No momento em que o Brasil assume o vergonhoso 1º lugar mundial de número de mortos por dia para o Covid-19, o governo federal – com apoio de sua base parlamentar – aprova projeto de lei que privatiza a vacinação no país, criando um abismo social no qual quem têm dinheiro pagará para viver, e os que não têm ficam à mercê do vírus, numa roleta russa entre a vida e a morte.
 
O país é apontado pela Organização Mundial da Saúde como o atual epicentro da pandemia. Concentramos um terço das mortes diárias por Covid no mundo, mesmo tendo apenas 3% da população mundial. No mês de março, morreram mais pessoas vítimas da doença no Brasil do que na pandemia inteira em 109 países, que soma 1,6 bilhão de habitantes.
 
De acordo com dados oficiais do dia 06 de abril, 13.190.559 brasileiros foram diagnosticados com covid-19 e 336.947 morreram pela doença. Mas, informações de hospitais apontam que o número de mortes já pode ter passado de 443 mil, quase 120 mil a mais que as estatísticas divulgadas pelo governo Bolsonaro.
 
A vacinação da população caminha a passos lentos em razão do negacionismo e da irresponsabilidade do presidente da República e de sua equipe, que se recusaram a comprar imunizantes e sabotam a campanha de vacinação e outras medidas de prevenção. Apenas 20.850.120 pessoas receberam a 1ª dose de vacinas contra a covid, destas, 5.885.883 receberam a 2ª dose, dados do dia 06 de abril. Até agora, o Brasil vacinou em torno de 7% da sua população com pelo menos uma dose. O Reino Unido vacinou 45%, o Chile, 35%, e os EUA, 29%.
 
É nesse cenário que ocorre a aprovação do projeto de lei que privatiza a vacina, legalizando o fura-fila e desestruturando a ação do setor público. Afora as complexidades científicas e sanitárias, o debate sobre o desenvolvimento e comercialização da vacina para Covid-19 agora passa pelo enfrentamento entre os interesses privados e objetivos políticos.
 
A defesa da vida, que deveria ser o compromisso basilar dos Estados e das autoridades públicas, fica comprometida quando interesses econômicos e políticos particulares estão envolvidos na tomada de decisão – seja de empresas, institutos de pesquisa e universidades, e de governos.
 
No aspecto político, este seria o momento de unir esforços e colocar em marcha uma cooperação internacional para acelerar o desenvolvimento de vacinas e medicamentos, mas principalmente sua produção e distribuição para viabilizar uma vacinação em massa da população dos países mais fortemente atingidos pelo novo Coronavírus.
 
No aspecto econômico, isso implicaria necessariamente um pacto para colocar a vacina para a Covid-19 como bem comum, portanto livre de propriedade intelectual, estimulando a descentralização da produção, o que otimizaria a logística de distribuição e reduziria custos.
 
O que justifica essas duas medidas que vão contra a lógica comercial e política que impera atualmente, é o fato de estarmos diante de uma doença que, até o momento já matou mais de 2,89 milhões de pessoas no mundo, sendo que no Brasil mais de 340 mil vidas já foram perdidas.
 
Esse cenário, pior que muitas guerras, reforça a urgência de se compreender as políticas de saúde como instrumentos coletivos, produto de ações organizadas pelo Estado, para que a população – independentemente de sua posição econômica e social – tenha igualdade de acesso ao procedimentos médicos e aos medicamentos.
 
O Sistema Único de Saúde tem sido o eixo norteador das políticas de saúde no Brasil. A despeito do desmonte que vem sofrendo nos últimos anos, o SUS é a estrutura coletiva que pode garantir que todos e todas possam ter acesso à vacina contra a Covid-19.
 
Apesar dos ataques sistemáticos que as políticas de saúde têm sido alvo, a implementação de políticas como a Política Nacional de Assistência Farmacêutica, a Política Nacional de Medicamentos permitiu a estruturação de uma rede de profissionais e ações que visam a resolutividade das ações de saúde em nosso país.
 
E, neste momento crítico, visões mercantilistas e oportunistas emergem para defender que o setor privado oferte as vacinas em paralelo ao Sistema Único de Saúde. O argumento é sedutor: quem pode pagar se vacina no setor privado e “desafoga o sistema público”. Mentira.
 
Primeiro porque não há produção de vacinas suficientes para suprir o setor privado sem tirar doses do setor público. A capacidade de produção não permite. Cada dose “vendida” pelo setor privado, é uma dose a menos para as campanhas de vacinação organizadas pelas políticas de saúde.
 
E a vacinação em situações como as que estamos vivendo, de pandemia, não pode ser oferecida de forma aleatória. Diante de uma pandemia, que atinge de forma diferente segmentos distintos da sociedade, é preciso planejamento, definir grupos prioritários, estados, cidades, municípios. Segmentos mais fragilizados devem ser vacinados primeiro. E esse recorte não pode ser definido pela quantidade de dinheiro que a pessoa tem na sua conta bancária.
 
É o momento de fortalecer a ação coordenada pelo SUS, focar no Programa Nacional de Imunização e mais, adotar medidas para que os serviços privados de saúde se incorporem nos esforços da campanha de vacinação, de forma gratuita, atendendo a população.
 
A privatização da vacina aprovada na Câmara cria a desigualdade mais brutal que pode haver, porque os que não têm dinheiro para tomar a vacina entram na roleta russa da morte. E estes são justamente aqueles que compõem a população mais exposta e vulnerável: são os trabalhadores e trabalhadoras de serviços essenciais e de grupos prioritários – que podem ficar sem vacina – e a população trabalhadora mais humilde, pessoas que estão nas ruas coletando o lixo, fazendo a limpeza urbana, trabalhando nos supermercados, conduzindo o transporte público, entregadores de aplicativos e outros.
 
Não é tempo de ver cifrões. É tempo de salvar vidas.
 
*Ronald Ferreira dos Santos é farmacêutico, presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos, ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde