Início da vacinação no Brasil e nossas perspectivas políticas
Contrariando de certa forma previsões que indicavam que a ANVISA – hoje sequestrada pelo bolsonarismo – iria criar algum tipo de obstáculo à aprovação das vacinas chinesa e inglesa – o que se viu foi não só uma aprovação unânime pelos cinco diretores, como uma clara orientação no sentido que não existe tratamento precoce para a doença Covid-19. Não há como negar que isso foi uma vitória da ciência e um duro golpe nos negacionistas. Senão, vejamos.
Desde outubro passado, quando Bolsonaro desautorizou publicamente o seu “ministro” da saúde, general Pazuello, sobre a contratação de algumas milhões de doses da vacina denominada Coronavac, da farmacêutica chinesa Sinovac, o Brasil vive um estado geral estupefaciente. Eu mesmo publiquei um artigo afirmando que o Brasil não será vacinado e viveríamos agora uma corrida para ver quem vacinaria em primeiro lugar – da qual sigo convencido disso (1).
As cenas mostradas pelas televisões brasileiras no domingo, dia 17, foram paradoxais. De um lado um “ministro” da saúde concedendo entrevista em Brasília visivelmente derrotado por não ter conseguido entregar ao seu chefe um lote de vacinas mínimo para que uma foto fosse feita sobre o “início” da vacinação no país. Mas, mais do que isso, leu um discurso aos tropeços, atacando duramente o governador de São Paulo, João Dória Júnior (PSDB), afirmando inclusive que ele age ao arrepio da lei.
Por outro lado, a fotolegenda vinda de São Paulo, onde víamos um governador com uma camiseta impressa com a bandeira do Brasil com o escrito “Vacina do Brasil” observando uma funcionária do hospital Emílio Ribas, Mônica Calazans (que nem efetiva é do hospital) sendo vacinada. Ela mesmo negra, com três comorbidades e moradora da Zona Leste de SP. Foi seguida pela índia Vanusia Costa Santos.
Claramente, Dória ganhou a “corrida” à vacinação, ele que é o governador tucano do maior estado do país. Em seu discurso – já em campanha – ensaiou inclusive, um discurso com um linguajar mais ao centro e mesmo à esquerda. Relembrou o passado de seu pai cassado pela ditadura militar e sua vida no exílio. Cercado de assessores, dirigentes do Instituto Butantã e da própria enfermeira vacinada, Dória, pode-se dizer, que marcou um grande tento e ampliou em muito o seu cacife para a outra corrida, a presidencial de 2022.
Mas há outro aspecto que temos que registrar na vitória política de Dória. As seis milhões de doses importadas da China pelo Butantã foram, na prática, confiscadas pelo governo federal por medida provisória, pois restou a esse governo fascista apenas e unicamente a vacina chinesa que ele tanto combateu e desdenhou.
Dória poderia resistir e não enviar para Brasília o restante das vacinas, depois de retirar a cota parte de SP. Mas, não o fez. Até para ficar bem nacionalmente com governadores e com a opinião pública, ele optou em enviar ao governo federal o restante das doses. E é com essas poucas doses que o governo do “Messias” vem tentando iniciar vacinação desde esta segunda, dia 18 de janeiro. O que se viu foi um amplo fracasso, em especial na logística, vindo de um “ministro militar’ que se diz “especialista em logística” (sic).
Não só ele sai fortalecido desse processo, mas o Estado de SP e seu Instituto que é referência nacional em pesquisas e na fabricação da vacinas que atendem ao conjunto do Brasil. O seu “concorrente” mais direto, o Instituto Osvaldo Cruz do Rio de Janeiro, este um órgão federal, que apostou todas as suas fichas na vacina inglesa da Universidade de Oxford, da empresa AstraZeneca, não só não as recebeu, como não pode iniciar a sua fabricação nacional por falta de insumos chineses.
Aspectos a serem ressaltados
Aqui quero registrar alguns fatos importantes. O maior de todos eles e, claro, praticamente pouco falado pela mídia, é que a grande vencedora em todo esse processo foi mesmo a República Popular da China. Por vários aspectos. O primeiro e mais importante deles é que apenas sua vacina é a que está verdadeiramente pronta, acabada e à disposição de ser fabricada por quem quer que queira em todo o mundo. E isso já há muitos meses.
