Em que mundo nos encontramos?

A pandemia do novo coronavírus produziu o maior acontecimento politico e econômico desde a segunda guerra mundial. A atual situação internacional é caracterizada por crises múltiplas, instabilidade, imprevisibilidade, graves tensões e ameaças à paz, como afirmou o 14º. Congresso do PCdoB. A crise sanitária revela com maior nitidez que o mundo vive uma deriva civilizatória, decorrente do acirramento das contradições do sistema capitalista e das lutas de classes. A pandemia precipitou mudanças e acelerou tendências. A brutal ofensiva imperialista em curso e a forte onda política conservadora já vinham tendo como resposta a tenaz resistência dos (as) trabalhadores (as) e dos povos. Agora, essa resistência continua em novas condições, mais dramáticas, dados os efeitos humanos, sanitários, econômicos, políticos e sociais da crise pandêmica, ao tempo que ameaças de conflitos mais extensos se apresentem ao mundo.

A transição no sistema de forças internacional, em que emergem no cenário geopolítico novas configurações de poder, também ficou mais evidente com a crise. Lá se vão 13 anos desde o início da atual crise, em 2007. Ainda sem perspectiva de melhora e com implicações nas esferas geopolítica e econômica. Ampliam-se os conflitos no cenário internacional, sejam eles tecnológicos, comerciais, ambientais ou de outras naturezas. O neocolonialismo e agressões de novos tipos tendem a se tornar mais frequentes. Os países que conseguirem produzir convergências em torno de projetos nacionais, certamente enfrentarão melhor esta quadra. Enquanto no Brasil, em duzentos anos de nação independente, nunca havíamos visto uma ação internacional tão errática e subalterna. É preciso resgatar as ideias profundas que permeiam nossa política externa, estruturadas no binômio desenvolvimento e autonomia.

A análise do atual momento precisa, portanto, levar em conta as mudanças em curso no campo das relações internacionais nesta nova etapa do século que avança. Com foco não só nos poderes estabelecidos, mas em seus polos contraditórios, assim como nos movimentos sociais e populares. A grande disputa que se dá hoje no Brasil, por exemplo, pelo domínio da tecnologia 5G entre EUA e China é uma prova cabal da profunda contradição do sistema hegemônico mundial, hoje mais visível e tangível. As experiências de extrema direita nascidas da crise do liberalismo também mostram suas limitações e contradições. É preciso uma nova ordem, de respeito ao direito internacional, à paz e ao desenvolvimento. A China não sai melhor da pandemia por mera casualidade, pois os países socialistas venceram a covid-19. O gigante asiático tem condições de jogar um papel de destaque na retomada do crescimento econômico mundial, com fortalecimento do multilateralismo e da cooperação para o desenvolvimento. A crise que hoje vivenciamos pode guardar a chave explicativa do desenvolvimento do mundo no século XXI.

A pandemia

Os números da pandemia são dramáticos. Até o dia 04.07, às 15 horas, a covid-19 já havia ceifado 513.630 vidas humanas em todo o mundo e contaminado 10.713.315, em apenas cerca de 6 meses. Nos EUA, até o dia 03.07, já havia 129.405 óbitos e 2.793.022 casos; na Europa, 198.320 óbitos e 2.718.363 casos; na América Latina e Caribe, 121.662 mortos e 2.735.107 casos, cabendo a maior parte ao Brasil: 64.265 mortes e 1.578.376 casos. Some-se a isso a consciência da grande subnotificação existente por insuficiência na testagem.

É triste constatar que esses números eram evitáveis. Não obstante ser uma infecção ainda insuficientemente conhecida, a irresponsabilidade de alguns chefes de governo, particularmente os dos EUA, Inglaterra e Brasil, ao sabotarem, na prática, as medidas sanitárias, terminou provocando mais mortes e mais sofrimento para a população. Os países que adotaram as medidas sanitárias adequadas, com efetivo isolamento social e a busca ativa com rastreamento das pessoas contaminadas têm tido maior sucesso em enfrentar a pandemia. Desde a gigante China até a pequena Cuba.

Os países socialistas se sobressaem na crise pandêmica

A República Popular da China deu um exemplo ao mundo no enfrentamento do COVID-19. Implementou o teste massivo da população, uma rígida quarentena dos infectados, o rastreamento das pessoas que possam ter sido contaminadas, impôs o maior isolamento social possível, descontaminou os espaços públicos, generalizou o uso de máscaras e ampliou com rapidez a infraestrutura médico-hospitalar. Tudo isso, sem preocupar-se com os inevitáveis prejuízos econômicos que ocorreriam, mas buscando salvar dezenas ou centenas de milhares de vidas. Assim, apesar de ter cerca de 1 bilhão e 400 milhões de habitantes, teve até 5 de julho apenas 4.634 mortos, enquanto os EUA – com uma população 4 vezes menor – soma mais de 130 mil mortes.

