É de Karl Marx a percepção de que “todo sobrevalor, qualquer que seja a sua forma particular, lucro, redito, rendas, etc., é, em substância, a materialização de um trabalho não pago”[1]. O filósofo expunha, desse modo, uma das vigas da fórmula que evidenciava o preço da força de trabalho, do empenho, do tempo que o ser humano tem de si subtraído para se dedicar à atividade geradora de capital. A sua percepção recaía sobre a exploração e, consequentemente, sobre os efeitos econômicos e sociais que dela decorriam.

Surgiriam, assim, as teorias da mais-valia que, em sentido estrito, estaria relacionada à força de trabalho. A ligação da exploração do labor alheio pressupunha algo como um liame empregatício. A criação do seu conceito, empreendido por Marx, preenchia um espaço da realidade que desnudava os problemas sociais que giravam em torno da lógica da acumulação de riqueza. 

Mas, o que seria mais-valia?

Não é simples definir seu âmbito. Seria muito pretensioso desejar definir mais-valia em breve linhas. No entanto, algo do seu núcleo pode ser revelador de problemas atuais que incidem sobre a vida humana e que repercutem na aplicação do direito, como sobre aspectos da investigação criminal e do processo penal condenatório de cunho inquisidor, antidemocrático.

Na obra “Dicionário do pensamento marxista”, define-se mais-valia a partir do modo assumido de exploração. O foco conceitual é na “diferentia specifica” da modo de produção capitalista, isto é, naquela “em que o excedente toma a forma de lucro e a exploração resulta do fato da classe trabalhadora produzir um produto líquido que pode ser vendido por mais do que ela recebe como salário”[2]. 

Os elementos envolvidos na noção de mais-valia seriam o lucro e o salário, revelando algo como o “preço”, a “moeda de troca” pelo tempo desprendido e pelo desgaste do trabalhador, daí defluindo outros problemas que o filósofo passaria a organizar, contornando vários conceitos.

O mistério desvelado por Karl Marx, à época, estaria centrado em proposições como a de que “todo o segredo do poder que tem o capital de procriar, se estriba no fato de que dispõe de certa quantidade de trabalho de outro, que não paga”[3] . Em outros termos, seria adequado dizer que mais valeria o trabalho se o fosse pago integralmente. A lógica é acumuladora, cujo pontapé mais formidável é a alienação do trabalho e do tempo. Dessa constatação decorreriam todas as outras formas de alienação. 

Mas que é alienação do trabalho?

Consoante Giovanni Reale e Dario Antiseri, a alienação do labor consiste “no fato de que o trabalho é externo ao operário, isto é, não pertence ao ser e, portanto, ele não se afirma em seu trabalho, mas se nega, não se sente satisfeito, mas infeliz, não desenvolve energia física e espiritual livre, mas definha seu corpo e destrói o seu espírito”. De tal modo, no trabalho o operário “se sente fora de si”, enquanto se vê “em sua própria casa se não está trabalhando”. Em outros termos, o seu trabalho “não é voluntário, mas constrito: é trabalho forçado”, sendo “meio para satisfazer necessidades estranhas”[4].

As relações de trabalho, no entanto, sofreram drástico giro com o que se pode convencionar chamar de revolução tecnológica. Para os limites deste texto, a expressão “lógica do aplicativo” visa explicar como a razão humana é transplantada à dispositivos virtuais que funcionam de maneira similar às regiões de conhecimento possível do ser humano, imitando suas estruturas cognitivas e otimizando resultados. O aplicativo, cujo antecedente conhecidíssimo pelo senso comum é a calculadora – e que dispensaria, por exemplo, conhecimentos estratégicos em matemática –, agora é apresentado em versões requintadas que invertem elementos centrais que estariam expostos na filosofia marxista. O “aplicativo”, seu aprendizado e seu uso tomam tempo dos destinatários que são compelidos à dependência, conquanto evidencie “facilidades”.

Doravante, o trabalhador não precisaria mais estar na fábrica para trabalhar, porque está disponível ao labor por aplicativo de troca de mensagens. O acusado em processo criminal não precisaria mais estar no fórum para ser ouvido pelo juiz, eis que há uma generalização indevida do uso de sistemas de transmissão de áudio e de vídeo de maneira instantânea. As intimações não careceriam mais da forma garantidora prevista em lei, que determinam que sejam feitas pessoalmente, por edital ou pela imprensa oficial, contentando-se o Judiciário com comunicações informações por intermédio de estruturas tecnológicas como os conhecidos WhatsApp e Telegram, sem que isso possa significar, para seus protagonistas, risco às garantias mais nevrálgicas. 

Daí surgir a necessidade de explicar os fitos ligados ao lucro e à lógica econômica que subjazem à toda parafernália de aplicativos que estão normalmente à disposição dos que estão engajados no funcionamento do processo penal e do mercado. Há uma aceleração da vida humana e, também, incremento de lucro. Porém, duas perguntas devem ser formuladas: (1) quem lucra? (2) quem tem o tempo explorado sem a contrapartida remuneratória?

Precisa-se então propor um conceito, tomando características do construído pelo gênio marxista: a mais-valia plúrima. Pode não ser o melhor nome a ser dado ao fenômeno, porém se entende como suficiente para chamar atenção para um problema atual. Cabe dizer, todos aceleram a formação de conteúdos que dependeriam do uso da razão humana, de controle e de cautela, em uma produção com recordes sem precedentes, com superação sucessiva de recordes, transformando o mundo, essencialmente, em estatística.

Nesse círculo, advêm indagações que problematizariam pesquisa mais aprofundada sobre o tema: (i) que é mais-valia plúrima? (ii) quem tem seu tempo tomado com o uso do aplicativo? (iii) quem explora? (iv) quem lucra com a oferta de dispositivos tecnológicos que causam dependência que limita a capacidade produtiva do outro? (5) quais os sujeitos que se veem obrigados a abrir mão de garantias fundamentais em troca de tecnologias que, de um lado, proporcionam maior lucro a alguns e, de outro, definham intelectual e fisicamente outros? (6) há, nesse ambiente, quem obtenha acúmulo de capital de forma exponencial?

A noção de mais-valia plúrima reuniria elementos para os propósitos deste artigo, conforme a seguir.

(1) Não é necessária relação trabalhista, podendo ser aplicada a todo modo de vida que faça depender de um ou de mais aplicativos. Mais-valia plúrima retrata estrutura abstrata tendente a transferir deveres a número indeterminado de pessoas. Vale mencionar alguns exemplos, também vinculados ao consumismo: (a) sem smartphone que tenha espaço para download não é possível efetuar operações bancárias (o gerente, não raras vezes, é o aplicativo); (b) sem um aparelho celular compatível, a pessoa pode ter dificuldades em tomar um transporte (táxi, Uber e similares); (c) sem se cadastrar em um sistema processual eletrônico, o ator processual poderá ficar impedido de peticionar; (d) sem baixar o aplicativo alienígena WhatsApp muitos estarão com a comunicação interpessoal limitada, medida autorizada pelo Conselho Nacional de Justiça, por interpretação de sua Resolução nº 234/2016, à mingua de previsão legal. Aliás, o aplicativo é um modo “vantajoso” de viabilizar o trabalho vinte e quatro horas por dia, sem os limites que seriam traçados na “fábrica”; (e) redes sociais como Facebook e Instagram se tornaram não apenas formas de estreitamento de amizades, mas também ambientes de trabalho.

(2) Há esvaziamento do tempo de quem faz uso dos aplicativos, sem contrapartida remuneratória, ou mesmo com a adoção de estratégia de transferência de deveres. Pode-se exemplificar com a hipótese de automação de postos de trabalhos, tal como se dá em um supermercado que transfere ao consumidor o dever de passar produtos no caixa eletrônico, bem como os de pagamento e de embalagem de mercadorias, maximizando lucros.

