Renato Rabelo: Ho Chi Minh, revolucionário exemplar do século XX
Em 19 de maio de 2020, o povo vietnamita e os revolucionários de todo o mundo celebram os 130 anos do nascimento de Ho Chi Minh (“aquele que ilumina”), nascido como Nguyen Sinh Cung em 1890, no vilarejo de Kim Lien, região central do Vietnã. Tio Ho – como é carinhosamente conhecido no Vietnã – deu curso à extraordinária trajetória histórica de seu povo, que jamais se submeteu à dominação estrangeira e soube enfrentar sucessivamente as invasões no século XIX de mongóis e de dinastias chinesas e, na era moderna – sob a liderança de Ho Chi Minh –, lutou pela independência nacional, enfrentando três imperialismos: o francês, o japonês e o norte-americano. Seu legado permanece atual e, sob sua contribuição, a República Socialista do Vietnã mira, em meados do presente século, expressar as gloriosas jornadas de luta empreendidas por seu povo sob a égide de um grande Estado socialista moderno, industrial e democrático.
Ho Chi Minh foi – sem margem para dúvidas – um dos mais sofisticados revolucionários surgidos no século XX. Se para Maquiavel a política ganha status de ciência, em Lênin a tática – movimento imediato da luta dos trabalhadores – foi alçada ao grau de ciência. Em Ho Chi Minh, essa ciência da tática ganha contornos práticos que merecem destaque em função da complexidade e do nível de barbárie impostos pelo capitalismo ao socialismo, sobretudo na Ásia. Ho Chi Minh é causa e consequência do que Lênin chamou em 1913 de “O Despertar da Ásia”, onde ele desenvolve sua tese sobre o imperialismo, apontando o seu continente como o local em que o imperialismo toma contornos mais trágicos e sanguinários. Nesse contexto de luta de classes acirrada na Ásia é que Ho Chi Minh e seu legado devem ser localizados.
Ho Chi Minh foi um homem que acordou para a realidade cruel de seu país em contato com seu povo e o mundo. Desde 1911 viajando como cozinheiro de um cargueiro francês – tendo passado inclusive muitos dias no litoral brasileiro, no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro –, Ho Chi Minh toma consciência da junção entre racismo e imperialismo. Viveu até 1915 em Londres e em 1917 partiu para a França, exercendo o ofício de jardineiro, onde no final deste mesmo ano contribui para a fundação do Partido Comunista Francês. Em meio a debates e crises ideológicas da esquerda francesa sobre o papel do país na Ásia e na África, Ho Chi Minh corajosamente expõe o caráter reacionário da ocupação francesa da Península da Indochina. Cônscio do papel de seu país na luta anti-imperialista internacional, em 1923 parte para a URSS onde se forma em táticas militares e se torna um militante do Comintern.
Participação de Ho Chi Minh na Internacional
Em sua trajetória revolucionária, Ho Chi Minh ou Nguyen Ai Quoc (um de seus 174 codinomes clandestinos) participou da 22ª sessão do V Congresso da Internacional Comunista, em 1º de julho de 1924, onde tomou a palavra depois da intervenção de Manuilski – então dirigente da Internacional e do Comitê Central do PC da União Soviética –, que havia criticado a atividade insuficiente do PC da França na propaganda nas Colônias e mesmo em Paris em favor da independência colonial:
“– Contento-me em complementar as críticas do camarada Manuilski. Os nove países colonizadores, quer dizer, Grã-Bretanha, França, Estados Unidos, Espanha, Itália, Japão, Bélgica, Portugal e Holanda, possuem juntos, uma população de 320 milhões e 657 mil habitantes e uma superfície de 11 milhões e 470 mil km2. Estes países exploram um domínio colonial cuja extensão supera os 55 milhões e 500 mil km2, com uma população de 560 milhões de almas. Os países colonizados são, pois, cinco vezes maiores que os países colonizadores, e a população destes últimos é 3/5 inferior à dos primeiros”.
“Portanto, é absolutamente necessário que nossos partidos de Grã-Bretanha e França tenham uma política mais ativa e enérgica para as Colônias; senão a consigna “ação de massas” continuará sendo estéril. Melhor dizendo, até hoje têm sido inoperantes. A imprensa do Partido não destaca este grave problema no espaço e importância que merece”.
A fundação do PC da Indochina
Após essa participação na Internacional, na União Soviética, Ho Chi Minh foi enviado para Cantão, na China, onde organizou um movimento revolucionário entre os exilados vietnamitas. Foi forçado, na ocasião, a deixar o país quando as autoridades locais passaram a reprimir as atividades comunistas na região. Mas Ho voltou à China onde fundou com outros revolucionários o Partido Comunista da Indochina em 1930. Permaneceu em Hong Kong como representante da Internacional. Voltou ao Vietnã e passou a organizar a resistência, do ponto de vista político e militar.