Além do seu grande êxito no enfrentamento do COVID-19, a China desenvolveu a mais ampla colaboração com a OMS e com as demais nações atingidas pela pandemia, seja através do fornecimento do mapeamento genético do vírus, seja através do envio de insumos, equipamentos médicos e equipes de saúde a dezenas de outros países de todo o mundo (só na África, mais de 50). Além disso, assumiu o compromisso de cancelar as dívidas dos países africanos e de tornar “um bem público mundial” a eventual vacina que venha a descobrir, além de destinar 2 bilhões de dólares durante dois anos para a luta global contra a enfermidade.

Outro exemplo tem sido o Vietnã, que apesar de possuir uma população de quase 100 milhões de habitantes, pouco menos da metade do Brasil, registra apenas 355 infectados e nenhum morto. Tendo desenvolvido e fabricado os seus próprios kits de testes – depois exportados inclusive para os EUA –, o Vietnã realizou, até 30 de abril, 261 mil testes e isolou dezenas de milhares de pessoas.

Cuba também tem conseguido – graças à qualidade do seu sistema de saúde – enfrentar com grande êxito a pandemia do COVID-19. Mais do que isso, Cuba tem desenvolvido um trabalho exemplar de solidariedade aos países em situação de calamidade sanitária – como foi o caso da Itália, no pico da sua pandemia –, enviando equipes médicas de apoio. Os médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras da Brigada Médica Henry Reev têm atuado em 21 países. Fruto desse seu trabalho, a Brigada Henry Reev está sendo indicada por centenas de entidades e personalidades mundiais para receber o Prêmio Nobel da Paz.

No restante da América Latina, a diferença de postura de cada governante ficou bastante evidente no resultado prático do número de infectados e mortos. Governos, como o brasileiro, que subestimaram a gravidade do fenômeno terminaram reféns do vírus. Governos, como o argentino, que tomaram as rédeas da situação e não se deixaram dirigir exclusivamente pelo setor econômico ou negacionista, ficaram no controle da situação e minimizaram consideravelmente o número de vítimas.

No plano das respostas à pandemia ficou evidente, ao longo dos últimos meses, o contraste economia versus vida que só é possível sob a perspectiva capitalista. Empresários foram à TV nos EUA e Brasil para defender o sacrifício de idosos para salvar a economia. Inclusive na corrida pela fabricação de uma vacina que proteja a população da infecção percebe-se a incidência desta concepção, pois há possibilidade de geração de lucros bilionários pelas grandes farmacêuticas em uma eventual descoberta. Foi necessário que a OMS aprovasse uma resolução em que os governos se comprometem a garantir acesso público à vacina ou tratamento contra o coronavírus. A resolução tira obstáculos, como leis de patentes, para o amplo acesso ao medicamento e 194 países assinaram, com exceção dos EUA. Frente às tentativas do governo estadunidense de apropriar-se das pesquisas em andamento de uma vacina contra o COVID-19, a China proclamou que, assim que a tivesse, tornaria um “bem público mundial”, disponível para quem a quisesse produzir.

A crise capitalista

A pandemia da covid-19, ao se generalizar mundo afora, fez desabar uma economia que não havia conseguido se levantar da crise deflagrada em 2007-09, a qual, por sua vez, era o desdobramento de uma crise mais geral, de longa duração, de natureza estrutural do capitalismo. A economia dos EUA tem crescido de 2010 para cá à razão de 2% ao ano, a do Japão a 1,5% e a da Europa a 1%. Na verdade, não se trata de crescimento, mas de estagnação da economia.

Em 2019 já havia fortes indícios de que em 2020 tenderia a ocorrer uma nova recessão mundial. O que então se discutia em termos de economia mundial não era se haveria uma nova recessão, mas quando. Organismos como o FMI, o Banco Mundial, a OMC e a OCDE, prognosticavam uma forte desaceleração. Além disso, as economias dos principais países da Europa (Alemanha, Inglaterra, França, Itália e Espanha) já haviam começado a estagnar ou declinar no final de 2019 e entrado em recessão no início de 2020.