(3) O lucro que pode decorrer do uso de tecnologias é aleatório e excludente. Os que mais lucram são os gestores e os criadores da propriedade “imaterial”. Vale dizer, a adoção de estruturas de segundo nível (aplicativos), que abstrai elementos das relações físicas, é apta a otimizar resultados que, por seu turno, não são distribuídos isonomicamente.

(4) Há um desgaste físico e mental para os dependentes do aplicativo ou da estrutura de segundo grau substitutiva da individualidade humana racional. Esse desgaste, que finda por reduzir a capacidade de trabalho para atividades diversas, pode se dar por razões de entretenimento ou de trabalho, sem correlata remuneração. Ao contrário, tornou-se comum cobrar despesas por cada aplicativo baixado, sem falar da supressão de postos de trabalho e da necessidade de manter smartphones atualizados.

(5) Os direitos individuais tendem a ser mais solapados. No processo criminal, o uso de sistemas virtuais tem servido a acelerações indevidas, não autorizadas por lei. A presença do acusado na audiência, por exemplo, seria a exigência para tornar o processo criminal mais humano. No entanto, tem-se deixado de lado as garantias com o fito econômico que, ao cabo, atende aos anseios do lucro e coloca os direitos em posição de subordinação à economia.

(6) Explorado é todo aquele que tem o seu tempo usado, ainda que de forma compartilhada, sem receber a contrapartida que deveria consistir em distribuição das vantagens econômicas decorrente da generalização do uso de tecnologia, notadamente nas hipóteses o “estado de liberdade” do usuário é ausente ou reduzido.

Volvendo para o processo penal contemporâneo, vê-se um abismo entre as práticas de alguns atores quando cotejadas com os ditames do ordenamento jurídico, máxime porque propalada uma cultura de antecipação punitiva, vincada na aparência de delito, malgrado o direito positivo exija juízo de certeza, que deve ser bifurcado sob a ótica subjetiva (convencimento) e objetiva (descrição organizada dos elementos teóricos e empíricos envolvidos).

Instrumentos processuais penais são usados nem sempre de forma autorizada pela ordem jurídica. Exigem dispêndio de tempo dos investigados e acusados, com déficit de garantias, ao mesmo tempo podem facilitar a atuação e proporcionar economia de tempo para os agentes estatais. Vale exemplificar: (i) a colaboração premiada[5]; (ii) as comunicações eletrônicas de ato processual; (iii) as simplificações indevidas de procedimento, sem permissivo legal, com objetivo condenatório, a exemplo do teor do enunciado nº 29, do Fonajuc; (iv) as tentativas de introduzir a barganha norte-americana[6], tendente a encarcerar mais pessoas, com a suspensão pactuada de garantias fundamentais[7]; (v) o uso da imprensa para pressionar julgadores ou para legitimar decisões judiciais, sem devido processo legal; (vi) a generalização da execução provisória de pena; e (vii) o uso de instrumentos como a videoconferência.

São medidas que sobrecarregam a defesa do acusado e o oneram financeiramente. Os limites da lei, relativamente ao poder punitivo, ficam nublados. Note-se que a investigação criminal ou o processo criminal tomará parcela significativa de tempo, modificará a rotina do imputado, aumentará suas despesas e provocará sequelas no seu comportamento. Uma tragédia que finda por menosprezar o valor que deve ter o ser humano.

A relação desse proceder estatal instantâneo na condução do poder de punir com o lucro acumulado de alguns setores da sociedade parece ser muito próxima. Importa relacionar algumas evidências a esse respeito.

(1) A deflagração rotineira de operações policiais, prisões antecipadas e divulgação midiática torna possível: (a) um melhor lucro da grande mídia, que garante maior audiência; (b) criação de filmes, com a possibilidade não só de promoção pessoal de seus personagens, mas de ganhos financeiros em favor dos seus criadores e participantes; (c) a supressão difusa de tempo, de energia, de produtividade e, sob certo enfoque, de dinheiro das pessoas que são arrebatadas pelo sensacionalismo diário.

