No século XX, uma vez consolidado o Estado liberal moderno com base numa divisão tripartite de poder e na definição de um elenco de direitos e garantias individuais, algumas das leis de defesa da democracia foram pervertidas. Uma perversão ocorreu na Europa entre as décadas de 1920 e 1930 e culminou com a ascensão do nazismo, envolvendo uma discussão sobre os poderes de um governante soberano. Em que medida ele teria de se submeter às leis que editava? Ou estaria, então, acima delas? Carl Schmitt (1888-1985), por exemplo, um dos teóricos do nazismo, questionava a concepção liberal do Direito como um conjunto de normas abstratas capaz de se sobrepor às próprias instituições que o legislavam. O que deveria prevalecer sobre a Constituição e as leis, segundo sua visão antiliberal decisionista, era o poder do presidente, aclamado por seu povo como chefe das Forças Armadas e supremo juiz, legislador e governante.

Outra perversão ocorreu na América Latina, na época da Guerra Fria. Foi a época das ditaduras militares que, em nome da luta contra o comunismo, converteram as leis de defesa da democracia em leis de “segurança nacional”. Eram leis com tipos penais abertos, o que permitia as interpretações mais absurdas conforme a conveniência dos ditadores de plantão. Também confundiam a figura do chefe do Executivo com as instituições governamentais e tipificavam como crime contra a honra a conduta de quem os criticava.

Esse é o caso da Lei de Segurança Nacional vigente no Brasil (Lei 7.170), que trata dos crimes contra “a segurança nacional” e a “ordem política e social”. Ela foi concebida fundindo patriotismo com submissão, na base do “Brasil: ame-o ou deixe-o”, valorizando uma ideia de responsabilidade coletiva; o que se punia não era restritamente o terrorismo como crime tipificado, mas quase todo tipo de antagonismo ao governo de plantão. Ao conceituar juridicamente as condutas que punham em risco a segurança nacional, a LSN recorria a conceitos polissêmicos, sujeitos não a interpretações tecnicamente jurídicas, mas a interpretações arbitrárias fundadas em sentimentos de responsabilidade funcional do regime militar.

A LSN foi editada em 1983, quando os militares já estavam perdendo as condições de governabilidade. Até então, a legislação em vigor punia delitos contra a honra do chefe do Executivo. Permitia ao ministro da Justiça mandar apreender publicações por meio de atos administrativos. Autorizava-o a impedir conferências internacionais no País e classificava panfletagem como crime de ideia. Após 1983 e, principalmente depois da redemocratização, em 1985, a LSN foi usada de modo pontual.

Voltou a ganhar destaque quando Bolsonaro a usou para criminalizar atividades jornalísticas e intimidar seus opositores, com base no artigo 26, que prevê pena de reclusão de um a quatro anos para quem caluniar ou difamar o presidente da República. E, também, quando o Supremo Tribunal Federal instaurou inquérito para apurar afrontas aos seus membros por bolsonaristas e quando organizações da sociedade civil pediram à corte que declarasse a LSN inconstitucional.

É paradoxal, mas o STF e Bolsonaro colocaram na agenda, juntos, o debate sobre o enterro de uma lei antidemocrática de segurança nacional e sobre a necessidade de novas medidas jurídicas para preservar a democracia. Em meio à avassaladora crise de saúde pública – da qual resultou a queda do nível de atividade econômica – e com a arena política tensionada por um presidente despreparado, esse é o desafio que o Brasil enfrenta: de um lado, preservar o Estado democrático de direito, tipificando como crime o incentivo à afronta dos Poderes constituídos pelas Forças Armadas; de outro, editar regras com tipos penais menos abertos, para impedir interpretações enviesadas – como as que têm sido feitas pelo obscuro chefe da AGU.

Proteger as garantias fundamentais sempre foi a preocupação dos constitucionalistas com vocação democrática. A ponto de muitos, especialmente no confronto europeu entre liberais e absolutistas no século XIX, e tardiamente no Brasil, no século XX, terem invocado como bandeira um grito romântico – “Constituição ou morte, democracia já!”. Nos sombrios dias atuais, esse grito talvez pudesse ter sido adiado para outro momento, tais os riscos que implica hoje: trocar um texto constitucional democrático pelo arbítrio de um líder que acredita ser a verdadeira e única Constituição.

Quando Bolsonaro usou a LSN para calar seus críticos, imaginou-se que o STF poderia revogá-la, por vício de constitucionalidade. Contudo, isso poderia causar uma perigosa lacuna legislativa. Em decorrência do acirramento político, a arena parlamentar também parecia não oferecer condições para que o Congresso aprovasse às pressas uma lei para substituir a LSN. Se já não é fácil conceber uma lei de defesa do Estado democrático de direito em tempos de estabilidade institucional, no momento de tensões em que o País se encontra é ainda mais difícil elaborar um texto legal capaz de se adaptar, por vias hermenêuticas, às mudanças políticas e sociais. Isto porque, a exemplo da Constituição, uma lei dessas não é apenas seu texto. É, também, uma prática.

Nesta conjuntura conturbada, a Câmara acabou aprovando propostas que haviam sido apresentadas em 1991 e 2002, as quais ainda têm de passar pelo Senado. Agindo assim, a Câmara revogou a LSN ao mesmo tempo em que evitou a situação de vácuo legal, introduzindo na legislação penal um rol de crimes contra a democracia – como golpe de Estado, atentado à soberania, espionagem e sabotagem. Mas, apesar da importância dessa iniciativa, a Câmara manteve tipos penais abertos, não fechando a porta para a criminalização, por exemplo, de ofensas contra a honra de algumas autoridades, bem como de opiniões políticas e da ação de movimentos sociais. Assim, é preciso saber se as novas medidas deterão a tendência de erosão gradual à democracia brasileira, rumo a um autoritarismo dissimulado.

Essa é marca de uma democracia iliberal, viabilizada por artimanhas de autocratas com o objetivo de usar regras democráticas para aprovar medidas antidemocráticas, minando assim as liberdades públicas. Essa estratégia é justificada em nome da necessidade de “poderes emergenciais” para certas situações. Não foi por acaso que, no dia em que Bolsonaro demitiu a cúpula das Forças Armadas, gerando uma crise institucional, um dos deputados de sua confiança apresentou um projeto propondo um instituto jurídico chamado “Mobilização Nacional”. O objetivo era conferir ao presidente poderes para intervir na economia, requisitar bens, convocar civis e militares e assumir o controle das PMs estaduais.

O projeto tem a mesma inspiração da LSN, a ponto de permitir ao presidente da República especificar “o espaço geográfico do território nacional” em que poderá atuar em momentos de crise, atropelando governadores. Ainda que tenha sido derrubado na Comissão de Constituição e Justiça, sua apresentação também coincidiu com a instauração, pela AGU, de mais um inquérito com base na LSN contra um crítico de Bolsonaro. Lido com atenção, o projeto também funde – como faz a LSN – o nacional com o jurídico e com o militar, o que explica a obsessão de Bolsonaro em falar no que chama de “meu exército”. Caso tivesse sido aprovado, esse projeto teria reposto – em nome do respeito à “ordem política e social” – parte do que estava sendo suprimido com a revogação da LSN.

Por isso, não se pode esquecer uma afirmação feita no início do século XVIII e atribuída a Thomas Jefferson, um dos autores da Declaração de Independência dos Estados Unidos: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”.

*José Eduardo Faria é professor titular da Faculdade de Direito da USP
**Publicado originalmente no Jornal da USP