O fundamental é que persistiam os problemas e contradições que haviam levado à recessão de 2007-2009, mas há dois elementos importantes que ajudam a entender por que a tendência era haver uma nova recessão: (1) a massa de recursos que, fora da esfera produtiva, circula na esfera puramente financeira, ainda que se alimente da economia real; (2) o enorme endividamento. Com uma economia mundial já vulnerável, a atividade econômica desabou já no primeiro mês de impacto da pandemia. A queda maior ocorreu no setor de serviços. Nos EUA, que se transformou no país epicentro da crise, o consumo caiu em março 7,6% e o investimento 8.6%. Nos primeiros dois meses e meio da pandemia, 42 milhões de trabalhadores e trabalhadoras recorreram ao seguro-desemprego nos EUA. Na China, revelando os primeiros sinais de recuperação, depois de a produção industrial haver caído 13,5% em fevereiro (na comparação anual), só caiu 1,1% em março.

Diante desse quadro, a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, apresentou a estimativa de que até 100 milhões de pessoas tendem a mergulhar na extrema pobreza como consequência da crise. Também o Banco Mundial e a OCDE projetaram uma forte retração do PIB mundial neste ano; para América Latina e Caribe apontam para “uma recessão muito mais profunda do que as que aconteceram durante a crise financeira global de 2008-2009 e na crise da dívida da década de 1980”.

Como resposta, os governos de distintos matizes ideológicos, na maior parte do mundo, vêm utilizando o Estado para injetar dinheiro na economia na busca de salvar vidas e manter a economia minimamente funcionando. A profundidade da crise os fez ver que não havia outro caminho, a não ser recorrer ao Estado. Segundo a diretora-geral do FMI, até o dia 11 de junho, os distintos governos mundo afora já haviam investido US$ 10 trilhões em medidas fiscais. Os governos, passando por cima dos preceitos neoliberais, têm usado à larga a emissão de moeda para financiar esse esforço fiscal e monetário. Está mais do que comprovado que a emissão monetária, em momento de crise e, portanto, de capacidade ociosa na economia, cria condições para aumento da produção, e não dos preços. Assim, o retorno do Estado e, com ele, do investimento público como força propulsora da economia, como ocorrera quando da Grande Depressão e, particularmente no pós-guerra, é um dos fatos mais importantes que surgem com a crise. Pode ou não se transformar em tendência, a depender do andamento da crise e da correlação de forças que venha a se estabelecer como resultado dela.

Outra manifestação da crise foi o colapso do preço do petróleo logo na fase inicial da pandemia, entre março e abril. O produto chegou a ser vendido no mercado futuro por preço negativo, ou seja, os vendedores, sem terem onde estocar, pagavam para vender. Isso se deveu à combinação entre dois fatores: de um lado, a queda do consumo devido à pandemia (em abril, chegou a cair 30%) e, de outro, a falta de acordo entre a OPEP (liderada pela Arábia Saudita) e a Rússia para cortar a produção. Por razões distintas, ambos queriam certa queda do preço a fim de inviabilizar a produção de shale oil (mais conhecido como petróleo de xisto) pelos EUA. O fundo do poço foi o mês de abril. A partir de então, os preços recuperaram, retornando ao patamar de antes da crise, através de um acordo entre a Arábia Saudita e a Rússia para cortar a produção e, ainda, porque Trump ameaçou apoiar financeiramente as petroleiras estadunidenses, que corriam o risco de quebrar pela inviabilização do shale oil.

Geopolítica – acelera-se a transição de hegemonia

A pandemia acentuou aos olhos do mundo a disputa aberta entre EUA e China. Acusações inescrupulosas de Donald Trump de que se tratava de uma ameaça global de um “vírus chinês” encontraram pela parte chinesa uma forte reação política, sanitária, diplomática e científica global. Ao lado da superioridade moral que a nação chinesa demonstrou em defesa da vida e das pessoas, usou também o poder duro da diplomacia quando se tratou de reagir aos ataques à sua imagem e seus interesses.

Esses ataques fazem parte da ofensiva maior do imperialismo estadunidense contra a China, na tentativa de deter a sua rápida ascensão no cenário internacional. Essa verdadeira “guerra híbrida” contra a China envolve a chamada “guerra comercial”, com o ataque a empresas chinesas de alta tecnologia e a proibição da venda de insumos tecnológicos. O estímulo às manifestações separatistas em Hong-Kong, às tentativas de oficializar a separação definitiva de Taiwan da China, aos conflitos nas regiões autônomas do Tibete e de Xinjiang, as tensões no Mar do Sul da China, os choques na Caxemira com a Índia, todos eventos que ocorrem com a ingerência direta ou indireta do imperialismo norte-americano.