Depois de conquistada a liberdade, Ho Chi Minh ainda cumpriu tarefas como conselheiro militar das forças armadas da China e, com a invasão do Vietnã pelas tropas japonesas em 1941, organizou o movimento pela independência nacional, conhecido como Viet Minh, para lutar contra os japoneses. Quando o Japão se rendeu e perdeu a guerra em 1945, o Viet Minh assumiu o poder e proclamou a República Democrática do Vietnã, em Hanói. Ho Chi Minh tornou-se o presidente do país. A França, entretanto, não concedeu independência ao Vietnã e por longos oito anos ainda o Viet Minh lutou contra as tropas francesas a partir das montanhas e dos campos de cultura do arroz.
Finalmente, na famosa batalha de Dien Bien Phu, em 1954, os vietnamitas, sob a direção do general Vo Nguyen Giap, expulsaram as tropas francesas do país, dando fim a uma ocupação colonial que se estendeu por 96 anos. Na Conferência de Paz de Genebra, no entanto, o Vietnã foi dividido em dois. O Norte, sob comando do Viet Minh e de Ho Chi Minh, passou a construir o socialismo, enquanto o Sul, ligado aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos, tinha capital em Saigon.
A partir de 1960, a guerra de guerrilhas estalou no Sul contra o regime títere. Ho Chi Minh a esta altura apresentava uma saúde muito precária e faleceu em 3 de setembro de 1969, passando suas tarefas para novos dirigentes como Phan Van Dong e Vo Nguyen Giap. Em sua honra, o Partido Comunista do Vietnã nomeou a antiga cidade de Saigon como Ho Chi Minh. Ho, o fundador do comunismo no Vietnã, foi a verdadeira alma da revolução. Suas qualidades pessoais, seu exemplo de simplicidade, integridade e determinação revolucionária influenciam ainda hoje as gerações do movimento progressista e avançado do mundo.
O pensamento militar de Ho Chi Minh
Pela própria natureza de suas tarefas históricas, Ho Chi Minh teve de se especializar nas artes militares – e desenvolver esta capacidade a partir das experiências dos povos e da doutrina marxista-leninista, tendo em vista a aplicação concreta nas condições do Vietnã. Mais especificamente Ho Chi Minh precisou enfrentar a questão do domínio colonial, das lutas contra o imperialismo. Partiu em sua elaboração também da herança tradicional de luta do povo vietnamita e indochinês contra todo tipo de invasão estrangeira.
A percepção fundamental de seu pensamento militar foi a de conceber a luta contra o colonialismo e o neocolonialismo no contexto mundial de luta dos povos por sua libertação. A luta no Vietnã contra a invasão japonesa, os 98 anos de domínio colonial francês e sua substituição pela invasão imperialista norte-americana sofreram a influência internacional da luta dos povos contra seus respectivos dominadores, como também a resistência na Península indochinesa exerceu impacto importante no mundo inteiro. A vitória vietnamita na batalha de Dien Bien Phu, por exemplo, teve uma projeção extraordinária na luta contra o colonialismo. O período de 1954 ao final dos anos 60 do século passado foi palco para mais de 40 nações que se tornaram independentes. A ofensiva contra o colonialismo libertou mais de um bilhão de pessoas em mais de 100 países.
Ante a tomada de consciência dos povos oprimidos e as derrotas e o fracasso do velho colonialismo, os imperialistas, encabeçados pelo imperialismo estadunidense, viram-se obrigados a recorrer a um colonialismo disfarçado: o neocolonialismo. O neocolonialismo se constitui assim numa política imperialista dirigida a salvar o colonialismo de sua liquidação total e impedir os países de alcançarem sua independência verdadeira, a frear o movimento de libertação nacional e as tendências rumo ao socialismo.
Nessa mesma esteira, já citada acima, de compreensão dos conceitos de imperialismo e neocolonialismo, outra grande ideia foi desenvolvida por Ho Chi Minh: a revolução pela libertação nacional deve ser travada pari passu com a luta pela libertação social. Nesta questão Ho Chi Minh procurou destacar ser preciso uma aplicação criativa das teorias revolucionárias em cada país – de acordo com suas particularidades históricas e culturais. Seguindo esta orientação foi possível explorar as contradições estratégicas entre as grandes potências, inclusive entre as tendências internas reacionárias dominantes nos próprios países imperialistas agressores.
Assim foi possível descortinar a possibilidade de vitória de um pequeno país dominado pelo colonialismo sobre um império colonial poderoso, mais forte e melhor equipado do ponto de vista militar. Ho Chi Minh concebeu a resistência como uma guerra insurrecional – uma guerra de todo o povo oprimido. A luta de resistência deveria levar em consideração as posições de força, as oportunidades, as condições do terreno e de clima e a união do povo. Este último fator foi fundamental em função do patriotismo, da tradição de luta contra os agressores estrangeiros, a consciência política e organizativa que se transformou numa verdadeira muralha de aço contra os inimigos da pátria. De uma forma mais abrangente, a luta se desenvolveu em várias frentes ao mesmo tempo: na esfera militar propriamente dita, no plano político, econômico, cultural e diplomático.
