Eletrobrás: negociata e destruição
O processo de privatização da Eletrobrás evidencia, de forma trágica e cristalina, a irresponsabilidade criminosa através da qual a maior parte das elites brasileiras se relacionam com o patrimônio público e com o seu próprio país. Trata-se de mais um episódio de rapinagem sobre o Estado, nessa tentativa repetitiva de promover acumulação de capital e aumento de riqueza privada por meio de apropriação facilitada das empresas estatais.
Esse movimento tem início, de fato, ainda na longínqua década de 1980 e foi reforçado com o simbolismo trazido pelo governo Collor, a partir de 1990. Não por acaso boa parte do mundo estava sendo bombardeado pelas ideias hiperconservadoras do neoliberalismo, que preconizava a redução maximalista da dimensão do setor público nos Estados nacionais. Dentre os itens mais apreciados no extenso cardápio apresentado pelo chamado Consenso de Washington como recomendação aos governos, a privatização chamava a atenção pela recorrência da presença e pela magnitude dos negócios envolvidos.
Ocorre que a crise econômico-financeira de 2008/9 recolocou as ideias liberalóides em seu devido lugar. Os governos dos principais países capitalista abandonaram os pressupostos da cartilha neoliberal e passaram a adotar como elementos de política econômica tudo aquilo que o FMI, o Banco Mundial e demais organizações multilaterais haviam condenado ao longo de décadas. Para evitar que os efeitos daquele momento de grandes dificuldades em âmbito global comprometessem mais gravemente suas economias, a União Europeia, os Estados Unidos e os demais países ricos recorreram ao retorno do Estado como agente econômico para superar a crise.
Privatização não é solução
Logo em seguida, a emergência da crise do covid-19 escancarou a impossibilidade de que apenas as chamadas “soluções de mercado” fossem por si só suficientes para resolver os problemas sanitários, sociais e econômicos que afetaram o mundo inteiro. Assim, a partir de 2020, o paradigma do neoliberalismo é mais uma vez abandonado e o retorno da presença do Estado na economia é visto com ar de naturalidade por aqueles agentes e setores que propunham sua extinção até bem pouco tempo atrás. Antigas heresias como “elevação do gasto público”, aplicação de “política industrial”, utilização da presença de “empresas estatais”, dentre outras, passam a frequentar – de forma positiva – os discursos das personalidades políticas e as páginas e as telas da grande imprensa.
Mas no Brasil, as classes dominantes preferem se manter arraigadas ao negacionismo e ao terraplanismo, também no domínio da teoria econômica e das políticas públicas. O ajuste fiscal de natureza austericída segue como se nada houvesse mudado na prática e no discurso dos países centrais. Com Paulo Guedes no comando da economia, o liberalismo abandonado lá fora segue ovacionado e idolatrado aqui dentro. Dentre as propostas do superministro, sempre ganhou destaque a venda das empresas estatais.
Pois agora o Congresso Nacional parece ter se rendido aos desejos do banqueiro com caneta ministerial, acelerando os trâmites com vistas a facilitar as negociatas com o patrimônio histórico das grandes e simbólicas empresas do governo federal. A bola da vez foi a Eletrobrás. O processo de tramitação da Medida Provisória (MP) 1.031/21 foi marcado por uma série de atropelos e aberrações. Para além da autorização para venda da “holding” estatal federal do setor elétrico e de todas as suas subsidiárias, o poder concedido aos integrantes do Centrão no interior do legislativo terminou por incluir uma quantidade enorme de itens estranhos os projeto original, os chamados “jabutis”.
Bons negócios para o capital e miséria para o povo
Como é amplamente sabido, a prática do fisiologismo ultrapassa a mera exigência de verbas e cargos do governo de plantão. Para além da chantagem explícita exercida sobre o chefe de governo para aprovar as medidas de seu interesse, esses parlamentares se utilizam da sua condição de poder sobre determinados itens da pauta para negociar interesses. No caso, foram os “lobbies” de setores privados que viam na MP a oportunidade de turbinarem seus negócios. Assim, por exemplo, foram incluídos dispositivos obrigando o governo a recorrer aos setores de gás, carvão e demais matérias-primas utilizadas para geração de eletricidade pelas usinas termelétricas. Essa conta vai cair no colo das contas públicas e no bolso do consumidor.
