O poeta é a antena da raça, ensinou no século passado o americano Ezra Pound. Esqueça-se a postura ideológica do autor de Os Cantos e vamos nos ater à frase. A pertinência e a atualidade são enormes, ainda mais na situação atual. Como? Explica-se. Em 1980, ainda em meio à ditadura militar, o poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna escreveu no poema Que País é Esse?:

Uma coisa é um país,  
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,  
Outra um regimento.
Uma coisa é um país,
Outra o confinamento. 

Hoje, pouco mais de 40 anos depois, a pergunta ressoa forte por todos os quadrantes nacionais. Afinal, que País é esse?

O problema é que, sem o Censo Demográfico – adiado do ano passado para este e, por enquanto, cancelado por falta de verba –, a resposta se torna cada vez mais difícil de se dar. E sem essa resposta, a implementação de políticas públicas, por exemplo, fica extremamente comprometida. E justamente no momento em que o País vê os números da covid-19 tomarem contornos cada vez mais trágicos e com a economia, a saúde e a educação desnorteadas.

Éramos cerca de 200 milhões de almas em 2010. E hoje, quantos somos? Sabe-se que somos, miseravelmente, menos 400 mil devido ao coronavírus. Mas quantos somos?, deve-se repetir. Isso, só o Censo pode responder. “Realizado a cada dez anos, o Censo Demográfico brasileiro é a única pesquisa que coleta dados como o número de habitantes em todo o País, a situação de vida e características dessa população em níveis muito internos, além de ser o primeiro a tratar do tema da fecundidade e o único na América Latina a colher informações sobre renda. As informações do Censo orientam a criação de políticas públicas e investimentos por parte dos governos ou entidades privadas”, esclareceu o Jornal da USP em reportagem publicada no último dia 27 de abril.

Mas, por mais importante e essencial que seja, o Censo programado para 2020 não andou – culpa do novo coronavírus. Ficou para este ano, mas continua patinando e corre seríssimos riscos de não acontecer. Isso porque o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, responsável pela coleta das informações dos brasileiros, viu as 200 mil vagas temporárias para agentes se esvaírem diante do profundo corte de orçamento aprovado recentemente pelo Congresso: 96% dos recursos previstos para a realização da pesquisa foram cortados, e o instituto viu sua verba cair de R$ 2 bilhões para pouco menos de R$ 72 milhões. E caiu ainda mais, quando o governo federal retirou mais uma fatia de R$ 17 milhões, praticamente inviabilizando qualquer possibilidade de realização do Censo em 2021. Na verdade, o governo chegou realmente a cancelar a pesquisa. “A grande questão é avaliar qual é o impacto orçamentário real do Censo no montante do orçamento brasileiro. É preciso pensar nele como um investimento, ou seja, eventuais custos retornam na forma de crescimento econômico e melhoras públicas mais focalizadas”, já alertava para o Jornal da USP no Ar, da Rádio USP, em 2019, o professor Rogério Barbosa, mestre e doutor em Sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da USP.

E a situação só não está completamente perdida porque o ministro Marco Aurélio Melo, do STF, determinou que o governo adotasse “medidas voltadas à realização do Censo”, em uma esteira de ações contrárias à determinação governamental que inclui um manifesto público assinado por ex-presidentes do IBGE, alertando para os riscos da falta de Censo – e de bom senso, repita-se. “Nosso último Censo ocorreu em 2010, e, sem ele, o Brasil se junta ao Haiti, Afeganistão, Congo, Líbia e outros Estados falidos ou em guerra que estão há mais de 11 anos sem informação estatística adequada para apoiar suas políticas econômicas e sociais”, alerta o manifesto. A determinação de Marco Aurélio vai na mesma linha de argumentação. “Como combater desigualdades, instituir programas de transferência de renda, construir escolas e hospitais sem prévio conhecimento das necessidades locais?”, questionou o ministro do Supremo, devolvendo o problema para o Planalto. “Sem os dados do Censo não dá para mapear o analfabetismo, não dá para saber sobre escolaridade, não dá para saber onde se precisa criar escolas”, fez coro, em entrevista recente, o historiador, professor e cientista político Luiz Felipe de Alencastro.

“Há uma série de questões que decorrem do Censo até a administração pública. É o Censo que serve de base para os repasses do Fundo de Participação dos Municípios, que é uma transferência constitucional da União para os Estados e o Distrito Federal. Ou seja, os municípios e os Estados não vão saber como eles vão poder organizar a administração pública.”

 

Tabela evolução Censo Demográfico (Foto: Arquivo)

Bússola social

Além do mais, especialistas lembram que uma base fundamental e estruturada de dados viabiliza parcerias com organizações internacionais, como Banco Mundial, ONU e a OMS. Sem esses dados concretos e avalizados, a realização de possíveis convênios fica comprometida. Ou seja: o País, sem Censo, é como um transatlântico navegando em meio a uma neblina densa e sem bússola. No caso, uma bússola social que indica o norte para o melhor combate contra as mazelas do País. Que, frise-se, não têm sido poucas ultimamente.

“Dados oriundos do recenseamento seriam essenciais para o planejamento de políticas de saúde e de distanciamento social, de otimização dos transportes e de outras maneiras de reduzir o contágio da covid-19”, afirmou em finais de abril Eduardo Marques, pesquisador do CEM e professor do Departamento de Ciência Política da FFLCH da USP, ao repórter do Jornal da USP Gustavo Zanfer. “Um outro exemplo é a questão da densidade habitacional e das áreas de precariedade habitacional, como favelas e loteamentos clandestinos irregulares, que têm o Censo como única ferramenta de pesquisa que consegue descer a esse nível. Poderíamos fazer uma customização de políticas”, reiterou o professor. A realização do Censo vai muito – muito mesmo – além de milhares de pessoas responderem a perguntas em uma pesquisa sobre a realidade das famílias brasileiras.

Mais do que uma foto tirada por uma grande angular, essa realidade do País é colocada em um microscópio e esmiuçada como uma boa e atenta pesquisa deve fazer. Sem esse retrato social, sem essa imagem no espelho, o Brasil perde chances de se conhecer melhor, as políticas públicas continuam engessadas ou inexistentes. E a pergunta corre o risco de permanecer indefinidamente sem resposta: que País é esse?

*Publicado originalmente no Jornal da USP