclui não apenas os mais de 2 milhões de pessoas que se encontram presas atualmente comotodos aqueles que um dia passaram pelo sistema penitenciário e que,por isso, ficaram marcados de forma indelével, conformando uma massa de excluídos dispostos a trabalhar em qualquer condição, porqualquer remuneração. Isso, somado aos interesses das grandesempresas que gerem os presídios privatizados, evidencia a economiapolítica do encarceramento em massa:
Quase ninguém vai a julgamento. Praticamente todos os casos criminais sãoresolvidos por meio da negociação de acordos — em que o réuassume a culpa em troca de alguma forma de leniência do promotor.Embora não se saiba muito a esse respeito, o promotor é o agentemais poderoso do sistema de justiça criminal (…). Depois que apolícia apreende alguém, o promotor está no controle. Poucasregras limitam o exercício da sua discricionariedade. Ele é livrepara arquivar um caso por qualquer razão. O promotor também élivre para acusar o réu por mais crimes do que é possível provar,bastando que supostamente exista uma causa provável — uma práticaconhecida por sobrecarga de acusações (…) Quando os promotoresoferecem “apenas” três anos na prisão para um crime pelo qual odetido, se fosse a julgamento, poderia pegar cinco, dez ou vinte anos— ou mesmo prisão perpétua —, apenas réus extremamentecorajosos (ou tolos) recusam a oferta3.
A justiça penal negociada é item decisivo do projeto, talvez o mais ameaçador. Como seu caráter perverso é menos evidente, urge que, no debate sobre as medidas propostas por Moro, exista um esforço especial para esclarecer suas consequências.
Notas
1 LIMA, Renato Sérgio de. Policiais brasileiros morrem 3 vezes mais por suicídio e 19 vezes mais por assassinato do que policiais dos EUA. Folha de S.Paulo, 18/09/2018. Disponível em: https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2018/09/18/policiais-brasileiros-morrem-3-vezes-mais-por-suicidio-e-19-mais-por-assassinatos-do-que-os-policiais-dos-eua-e-matam-7-vezes-mais/. Acessado em: 26/02/2019.
2 LACERDA, Fernando Hideo I. Comentários Sobre O “projeto De Lei Anticrime”. Edição do Kindle.
3 ALEXANDER, Michelle. A nova segregação. Racismo e encarceramento em massa. Trad. Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 143-144.