Por outro lado, é inegável que a recessão atual representa o pior momento para a venda de ativos econômicos, sejam eles físicos ou financeiros. A depressão nos mercados via de regra rebaixa os preços dos patrimônios em negociação. Assim, caso insista mesmo na privatização da Eletrobrás, o governo Bolsonaro vai abrir mão de empresas federais a preços bastante reduzidos, o que significa um péssimo negócio para o setor público e um ótimo arranjo para o capital privado. Isso significa que nem mesmo o surrado e falacioso argumento da necessidade de recursos para ajudar a resolver a questão fiscal sobrevive ao debate. Aliás, todos os processos privatizantes anteriores nunca solucionaram a entrada de recursos nos cofres públicos quando da transferência das empresas para o setor privado.
O capital decide investir em um setor ou uma empresa apenas com o objetivo de maximizar sua rentabilidade e aumentar seu patrimônio. Não há nenhuma preocupação com os aspectos sociais ou com o futuro do país envolvida na matéria. Isso significa que a tendência é de se verificar um aumento nas tarifas cobradas pelos serviços oferecidos e uma redução nas despesas da empresa vendida, afetando diretamente as contas de investimento, de recursos humanos e a qualidade daquilo que é ofertado à população. Já que a história nos mostra que sempre foi assim nas áreas de telecomunicações, energia elétrica, saneamento, transportes e outros, não há razão alguma para duvidarmos a respeito do futuro das empresas do grupo Eletrobrás.
O quadro fica ainda mais aterrorizador se juntarmos algumas pinceladas envolvendo a crise energética na qual estamos adentrando no momento. A irresponsabilidade com que os investimentos no setor foram tratados nos anos da austeridade fiscal a ferro e fogo terminaram por comprometer de forma drástica a capacidade de geração e transmissão da energia elétrica em todo o território nacional. É preciso lembrar que essa mesma política econômica do austericídio, em vigor desde 2015, debilitou de forma severa o parque energético brasileiro. Quase nada foi feito para viabilizar sua expansão e mesmo sua manutenção. Assim, qualquer movimento de retomada da atividade econômica de forma mais sustentada deverá expor a nu as debilidades do sistema e sua incapacidade de atender à demanda crescente.
Energia elétrica exige maior presença do Estado
Os ricos de atingir tal limite de oferta no curto prazo foram multiplicados pela emergência da crise hídrica atual e as dificuldades iminentes em manter um nível mínimo de geração e transmissão de energia elétrica para todo o país. O fantasma do apagão já nos sobrevoa. Ora, esse é o tipo de circunstância onde o setor privado é o pior agente para tomar decisões e implementar medidas corretivas. A busca do maior lucro no menor prazo possível deixa para segundo plano o atendimento das necessidades da maioria da população e das próprias empresas demandantes de eletricidade.
Assim, a privatização da Eletrobrás nesse momento rima também com destruição da capacidade instalada do sistema. A reconstrução de um projeto nacional e integrado de energia elétrica contemporâneo desse início do século XXI não se viabiliza sem participação direta do Estado nos investimentos e na condução das empresas responsáveis por geração e transmissão.
Ao contrário do que pretende nos enganar Paulo Guedes e seus arautos do financismo, o Brasil precisa de maiores capacidades estatais no campo da energia. Isso inclui a presença de empresas estatais fortes e robustas, capazes de assegurar suas entregas hoje e no futuro, sem comprometer a qualidade do serviço e do entorno em termos econômicos, sociais e ambientais. Privatizar este bem essencial nos tempos atuais é pensar apenas nas negociatas favorecendo quem compra e na destruição para quem tanto necessita deste serviço em seu cotidiano.
*Paulo Kliass é Doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.
Fonte: Outras Palavras