(2) A cotidianidade dos abusos – isto é, a normalização do incorreto pela abstração que o faz o senso comum – é apta a agigantar a acusação e tornar debalde, de parca utilidade, o exercício da ampla defesa. O espetáculo em torno das acusações não produz apenas o sentido de linchamento virtual do imputado, mas subtrai tempo, patrimônio e potencial de produção de um número indefinido de pessoas. A vida do usuário se paralisa em função do show apresentado televisivamente. A espera pelo desfecho é indefinida: há atrofia intelectiva e física de maneira difusa. A um só tempo, o lucro de setores específicos é incrementado, com mais-valia plúrima, com alguma relação de proporção ao prejuízo que provoca a avalanche de informações que, por sua vez, subtraem o tempo de muitos expectadores e usuários. Os recursos tecnológicos são multiplicadores de possibilidades. O pano de fundo é a maior desigualdade.

(3) A engenharia desse sistema, cujo vértice é o elogio a inovações tecnológicas, tem o condão de tornar opacas as subjetividades. Trata-se de carcinoma das garantias fundamentais. A mais-valia plúrima é conceito que representa tentativa de explicar o contexto social de exploração. Karl Marx descreveu essa metodologia (estratégia), bem como as relações que lograriam ter com diversos conteúdos materiais (método), expondo sua metódica (analítica, filosofia). Naturalmente, o filósofo não tinha como prever toda a velocidade que hoje é capaz de explorar e esvaziar o ser humano, tomando-lhe aspectos de elementos de sua subjetividade (tempo e energia), sem que sequer ele precise sair de casa ao trabalho ou sair da prisão para ser julgado. No processo criminal, que lida com o bem nuclear que poderia ser compreendido como essência do ser humano, o desastre causado pela rapidez desenfreada pode significar a negação do que foi construído com muito derramamento de sangue, no curso da história, para coibir o processo penal inquisidor[8].

*Rosmar Rodrigues Alencar é Doutor (PUC/SP) e Mestre (UFBA) em Direito. Professor de Direito Processual Penal e de Filosofia do Direito (UFAL, UNIT e SEUNE). Membro da AJD. Juiz Federal (AL).
Fonte: Coluna Cláusula Pétrea, Justificando

Notas:

[1] MARX, Karl. O capital. Tradução: Gesner de Wilson Morgado. Rio de Janeiro: Melso, 1962. p.266.

[2] BOTTOMORE, Tom; HARRIS, Laurence; KIERNAN, V.G; MILIBAND, Ralph. Dicionário do pensamento marxista. Tradução: Antonio Monteiro Guimarães. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p.361.

[3] MARX, Karl. O capital. Tradução: Gesner de Wilson Morgado. Rio de Janeiro: Melso, 1962. p.266.

[4] REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Tradução: Ivo Storniolo. História da filosofia: do Romantismo até nossos dias [volume 3]. São Paulo: Paulus, 1990. p.193-194.

[5] Por todos, Afrânio Silva Jardim, em clássica obra que divide com Pierre Souto Maior Coutinho do Amorim (Direito processual penal: estudos, pareceres e crônicas. Salvador: Juspodivm, 2019. p.784-785.

[6] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Comentários ao anteprojeto de lei anticrime: tripartido em três projetos de lei conforme versão enviada ao Congresso Nacional. Salvador: Juspodivm, 2019. p.23-25.

[7] PRADO, Geraldo. Estudos jurídicos. São Paulo: Contracorrente, 2018. p.253.

[8] Essas ideias decorrem de deduções da leitura de autores consagrados, dentre os quais: COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p.226; ADEODATO, João Maurício. Uma teoria retórica da norma jurídica e do direito subjetivo. São Paulo: Noeses, 2011. p.141-145. CARVALHO, Amilton Bueno. Direito penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p.85-91; FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. O direito entre o futuro e o passado. São Paulo: Noeses, 2014. p.51-56.