O segundo aspecto sobre a vacina chinesa, foi a magnânima decisão do presidente da China, Xi Jinping, ter declarado ao mundo e ao governo de SP que eles poderiam chamar de “Vacina do Brasil” a vacina chinesa, no sentido de minimizar o preconceito com a nacionalidade do imunizante (vejam o absurdo que vivemos na atualidade). O próprio presidente da China já havia dito que essa vacina deve ser patrimônio da humanidade.
Por fim, o aspecto da derrota fragorosa deste que intitula nosso presidente, que tudo fez e lutou contra que essa vacina fosse adotado no país e aplicado aos brasileiros. Ironia do destino, na verdade restou-lhe apenas essa vacina, como única alternativa para iniciar a vacinação no país, ainda que em parcela ínfima da nossa população. Todas as outras – se chegarem mesmo – virão bem depois (dados divulgados amplamente mostram que a quantidade permite a vacinação de apenas 0,5% dos idosos em casas de repouso e um terço dos profissionais de saúde).
O general ministro, mais uma vez, poderia pedir para sair, tamanha a humilhação que sofreu em todo o processo. E não o faz porque não pode deixar a “boquinha” de um super salário de mais de 30 mil reais, muitas mordomias, que ele acumula com seu já elevado salário de general três estrelas da ativa de mais pelo menos 20 mil reais. Ele e mais quase dez mil militares que ocupam hoje cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão no Brasil (nem na época da ditadura militar propriamente dita, nunca se viu tantos oficias de altas e médias patentes, em postos governamentais).
O “presidente” desapareceu por completo e ficou sumido sábado e domingo. Ele já havia sido completamente desmoralizado na semana passada quando chegou a contratar um avião da Azul Linhas Aereas para ir buscar vacinas na Índia que na verdade nunca estiveram à disposição do Brasil e mesmo que o estivesse, era uma quantidade ínfima de dois milhões de doses.
As implicações eleitorais da vacinação
O Brasil é o 52º país do mundo que inicia a vacinação. Mas, em nenhum deles a imunização está sendo em massa. Ela está sendo feito em uma ordem de pessoas de maior risco para as de menor risco. É muito lenta a vacinação, mesmo em países ricos e desenvolvidos. Até porque não há vacinas suficientes já produzidas no mundo. E fala-se em aplicar apenas a primeira dose, o que faz cair a eficácia da vacina.
Capitalizar e tirar proveito eleitoral do processo de vacinação não é privilégio do governo Dória aqui em SP. Ao contrário. Até em Israel, que vai ter a sua quarta eleição em março próximo, o seu primeiro Ministro Benjamin Nethanyahu já fez questão de tirar uma foto sendo vacinado. A mesma coisa na Inglaterra, França e Alemanha entre outros países.
É preciso deixar claro que o Brasil inicia excessivamente atrasado em seu processo vacinal porque e tão somente pela pressão da opinião pública, da imprensa e pelo fato que o possível concorrente mais direto no campo da direita à reeleição de JB, que é o governador de SP, estar bem à frente do processo. Acertou tudo com muita antecedência. Visualizou dividendos políticos. Planejou sua projeção nacional que, certamente, agora está ocorrendo.
Nesse contexto, decorrente da elevação da consciência da população sobre o (des)governo de JB, em especial pela tragédia manauense, parece haver no ar um clima de aumento da já alta rejeição à Bolsonaro. As pesquisas de opinião devem refletir sobre isso nas suas próximas rodadas. Editoriais da imprensa burguesa começam a levantar a hipótese de impedimento do “presidente”.
Alguns órgão de mídia e instituições populares já abriram o Placar do Impeachment. Por certo, mais de 300 parlamentares se declaram ainda indecisos. Mas, isso é positivo. Se em todas as crises nesses dois anos – e algumas foram muito grandes – eu sempre permaneci cético com a possibilidade de sua remoção, agora acho que o movimento Fora Bolsonaro pode ganhar amplos setores sociais e ganhar corpo. É provável que o governador de SP venha a se somar a esse movimento.
No entanto, essa crise sanitária e vacinal – onde a maioria do nosso povo não será vacinada – coloca para nós de esquerda um duro dilema. Não temos força, é verdade, para a remoção da chapa presidencial eleita em 2018. Isso poderia ocorrer facilmente pela aprovação da sua impugnação por uso de caixa dois para financiar disparos por aplicativos de mensagens instantâneas. Está tudo pronto. Fatos e dados. Informações. Reportagens densas na imprensa. Mas, acho que a burguesia brasileira, mesmo parte significativa dela já estando apavorada com o (des)governo Bolsonaro, que agora coloca em risco as suas próprias vidas, não tomou essa decisão ainda.
Resta-nos o impedimento no Congresso Nacional. Ainda não há clima nenhum para isso. Mas poderá haver e rapidamente, se for criado uma corrente de opinião, a partir das redes sociais e a partir dos noticiários extremamente negativos que têm saído nas grandes redes de televisão, onde os e as apresentadoras passam a fazer comentários editorializados contra o “presidente”. Uma ideia-força pode ser criada.
A esquerda, que segue sem uma unidade nacional, sem conseguir formar um bloco forte, que tem vários candidatos em seu meio, enfrentará o dilema de apoiar o impedimento, que significará a remoção do “presidente” e a assunção do seu vice, general Mourão, um protofascista tão ruim ou até pior que Bolsonaro.
No entanto, seguimos dizendo que não há nada neste Brasil pior do que o fascista que nos (des)governa. Alguém fez um comentário em alguma rede social sobre João Dória que dizia mais ou menos assim: A grande prova que o pior ser humano do mundo é melhor que JB é o aumento da popularidade de João Dória.
O clima que vivemos hoje no Brasil não é só de imenso pessimismo pelo (des)governo que está instalado em Brasília. Agora existe na população um pânico real que a contaminação de grande parte das pessoas acarretará a morte de uma boa parte dos contaminados. Isso é real e concreto. Por um lado, isso faz com que a já pequena popularidade de JB caia ainda mais.
Exemplo disso é a própria cidade de Manaus, bolsonarista desde 2018. Lá ele teve, no primeiro turno, 57% dos válidos e, no segundo turno, ampliou para 65% (2). Hoje, mostram algumas pesquisas, a sua popularidade (ótimo e bom) caiu para 7%. Não bastasse isso, tanto o prefeito Davi Almeida, um fundamentalistas neopentecostal do Avante, quanto o governador do Estado, Wilson Miranda Lima, do PSC, partido de extrema-direita, são bolsonaristas de raiz, anticiência e negacionistas. Esses, junto com Bolsonaro e seu “ministro” da saúde, são os únicos responsáveis pela tragédia de Manaus.
A questão que volta a ser colocada na ordem do dia é o afastamento do “presidente” a partir do impedimento a ser votado na Câmara. O atual presidente da instituição já recebeu 59 pedidos e jamais os colocou em votação. Ainda que a sua retórica política tem sido de elevado tom oposicionista que já se viu em dois anos. Rodrigo Maia já até afirmou que não restaria outro caminho a não ser mesmo o impedimento.
Diversos órgãos de imprensa e da sociedade civil já passam a criar placares do impeachment, onde os deputados dizem se são a favor ou contra. Mas, a imensa maioria ainda se encontra em cima do muro (mais de 350 parlamentares). Claro que essa situação só chegará ao seu desfecho final se e quando criarmos uma corrente de opinião forte na sociedade e mesmo ganharmos as ruas.
Mais recentemente, um artigo na revista Época – da editora Globo – pode ser o estopim de nova crise política e militar no país. Sob um controverso título “Exército volta a matar” o autor da matéria associa toda a corporação – não sem razão inclusive – com as mortandades no país (3). É fato que este governo é “presidido” por um tenente do exército, tendo como vice um general quatro estrelas (da reserva) e tem na sua estrutura quase dez mil militares em milhares de postos importantes no governo.