Reação chinesa

Atenta à experiência histórica de que uma potência hegemônica declinante nunca renuncia ao seu domínio sem uma luta feroz, a China tem enfrentado essa ofensiva dos EUA de diversas formas. Por um lado, repele com firmeza qualquer ameaça à sua soberania, fortalece sua capacidade militar dissuasória e estabelece sólidas alianças com a Rússia, o Irã e outras nações igualmente ameaçadas pelos EUA e pela OTAN. Por outro lado, renuncia à busca de hegemonia mundial e defende os princípios da não ingerência, da autodeterminação dos povos, do multilateralismo e do desenvolvimento compartilhado e mutuamente benéfico. Insere-se nessa orientação a iniciativa “Nova Rota da Seda” – que envolve investimentos chineses de cerca de um trilhão de dólares – interconectando a China e dezenas de países da Ásia e da Europa, além da África.

Fato concreto é que a China, com uma população três vezes e meia maior do que a dos EUA, teve 25 vezes menos óbitos pela covid-19. Isso demonstra um nível superior de organização do Estado e da sociedade para enfrentar crises dessa natureza. A diferença fundamental é que, enquanto o Estado na China, por seu caráter socialista, está comprometido com o desenvolvimento e com a vida das pessoas, no império estadunidense o compromisso visceral do Estado é com sua oligarquia bélico-financeira. A discrepância acentuada faz com que a vida dos norte-americanos está pior hoje do que a da geração de seus pais, enquanto na China está muito melhor. Fenômeno que, em longo prazo, terá muitas consequências econômicas, sociais e até mesmo psicossociais para o poderio das nações. O socialismo vem demonstrando superioridade e se apresenta como alternativa real de saída para povos e nações face ao capitalismo em crise.

Desespero dos EUA

Os EUA deflagraram uma intensa campanha midiática, diplomática e militar contra a China e a também a Rússia, tentando responder ao que considera uma dupla ameaça a seu papel de potência hegemônica: a ascensão chinesa e a aliança Sino-Russa. Enquanto isso, a Otan, em plena pandemia faz exercícios militares cada vez mais próximos à fronteira russa e Trump anuncia que deslocará tropas da Alemanha para a Polônia. No campo diplomático não deixa de ter resultado a pressão estadunidense em estigmatizar a China como causadora da pandemia, embora isso não tenha se tornado uma “onda” como esperavam os EUA. Desenvolve-se, em paralelo, nos meios de comunicação corporativos, o discurso de que a China é uma ditadura e Putin um déspota, distorcendo e manipulando acontecimentos como os protestos em Hong Kong. Em relação a este aspecto da geopolítica não existem diferenças visíveis entre republicanos e democratas, com os dois competindo para ver quem é mais anti-China.

Em resposta, China e Rússia reforçam a parceria política e militar. Em dezembro de 2019, China, Rússia e Irã realizaram um grande exercício naval conjunto no Golfo de Omã e a aliança Sino-Russa tem acelerado o passo na integração dos interesses econômicos. Em junho de 2019, uma cúpula em São Petersburgo, entre Xi Jinping e Valdimir Putin resultou na assinatura de mais de 30 acordos dos mais variados tipos, no que foi considerado o ponto mais alto já alcançado na aliança entre as duas nações. Na ocasião, declarou Putin, dirigindo-se a Xi Jinping: “Estamos prontos para ir de mãos dadas com vocês”, disse o líder russo.

O declínio dos EUA e a ascensão da China constituem, portanto, a principal tendência da geopolítica contemporânea. Registre-se que a economia dos EUA está ameaçada de perder a posição de maior economia do mundo que desfruta há quase 150 anos, desde quando, em 1872, ultrapassou a da Inglaterra. Medido pelo critério convencional (conversão em dólares pela taxa de câmbio), o PIB chinês saltou de 6% do estadunidense em 1990 para 12% em 2000 e 70% atualmente. Se for medir pela paridade do poder de compra, já superou o dos EUA. Por esse critério, em 1990, o PIB chinês correspondia a apenas 4% do PIB mundial, enquanto o dos EUA representava 20%; em 2018, essas cifras se inveteram: China com 18,7% e EUA com 15,1%. A maneira como a China está enfrentando a pandemia tende a fortalecer mais ainda esse movimento. Ademais, a China apresenta aos fóruns multilaterais a proposição de desenvolvimento compartilhado em prol de um destino comum à humanidade. Sua liderança moral se eleva.

