Enfim, as mulheres puderam votar no Brasil
O voto é um direito de todo brasileiro acima de 16 anos para escolher a classe dirigente do país. Graças a universalidade do voto, todos têm a chance de ir às urnas manifestar suas preferências e convicções em um futuro melhor para o país. Mas nem sempre foi assim. Há 89 anos, no dia 24 de fevereiro de 1932, as mulheres conquistavam o direito de votar.
O voto feminino foi reconhecido no Brasil por meio do Decreto 21.076, do então presidente Getúlio Vargas, que tinha em uma de suas bandeiras de governo a reforma eleitoral. O voto facultativo para as mulheres foi incorporado à Constituição de 1934, tornando-se obrigatório e equiparado ao dos homens em 1965. Muito anos antes do decreto de Vargas, a questão já era debatida no Brasil e no mundo.
Uma ideia revolucionária
Um marco de ruptura em práticas tradicionalistas foi a Revolução Francesa, em 1790, e a participação política das mulheres também foi discutida a partir do evento histórico. O ímpeto por um novo modo de governo e representatividade, que valorizava a vontade dos cidadãos em detrimento dos caprichos da monarquia, suscitou debates sobre o que seria de fato o cidadão.
Lançada um ano antes da revolução, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão afirmou que os homens nasciam livres e reivindicou um conjunto de direitos nos quais nenhum governante, sob qualquer motivo, podia privar o cidadão de ser livre, ter propriedade, ter segurança e de resistir à opressão. Paralelamente, em 1971, Olympe de Gouges publicou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, na qual criticava as limitações da outra declaração.
Olympe de Gouges queria oportunidades de trabalho iguais, participação na legislatura e educação de qualidade para as mulheres. O documento histórico causou estranhamento na época, mas não teve um impacto na sociedade revolucionária parisiense. Após enviar a sua Declaração à rainha Maria Antonieta em busca de apoio à causa, Olympe foi acusada de trair os ideais revolucionários e sentenciada à morte.
Constituição de 1824
No século XIX e XX, as mulheres precisaram lutar para serem reconhecidas como cidadãs e, assim, poderem ter mais direitos na sociedade. Especialmente na política, a resistência era grande pela entrada das mulheres.
No Brasil, a Constituição de 24 de março de 1824, outorgada por D. Pedro I, determinou que o voto seria um direito de cidadãos ativos, um conceito jurídico que tinha origem na política francesa. Cidadão ativos eram pessoas livres e maiores de 25 anos. Havia também um critério censitário limitante: renda anual de 100 mil réis para escolha do governo local e 200 mil réis para eleições de deputados, senadores e assembleias provinciais.
As mulheres eram cidadãs passivas, assim como crianças, loucos e outras categorias. Isso assegurava direitos civis, mas suprimia participação política.
Ao longo da monarquia brasileira, alguns expoentes da história do Brasil tentaram argumentar a favor da inserção da mulher na vida política. José Bonifácio e Manuel Alves Brancos, em 1831, elaboraram um projeto em que as chefes de família (viúvas ou separadas dos seus esposos) pudessem votar nas eleições primárias, uma espécie de conselho de governo local. Não foi sequer discutido.
O deputado e escritor José Martiniano de Alencar foi outro a defender a participação feminina, mesmo que de maneira gradual e com critérios de escolaridade. Mais conhecido por sua obra literária, José de Alencar contribuiu para o entendimento do pensamento político da época com ensaios sobre o sistema eleitoral brasileiro, reunidos em O Sistema Representativo.
Em março de 1880, o senador pela Bahia José Antônio Saraiva, assumiu a presidência do Conselho de Ministros com o propósito de elaborar um projeto de reforma da legislação eleitoral. A ideia de Saraiva era ter critérios de escolaridade mais rígidos, ainda considerando a renda do eleitor. O Decreto nº 3.029, de 9 de janeiro de 1881, instituiu o reconhecimento de títulos científicos, mas não foi preciso quanto à participação de mulheres.
A dentista Isabel de Souza Mattos, moradora de São José do Norte, na província do Rio Grande, solicitou e obteve o registro como eleitora no ano de 1887. Quando o primeiro governo republicano convocou eleições para a Assembleia Constituinte, em 1890, a doutora Isabel procurou a junta eleitoral com o documento de registro de eleitora emitido em 1887, mas o presidente da Mesa não deixou que ela votasse.
A tentativa de Isabel Mattos chamou a atenção de outras sufragistas para a necessidade de haver uma lei que não deixasse margem para dúvida da participação feminina na República.
Apesar de ainda não serem admitidas na política, as mulheres já atuavam em algumas profissões e tinham conquistado espaço na imprensa. O jornal A Família, criado pela professora Josefina Álvares de Azevedo, era um exemplo entre dezenas espalhados pelo país que faziam campanha pelo sufrágio feminino. A intenção era ganhar força para pressionar a Assembleia Constituinte de 1890 a considerar os argumentos pela inclusão das mulheres.
Constituição de 1891
O texto final da Constituição de 1891 não deixou claro que as mulheres tinham o direito de votar, mas também não as impediu. O texto final designava como “o eleitor” o cidadão apto a votar. Na dúvida, as juntas de alistamento eleitoral interpretaram literalmente a palavra “cidadão” contida na Carta e, desse modo, rejeitaram os insistentes pedidos de alistamento eleitoral de mulheres adultas e escolarizadas.