Não é a primeira vez que o exército faz ameaças ao país. Jamais nos esqueceremos da ameaça que o general Villas Bôas fez ao STF para que ele não alterasse a questão da prisão em segunda instância, para que Lula fosse aprisionado em 2018 e não concorresse às eleições. Agora, mais uma vez, viola-se a liberdade de imprensa.
Mas, pior que isso, Bolsonaro declarou no dia 18 de janeiro que são os militares que decidem se os brasileiros devem viver em uma democracia ou uma ditadura. Nunca antes um presidente eleito democraticamente ousou falar uma barbaridade dessas. Uma agressão ao país e ao nosso povo. Fica cada dia mais claro que Bolsonaro está incontrolável (4).
Rumos e perspectivas
O início da vacinação nos profissionais da saúde do Estado de SP foi um alento para todo mundo. Uma certa esperança parece ter voltado ao país. No entanto, sigo com a firme opinião já expressada e publicada nas redes sociais, de que o nosso Brasil – e o mundo a mesma coisa – não será vacinado. Esse início de vacinação deve significar, em termos de doses, a, no máximo, 1% do total da população brasileira. De onde virão 420 milhões de doses necessárias para imunizar todo o nosso povo?
Não há vacinas nem para o Brasil nem no mundo. As poucas empresas farmacêuticas que estão em fase de produção industrial, algumas com sua produção até de 2022 já vendida completamente, não conseguem atender à demanda mundial. Como já disse, os pobres nos países ricos não serão vacinados e nos países pobres, só os ricos serão vacinados. Uma triste sina da humanidade.
Fazia também já algum tempo que não ouvíamos, mesmo que em tom de boataria, o fato de que existem agora movimentações e rumores de que os militares preparam um golpe, para defender o “seu” governo cívico-militar, o que ele é na prática. Isso só demonstra a fragilidade de nossa democracia.
Os partidos políticos de oposição – se entendermos isso os dez partidos que se apresentam desde a centro-esquerda até a ultraesquerda – encontram-se completamente desunidos, com várias pré-candidaturas já colocadas para as eleições de 2022 e sem um programa unificado. E o pior de tudo: mesmo que se unissem em uma candidatura única, fariam – com base nos resultados de 2020 – um total de votos válidos de 20% do eleitorado. Como vencer o fascismo com esse resultado?
Será que estamos destinados a nos comportarmos como os eleitores da França (Macron versus Marine Le Pen) e nos Estados Unidos (Trump versus Biden) quando tiveram que escolher entre dois candidatos do campo conservador, sendo um deles de extrema direita? Será que reunimos forças, mesmo unidos, para colocar um nome nosso no segundo turno? Há quem diga que sim. Eu estou pessimista e estou entre os que acham hoje muito difícil a nossa situação.
Mas, o meu ânimo vem do fato que em política, é como nuvem. Uma hora você olha para o céu e vê de uma forma e de um momento para outro, ao olhar novamente você verá as coisas completamente modificadas. Acho que viraremos a mesa. Bolsonaro não vencerá e será apeado do poder. E não por uma vontade pessoal minha, mas como necessidade objetiva da Nação. E precisaria ser apeada a chapa completa, pois o atual vice não é um Itamar Franco nem um José de Alencar. É pior que o titular: triste sina de nosso país.
1. Quem quiser lê-lo pode clicar aqui: <https://bit.ly/2MLVUgV>.
2. Dados podem ser vistos aqui <http://bit.ly/39MjySh>.
3. Veja a matéria sobre isso neste link: <http://bit.ly/3nXu9yU>.
4. Vejam essa declaração neste link: <http://bit.ly/3p0jzIK>.
* Sociólogo, professor universitário (aposentado) de Sociologia e Ciência Política, escritor de 14 livros, pesquisador e ensaísta. Atualmente exerce a função de analista internacional, sendo comentarista da TV dos Trabalhadores, da TV 247, da TV DCM, do Canal Outro lado da notícia e do Canal Iaras & Pagus, todos por streaming no YouTube. Publica artigos e ensaios nos portais Vermelho, Grabois, Brasil 247, Outro lado da notícia, Vai ali e Vozes Livres. O site da sua editora é www.apparteditora.com.br e seu site pessoal é www.lejeune.com.br. Recebe e-mails no endereço [email protected].