O imperialismo norte-americano perde, dia a dia, prestígio Internacional e autoridade moral. Ao reagir, acumula atritos com os seus aliados da Europa e do resto do mundo. Isso é notório na postura não cooperativa com os demais países do mundo e com a ONU, ao sequestrar respiradores mecânicos, por exemplo. Ao romper com a OMS; buscar o monopólio de uma eventual vacina anti-COVID19; intensificar o bloqueio criminoso à Cuba, Venezuela, Irã, RPDC; e tantas outras medidas unilaterais. Além disso, lançaram uma campanha internacional contra a China, acusando-a de ser responsável pelo surgimento da pandemia e conclamando uma “frente mundial” para obrigar a China a pagar “os danos causados pelo COVID-19”. Buscam encobrir o seu fracasso no combate ao novo coronavírus – classificado por Trump como “uma mera gripezinha” –, que já matou mais de 130 mil norte-americanos.

Nos EUA a reeleição de Trump encontra-se flagrantemente ameaçada, em especial pela má condução da crise do novo coronavírus e da onda de protestos antirracistas e por justiça social eclodidos com o assassinato de George Floyd. Dados revelam que o movimento Black Lives Matter – Vidas Negras Importam pode ser o maior já ocorrido na história dos EUA, com o envolvimento de 25 milhões de pessoas. No campo dos democratas, após vitórias importantes em alguns colégios eleitorais, a campanha de Bernie Sanders a presidenciável perdeu fôlego, renunciou, e Biden acabou ficando com a titularidade da candidatura. Hoje há grande tensão interna entre os democratas polarizados em um campo mais à direita, inclusive com apoios de importantes republicanos anti-Trump a Biden e um campo mais à esquerda polarizado pela deputada de Nova Iorque Alexandra Ocasio Cortez. As últimas pesquisas apontam para um crescimento da campanha de Biden. Ele já conta com 8 a 10 pontos de vantagem sobre Trump na opinião pública norte americana. Bom lembrar que a eleição nos EUA é indireta e que na eleição de 2016, Hillary liderou as pesquisas até o final, ganhou por quase três milhões de votos, mas não chegou à Casa Branca. É preciso analisar a situação em cada Estado, principalmente os grandes. O grande diferencial de Biden nas pesquisas tem sido entre os eleitores negros e latinos. Na pesquisa recente do NYT com o Sienna College ele chega a ficar com 50% contra 36% de Trump. Um resultado desfavorável à Trump, será também desfavorável aos seus sócios latino-americanos, como Duque na Colômbia, Lenin Moreno, no Equador e Bolsonaro no Brasil.

Cenário mundial e a luta dos povos

A pandemia também evidenciou profundas contradições e conflitos no seio da União Europeia. Após uma questionável mobilização de apoio aos países mais atingidos pelo vírus, como Itália e Espanha, por meses os países do bloco ficaram discutindo qual o melhor formato de socorro econômico. Os países do norte se recusavam a aprovar um corona bônus, ou empréstimos a fundo perdido, para salvar os países do sul, com discreta aprovação alemã, mas por fim, o apoio da França aos sulistas forçou uma solução com dois fundos, um de doação e outro de empréstimo. Neste momento, assume a presidência pro tempore do bloco a chanceler alemã Angela Merkel e há grande expectativa especialmente no que tange à aproximação com China e Rússia, os aspecto de ajuste das políticas econômicas, ambientais e crise do Brexit em curso no continente. No contexto geral, a extrema direita vem tentando se impor, mas sofreu derrotas importantes no último período. O fiscalismo e as políticas de austeridade ficaram em xeque com a pandemia.

Na França, eleições municipais recentes projetaram os Verdes e o partido União Nacional de Marine Le Pen caiu consideravelmente em número de representantes eleitos. Foi também resultado da ação dos Coletes Amarelos e de grandes manifestações grevistas contra a reforma da previdência naquele país. Os partidos de extrema direita como o Vox, na Espanha, ou o AfD, na Alemanha, seguem atuando para angariar mais apoios e por ora estão contidos, embora encontrem ambiente para difundir suas ideias. Na Hungria, Viktor Orbán, se aproveitou da pandemia para fechar mais o regime e o controle do parlamento e na Polônia há segundo turno eleitoral em 12 de julho e o atual presidente da ultradireita Andrzej Duda não está tão confortável para vencer o liberal Rafal Trzaskowski. Na Itália, um dos epicentros do coronavírus na Europa, o líder xenófobo Salvini perdeu bastante espaço com a consolidação de Conte como governante durante a pandemia. Na Espanha e Portugal, vitórias centristas, com forte rechaço às políticas de austeridade fiscal, foram importantes no período – na Espanha o próprio Partido Comunista integra o governo.

