A revogação da LSN deve reafirmar o pacto democrático
Escreveu Paulo Bonavides sobre as garantias constitucionais, em seu célebre “Curso de Direito Constitucional”: “Existe garantia sempre em face de um interesse que demanda proteção e de um perigo que se deve conjurar”. É disso que se trata: o Brasil precisa de uma Lei de Garantia do Estado Democrático de Direito para afirmar a democracia como valor fundamental e exorcizar demônios do passado que insistem em atormentar o presente.
Revogar a Lei de Segurança Nacional (LSN) é uma necessidade, parte da superação de uma página infeliz de nossa história. Isso deve ser feito de maneira afirmativa, fortalecendo a opção da sociedade brasileira pela democracia e contra o arbítrio. Devemos reafirmar as palavras gravadas em mármore por Ulysses Guimarães: temos ódio e nojo da ditadura!
Desde a redemocratização do país a LSN foi utilizada aqui e acolá, mas no último período passou a ser usada intensamente, o que relançou o debate sobre sua adequação e atualidade. Há iniciativa no Legislativo para sua substituição e há movimentos no Supremo Tribunal Federal para avaliar se a lei foi plenamente recepcionada pela Constituição Federal de 1988.
A primeira proposta de superação da LSN foi da lavra do então deputado federal Hélio Bicudo, em 1991. Era a infância da presente experiência democrática que vivemos, momento de consolidação da nova ordem constitucional.
Anos depois, em 2002, o Congresso Nacional recebeu um projeto de lei, de iniciativa do Poder Executivo, que revogava a LSN e criava um título novo na Parte Especial do Código Penal, apresentada como Defesa do Estado Democrático de Direito. Condutas que ameaçassem a democracia seriam tipificadas. É digno de nota que esse trabalho foi fruto de um diálogo com importantes juristas. A essa também foram acrescidas outras propostas de lei. Em ambas as tentativas, nada aconteceu.
Nos últimos dias, o presidente da Câmara dos Deputados resgatou o PL encaminhado pelo Poder Executivo em 2002 e sugeriu sua votação em regime de urgência. Há um curioso, e bem-vindo, consenso na sociedade brasileira quanto à necessidade de revogação da LSN e da construção de instrumentos jurídicos para defender a democracia. Há versões preliminares sendo trabalhadas pela talentosa e competente deputada federal Margarete Coelho, do Progressistas-PI. A determinação do presidente da Câmara em votar a substituição da LSN deve ser saudada e a relatoria de uma parlamentar conhecida pela capacidade de produzir convergências deve ser celebrada.
Há, contudo, aspectos nesse processo que considero dignos de nota.
Matéria de tamanho relevo merece uma discussão com a dimensão de sua importância. É preciso aprofundar debates no Legislativo e junto à sociedade. A pandemia determinou um padrão de funcionamento precário do Congresso Nacional –aos poucos temos encontrado caminhos para maior eficiência, incluindo audiências públicas virtuais, avanços, mas a lei que vai substituir a LSN não deve ser votada de afogadilho.
A lei que oferecerá os instrumentos jurídicos para a defesa do Estado Democrático de Direito ser um novo “Título” do Código Penal traz uma carga simbólica negativa. Não é positivo associar a tutela da democracia ao direito penal.
Nas últimas décadas, o punitivismo penal ocupou o lugar de panaceia para os problemas nacionais e avançou demasiadamente, a ponto de ser base para uma operação judicial que se transformou na fonte da maior instabilidade política, econômica e institucional da história do Brasil. Como sabemos, as discussões sobre direito penal devem ser situadas historicamente, e importa termos sensibilidade para os dias que correm.
Causa preocupação, sempre, a criminalização da luta política. Não concordo com penalizar atos que, genericamente, “dificultem o poder constituído” ou ainda atrapalhem o direito de ir e vir. A depender da lente de quem olha, abre uma enorme possibilidade para restringir a liberdade de manifestação. Mesmo a caracterização de “atos violentos” requer cuidados, afinal, como diria Brecht, “do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.
Reconheço que leis extravagantes, por vezes, produzem um cipoal legislativo que tornam nosso sistema legal incompreensível e instável, o que deixa muito espaço para a judicialização. Ocorre que nesse caso penso ser adequada uma lei singular. Só uma lei específica nos permite ter uma parte dedicada a afirmação de conceitos e valores, inspirados na Constituição, e delimitador para eventual discussão judicial.
Seria um erro caso a norma em debate siga com tipos penais abertos, aliás, como é característico da LSN. Aqui, a amplitude desses tipos pode se configurar numa ameaça a direitos que, supostamente, se pretende preservar, como direito de manifestação. E o temor não é abstrato, a se considerar os acontecimentos e processos judiciais desde 2013. Noutras palavras, é preciso estarmos alertas para que a nova lei não seja ferramenta para criminalizar a luta popular e os movimentos sociais.
É hora de revogar a Lei de Segurança Nacional e substitui-la por uma Lei em Defesa do Estado Democrático de Direito, que mereça esse nome. É desse modo que vamos enterrar esse entulho autoritário e não convertê-lo num cadáver insepulto.
*Orlando Silva é deputado federal pelo PCdoB-SP. Membro do Comitê Central do PCdoB