Por fim, o pensamento militar de Ho Chi Minh se baseou no conceito segundo o qual a construção de um exército revolucionário antes de tudo é uma tarefa política. Ho Chi Minh sempre destacou a necessidade de o Exército estar sob estrito comando do Partido em todos os sentidos. O fator decisivo neste sentido é construir e consolidar o sistema de organização partidária desde as células de base até o Comitê Central, com quadros políticos e instâncias de direção sendo o Exército vinculado diretamente ao trabalho político. Os quadros políticos e militares devem estar unidos por laços de companheirismo e solidariedade. Ho Chi Minh concebia o povo como a base e o verdadeiro pai do Exército. Por isso, o Exército deveria lutar e ajudar o povo em suas tarefas. E vice-versa. O povo é chave na sustentação popular das atividades militares, com o apoio decisivo das organizações de massa.
Disse Ho Chi Minh: “Todos vocês, do Comitê Central até as organizações de base, devem preservar a unidade partidária como se fosse a menina de seus olhos”, e que a realidade histórica de décadas de atividade do Partido Comunista do Vietnã mostrou que sempre que a organização partidária primou pela solidariedade interna, mesmo quando havia dificuldades de ação de suas lideranças entre as massas, foi possível superar todos os problemas. Ao contrário, se não houvesse solidariedade real no Partido, ele não teria as condições de liderar o movimento de massas, tornando-se fraco, com seu prestígio em queda, e perderia a fé do povo em sua capacidade política.
Ao lado desta preocupação com a construção partidária, Ho Chi Minh procurou desenvolver a solidariedade com os países vizinhos, com as nações socialistas e com os países da comunidade internacional, inclusive com os movimentos progressistas e democráticos dos próprios países imperialistas. Esta sempre foi uma questão vital do pensamento político e militar do líder vietnamita.
Na atualidade mundial – na busca pela paz e na luta contra as guerras de ocupação neocolonial e imperialista, as bandeiras da independência nacional, pela democracia e o progresso social, nas tarefas do desenvolvimento econômico –, é fundamental este espírito de cooperação internacional entre os povos em desenvolvimento, adotado pelos companheiros vietnamitas.
O legado de Ho Chi Minh
Ho Chi Minh foi um revolucionário exemplar. Foi um homem de gênio suficiente para colocar em xeque não somente o poder imperialista sobre seu país, mas também influenciou o movimento progressista e avançado no mundo. Capaz de perceber a diferença entre uma superestrutura putrefata e uma sociedade pulsante, Ho Chi Minh teve o mérito de colocar o povo norte-americano contra uma guerra cruel, injusta e sem fundamentação racional. Esse seu exemplo guarda grande significado. Uma ditadura militar internacional foi montada nos Estados Unidos como consequência de ataques terroristas contra não somente o Estado imperialista, mas também contra os próprios habitantes do império. Eis uma diferença de Ho Chi Minh: trabalhar a luta política partindo de uma concepção científica da luta em si.
Por outro lado, fica uma questão: o que é o Vietnã hoje? Apesar de mais de um quarto de seu território estar inutilizado para a prática da agricultura – resultado de ataques selvagens por aqueles que hoje defendem os “direitos humanos” –, o Vietnã em termos absolutos é o país do mundo com maior média de crescimento econômico da última década. Seu objetivo para 2020 está na eliminação da miséria, porém sob uma larga base econômica. Sua pauta de exportações sofreu uma enorme mudança nos últimos anos, transitando largamente de um país exportador de arroz, café e outros gêneros alimentícios para outro perfil econômico, pronto para acrescentar o “valor agregado industrial” em sua pauta de exportações. Se a própria revolução vietnamita por ele dirigida foi uma demonstração da capacidade do marxismo em se adequar a diferentes realidades, o recente desenvolvimento do país acelerado após 1986 é expressão desta forma não dogmática de se enfrentar a realidade.
Na luta diária dos povos do mundo, no exemplo heroico de luta do povo vietnamita e no robusto desenvolvimento desse lindo país é que se encontra a historicidade deste grande homem e revolucionário exemplar.
Muito nos honra ser signatários das bandeiras defendidas por Ho Chi Minh à frente de seu povo e da nação vietnamita!
Nós, do Partido Comunista do Brasil, temos em grande conta o legado deste artesão genial da política revolucionária!
José Renato Rabelo
Presidente da Fundação Maurício Grabois
A versão original deste texto foi apresentada ao seminário Patrimônio do pensamento de Ho Chi Minh na época atual, realizado em 12 de maio de 2010 no Instituto de Política e Administração de Hanói, na capital do Vietnã. No evento, o PCdoB foi representado pelo secretário de Relações Internacionais, Ricardo Alemão Abreu. À época, Renato Rabelo presidia o Partido. Ver em: https://url.gratis/0iP2X.