Neste contexto, ficou em segundo plano a chamada “crise dos refugiados” que há poucos meses preenchia os jornais com imagens de uma crise civilizatória na Europa. Pessoas continuam chegando em botes infláveis vindos da África e do Oriente Médio e suas condições são ainda mais trágicas na travessia e na chegada, expostas a ainda mais um fator de altíssimo risco, o coronavírus. Nos transportes que partilham e nos abrigos em que são confinadas é alto o risco de contaminação. Com a situação agravada em países de origem diversos, afetados não só por guerras e catástrofes, mas também pelas crises que acompanham a pandemia, a tendência migratória pode se ver ainda mais complicada e a precariedade do movimento, piorada.

América Latina e Caribe

Na América Latina e Caribe, apesar de diferentes desenvolvimentos da pandemia, contam muito as desigualdades sociais e regionais. Os números mostram que o impacto econômico está sendo severo e com consequências ainda imprevisíveis. Segundo estimativas da Cepal, está prevista uma contração regional média de 5,3%, pior do que as vividas em 1914 e 1930. Isso em um contexto em que a região já acumulava sete anos de baixo crescimento com uma média de 0,4% entre 2014 e 2019. O impacto do retrocesso se dá na redução do comércio internacional, na que da dos preços dos produtos primários, intensificação da aversão ao risco e agravamento das condições financeiras gerais, com menor demanda no setor turísticos e no envio de remessas. Desemprego, aumento da pobreza e da desigualdade são os efeitos mais visíveis e cruéis. O desmonte dos Estados nacionais pelas políticas neoliberais de austeridade e fiscalismo torna mais trágico e moroso o processo de aprovação e a implementação de medidas de apoio às pessoas e à atividade econômica.

A pandemia chegou em um momento de alta tensão política na América Latina. Pelo menos três processos mais agudos roubaram a cena no segundo semestre de 2019. A revolta indígena e popular no Equador. A rebeldia popular e por uma nova Constituição no Chile. O brutal golpe contra o governo de Evo Morales na Bolívia. Todos esses processos ganharam contornos mais complexos com o desenrolar da pandemia no primeiro semestre de 2020 e se somam ao recrudescimento das hostilidades imperialistas contra Cuba e Venezuela. No Equador, o governo de Lenin Moreno priorizou os compromissos com o FMI e se demonstrou incapaz de dirigir o país em segurança sanitária. Vieram de Guayaquil as mais tristes cenas de pessoas tombadas nas ruas vítimas do coronavírus. No Chile, o presidente Piñera se aproveitou das condicionantes sanitárias para tomar o controle do espaço público e reprimir mais duramente os protestos na periferia de Santiago, que ganharam contornos dramáticos dada a incapacidade do Estado de suprir as necessidades econômicas de sua gente. Na Bolívia, o governo de fato de Jeanine Añez também se aproveitou da pandemia para fazer controle da população via biopolítica. Segue a perseguição aos líderes do MAS e a tentativa de desestabilizar a candidatura de Luis Arce à presidência da República.

Cuba, além de enfrentar o COVID-19, está precisando enfrentar o recrudescimento do bloqueio estadunidense ao país, que chegou à vileza de proibir e suspender a venda de respiradores mecânicos, medicamentos e insumos farmacêuticos. Não satisfeitos, os EUA vêm ameaçando impor sanções aos países que aceitarem a ajuda médica de Cuba. Soma-se a tudo isso a profunda crise do turismo mundial, fonte imprescindível de divisas para Cuba.

Oriente Médio

No Oriente Médio, a situação também atinge novos picos gravíssimos. Não bastasse a pandemia, as permanentes ameaças de confrontos regionais fustigados pelo imperialismo estadunidense e as disputas regionais, está no topo da pauta hoje, a nível mundial, o plano do governo de Israel de anexar vastas porções da Palestina ocupada.

Embora a esquerda e forças árabes tenham conquistado presença inédita no Parlamento, o primeiro ministro Benjamin Netanyahu, de extrema-direita, conseguiu construir um acordo para formar a coalizão do que chama de “governo de unidade nacional de emergência” com o rival Benny Gantz, mas encontra-se fortemente pressionado internamente pelo inquérito por corrupção que responde na justiça e pelo rechaço internacional ao seu plano de anexação de territórios palestinos, respaldado pelo denominado Plano do Século do Governo Trump.

Por outro lado, os palestinos avançam na consolidação de uma unidade nacional, buscando superar divergências neste momento crucial, enquanto demandam ao mundo que retire o protagonismo dos EUA na gestão do processo diplomático e responsabilize Israel. Está em causa não apenas o direito do povo palestino à autodeterminação, uma promessa pendente há mais de sete décadas e que já seria suficiente para causar reação, como os próprios fundamentos do direito internacional e a credibilidade das Nações Unidas.