Um grupo especialmente ativo na luta política era formado por professoras, que eram cerca de cinco mil no Rio de Janeiro, segundo o Censo de 1920. Entre elas, a professora Leolinda de Figueiredo Daltro agiu para criar o Partido Republicano Feminino, que tinha como propósitos defender o sufrágio feminino e emancipar a mulher de todas as formas de exploração.
Registrado em 1910, o partido representava as sufragistas em audiências públicas com autoridades, em passeatas pelas ruas e em representações encaminhadas ao Legislativo. Seis anos após a criação do partido, Leolinda Daltro encaminhou à Câmara um documento questionando o entendimento da Câmara em que as mulheres podiam ser professoras, mas, ainda assim, não estavam aptas a participar da vida política.
“Se a lei lhes deu tão grande responsabilidade; se o Estado reconhece a sua capacidade para tão alta função, qual seja a de educar e instruir a mocidade; se a Escola Normal Oficial lhes conferiu um diploma que lhes habilita para esse espinhoso mister – como admitir que esse mesmo Estado possa negar-lhes capacidade para a escolha dos que devam ser os representantes do país nas assembleias legislativas e nos altos postos da administração pública? É o maior dos absurdos.”
Folheto de candidatura de Leolinda Daltro para a Assembleia Constituinte de 1933
Novos tempos
Nos anos seguintes, na década de 1920, diversos movimentos de contestação tiveram destaque. Em 1922, por exemplo, a Semana de Arte Moderna, o Movimento Tenentista e a fundação do Partido Comunista do Brasil colocaram em xeque a República Velha. Com a esperança de mudanças, a professora Maria Lacerda de Moura e a bióloga Bertha Lutz fundaram a Liga pela Emancipação Internacional da Mulher, um grupo voltado para a luta por igualdade política.
A Liga foi reformulada e teve os propósitos revistos para uma atuação mais ativa, com o nome Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, considerada a primeira sociedade feminista brasileira. Educação, garantias legislativas, direitos trabalhistas e políticos e participação na sociedade eram alguns dos objetivos da Federação. Ainda em 1922, elas organizaram o Primeiro Congresso Internacional Feminista.
Marie Curie e integrantes da Federação Brasileira para o Progresso Feminino
Em 1928, as feministas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino foram até Natal (RN) apoiar a decisão do recém-eleito governador do estado potiguar, Juvenal Lamartine de Faria. Ele era senador pelo Rio Grande do Norte e havia renunciado à cadeira para concorrer ao governo do estado.
Apoiador do voto feminino, o novo governador permitiu que as mulheres votassem nas eleições para o seu substituto no Senado. Mulheres correram para as sessões eleitorais e duas professoras, Celina Guimarães e Júlia Barbosa, disputaram o título da primeira eleitora potiguar.
Confiantes que o episódio poderia servir de prerrogativa para ampliar o voto feminino nacionalmente, as integrantes da Federação sobrevoaram Natal lançando panfletos sufragistas. O assunto era polêmico e voltou ao Senado, que julgou os votos das mulheres inválidos. Apesar de não produzir resultados concretos, o movimento sufragista obrigava cada vez mais os homens se posicionarem acerca da questão e promoviam o debate.
Bertha Lutz na cidade de Natal, em 1928, em campanha pelo voto feminino | Fonte: Acervo Nacional
Vargas e a Constituição de 1934
Em outubro de 1930, um grupo de políticos liderados por Getúlio Vargas chegou ao poder e destituiu o presidente da República Washington Luís. Quando Vargas deu sinais de que pretendia reformular as leis eleitorais do país, as feministas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino e de outras entidades procuraram conversar com o o chefe do Governo Provisório para que, finalmente, o direito de votar fosse estendido às mulheres brasileiras.
Em junho de 1931, Vargas recebeu as delegadas do Segundo Congresso Internacional Feminista no Palácio do Catete e manifestou simpatia à causa. Assim, Vargas constituiu uma comissão de juristas para reformar o sistema eleitoral brasileiro. O resultado dos debates foi a inclusão do voto feminino ainda restrições, similar ao projeto elaborado por José Bonifácio e Manuel Alves Brancos cem anos antes. Apenas viúvas ou solteiras com renda própria poderiam votar, preservando as tradições da família brasileira. Mulheres casadas precisariam da autorização dos maridos para votar.
As entidades protestaram e Vargas revisou pessoalmente o texto da comissão. O decreto do novo Código Eleitoral, publicado em 24 de fevereiro de 1932, acolheu o voto feminino sem condições excepcionais. O Artigo 2° do decreto estabelecia que: “É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na forma deste código”. As mulheres poderiam votar e ser votadas.
Ainda era preciso uma nova Constituição para garantir o direito conquistado por meio do decreto. Em maio de 1933, realizou-se as eleições para a Assembleia Constituinte. Ao todo, sete mulheres se candidataram, mas nenhuma foi eleita. A nova Constituição, que entrou em vigor em 1934, consolidou o voto feminino.
A primeira mulher em um cargo político eletivo foi a médica e professora Carlota Pereira de Queirós, eleita deputada federal em 1934. Carlota Queirós ficou conhecida durante o movimento armado em favor da reconstitucionalização do Brasil, quando assumiu a coordenação do Departamento de Assistência aos Feridos, responsável pela mobilização em favor dos soldados paulistas feridos no front. Quando veio a eleição, a doutora Carlota conquistou uma cadeira na Câmara com a terceira maior votação do estado, aproximadamente 176 mil votos.
Com informações de O Voto Feminino no Brasil, de Teresa Cristina de Novaes Marques