A Síria segue resistente nesses nove anos de agressão imperialista e de atuação dos grupos terroristas no país, palco de inestimável devastação e sofrimento imposto ao povo sírio. Recentemente, entre as intervenções diplomáticas desastrosas de Trump, os EUA reconheceram a soberania israelense sobre os territórios sírios de Golã, ocupados por Israel desde a guerra de 1967, o que adiciona combustível à tensão regional. Incapazes de derrubar o presidente Bashar Al-Assad, os EUA também intensificam sanções contra a Síria para, de acordo com o governo sírio, influenciar as eleições presidenciais de 2021.

O Irã também tem resistido às ofensivas diplomáticas estadunidenses e até mesmo cooperado com outros países sob ataque, como a Venezuela, furando o cerco dos EUA para entregar suprimentos e combustível ao país latino-americano. O governo iraniano ousou até mesmo a emitir mandado de prisão a Donald Trump pelo assassinato do seu general Qassem Soleimani em ataque estadunidense ao seu comboio, no Iraque.

Recentemente, um confronto entre forças indianas e chinesas reacendeu a questão fronteiriça. Em agosto de 2019, o governo hindu-nacionalista de Narendra Modi resolveu unilateralmente cancelar o status especial autonômico da Caxemira, zona disputada com a China e o Paquistão, o que alguns classificam de anexação. O governo ainda ameaçou a fazer o mesmo com a parte norte daquela zona, considerada paquistanesa, colocando problemas para a China e seu investimento de USD 60 bilhões no corredor econômico China-Paquistão, parte da Iniciativa Cinturão e Nova Rota da Seda. Registre-se que se tratam de três potências nucleares, pelo que o conflito levanta ainda maior preocupação, para além das próprias consequências para o povo da região. Há anos a Índia tem tomado medidas para ocupar a região, como a construção de infraestrutura e até uma base aérea. Em maio, tropas chinesas adentraram a zona em resposta à medida indiana, o que elevou a tensão e causou o confronto com vítimas fatais de 15 de junho. Relatos do confronto entre tropas indianas e chinesas apontavam para a gravidade da desestabilização de um “status quo” de quase 70 anos, uma situação ainda assim grave e para a qual o povo daquela região continua a demandar conclusão.

África

A África, continente sempre esquecido e negligenciado nas relações internacionais, por enquanto só recebeu ajuda concreta da OMS e da China, ao longo da pandemia. O gigante asiático colaborou com mais de 50 países africanos, tendo enviado 30 milhões de kits de teste, 10 mil respiradores e 80 milhões de máscara por mês. Na “Cúpula Extraordinária China-África de solidariedade contra o COVID-19”, promovida pela União Africana e realizada em junho, a China anunciou o perdão do serviço da dívida de vários países africanos e assumiu o compromisso de disponibilizar 2 bilhões de dólares, durante dois anos, para a luta global contra a enfermidade. A situação no continente é preocupante pelo histórico de sobrecarga com outras enfermidades, como o Ebola, a Aids, a Cólera, a Malária e a Febre Amarela. Os países mais afetados pela Covid-19 tem sido a África do Sul, a Argélia, o Egito e a Nigéria. Paralelamente segue a guerra civil na Líbia, a colonização do Sahara Ocidental e este ano gigantes nuvens de gafanhoto tem destruído as plantações, elevando o drama da insegurança alimentar.

Rússia e Coreia do Norte

Dois outros fatos são importantes de se registrar. Na Rússia, Putin mobilizou extenso plebiscito onde foi vitorioso, destacando-se emenda constitucional que permite sua reeleição e permanência no cargo presidencial até 2036. Outro é o fracasso do jogo atrabiliário de Donald Trump com relação à Coreia do Norte, atrapalhando a busca de unidade do povo coreano.

O Referendo Constitucional realizado na Federação Russa consagrou indiscutível vitória da liderança de Vladmir Putin. Finalizado no primeiro dia de julho, passado, o “Sim” venceu com 78,56% dos votos, o “Não” obteve 21,44% e 0,82% votaram em branco ou nulo. O comparecimento foi de 67,97%. A principal consequência política é que Valdmir Putin poderá concorrer a mais dois novos mandatos de seis anos. O poder da câmara baixa do Parlamento foi ampliado. Ficou instituído o salário mínimo nacional e aumento anual das pensões. Nenhuma lei internacional poderá se sobrepor às leis nacionais e a Federação Russa será “a continuadora e herdeira da URSS” bem como da “milenar cultura russa”. Por outro lado, a constituição expressa que o casamento só pode ser celebrado entre um homem e uma mulher, contendo uma proibição ao casamento gay, além de instituir a “fé em Deus” como uma tradição russa.

Com relação às duas Coreias, em 2018 registraram-se avanços no diálogo em busca de uma solução pacífica para a questão da península coreana. A comunicação entre as duas Coreias alcançou níveis inéditos, mas Pyongyang continuou na lista de alvos de um eventual ataque nuclear “preventivo” dos EUA, seguiram os exercícios militares entre Coreia do Sul e EUA, continuam as sanções contra a RPDC, bem como a propaganda e o estímulo à subversão interna na Coreia Popular. O fim da hostilidade dos Estados Unidos é condição de paz e estabilidade na península coreana. A mensagem da liderança coreana deixa claro que a Coreia Popular não se deixará conduzir por um falso acordo de paz, em que sua soberania e seu povo sigam sendo agredidos e desrespeitados. 70 anos depois da Guerra contra a Coreia, deflagrada pelos EUA, é evidente que não cessou ainda a política hostil estadunidense contra a RPDC.

No que tange à luta dos povos, as táticas ofensivas usadas pelos EUA, seja no plano militar, no diplomático e no financeiro, são por vezes até mais devastadoras que as próprias guerras no sentido militar. O movimento internacional da paz e as forças democráticas têm vencido as dificuldades para mobilização, impostas pela pandemia, através dos meios virtuais. Incontáveis seminários, debates e eventos virtuais têm articulado forças diversas em solidariedade com as lutas dos povos, palestino, saarauí, cubano, venezuelano, coreano, entre tantos outros, buscando manter a oposição às guerras, ao colonialismo e às ofensivas econômicas e diplomáticas. Em diversos países também se realizam atos de rua, com os cuidados necessários diante da pandemia. Algumas atividades internacionais têm sido modesta e paulatinamente retomadas, como a Conferência Anti-Imperialista a se realizar no Chipre, em setembro, pelo Conselho Mundial da Paz.

Os fóruns progressistas e o movimento comunista

Em meio à pandemia e ao movimento de resistência à restauração conservadora na América Latina e Caribe, o Foro de São Paulo completa 30 anos de existência. Ao longo dessas décadas, a organização que congrega partidos progressistas de todas as Américas, tem sido a mais ampla e duradoura reunião de forças políticas em todo o mundo, desde o fim da Internacional Comunista. Na primeira década coordenou as lutas contra o neoliberalismo, na segunda década, início dos anos 2000, coordenou o avanço de seus partidos membros na ocupação de espaços de poder nos Estados. Na terceira década veio a resistência à onda de restauração conservadora neoliberal e aos golpes de Estado de vários tipos. Ao longo dos últimos meses de pandemia, se debruçou em manter ativos seus núcleos regionais e seu Grupo de Trabalho, em um permanente trabalho de análise e formulação política de alto nível para dar as respostas que a conjuntura dramática de ascensão do neofascismo e do neoliberalismo exige.

Ao lado do FSP, outras iniciativas se sobressaem como o Grupo de Puebla e a Internacional Progressista. Entre as personalidades da Internacional Progressista, se destacam a canadense Naomi Klein, os norte-americanos Noam Chomsky e Bernie Sanders, o grego Yanis Varoufakis e o brasileiro Fernando Haddad. Se consideram como uma frente ampla para barrar o autoritarismo. Na América Latina, desponta o Grupo de Puebla, puxado por forças social-democratas chilenas e brasileiras. Está entre seus propósitos a articulação de lideranças progressistas comprometidas com a integração e o desenvolvimento latino-americano. A força da novidade faz com que seus pronunciamentos tenham muita força de atração midiática no período recente.

O PCdoB participa ativamente do Grupo de Trabalho do Foro de São Paulo e ingressou no Grupo de Puebla. Por sua vez, o movimento comunista segue se organizando no EIPCO (Encontro Internacional dos Partidos Comunistas e Obreiros) que este ano tinha reunião prevista para maio na Coreia do Norte, mas que precisou ser cancelada por força das condicionantes pandêmicas. Ao seu lado, ganha protagonismo o Partido Comunista Chinês que, às vésperas de completar 100 anos de existência em 2021, tem realizado reuniões regionais com partidos comunistas em vários continentes e refletido sobre a possibilidade de um grande encontro dos comunistas no próximo período.

*Esse texto foi produzido de forma coletiva, sob a coordenação e organização de Ana Prestes e Walter Sorrentino, da Secretaria de Relações Internacionais do PCdoB, e com a participação de membros da Comissão Executiva da SRI: Moara Crivelente, Nilson Araújo, Raul Carrion, Rubens Diniz e Wevergton Brito.