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“Governar é abrir estradas”: do caminho de Peabiru à pavimentação neoliberal

16 de agosto de 2022
Estrada

No segundo artigo sobre Infraestrutura de Transporte no Brasil, Luciano Resende aborda os impactos no neoliberalismo no setor rodoviário

– A entrega do sistema rodoviário brasileiro à iniciativa privada

Leia o primeiro artigo da série: A “logística” neoliberal no escoamento da produção agrícola brasileira

Antes da chegada do colonizador ao Brasil, estima-se que havia uma rede de trilhas com cerca de 4 mil quilômetros de extensão que ligava o oceano Atlântico ao Pacífico. O corredor transcontinental mais importante da América pré-colombiana, que unia povos indígenas, territórios e os oceanos conhecido como o caminho de Peabiru.

No livro “A Saga de Aleixo Garcia; o Descobridor do Império Inca”, a pesquisadora brasileira Rosana Bond, afirma que esse navegador português foi o primeiro europeu conhecido a visitar o império inca em 1524, cerca de uma década antes da chegada do conquistador espanhol Francisco Pizarro, conhecido como “descobridor” dos Andes peruanos.

O fato é que amplas regiões do país já eram interligadas por diversas trilhas, construídas pelos indígenas. E muitos desses caminhos originaram várias estradas séculos depois, sendo que algumas delas se transformaram em importantes rodovias como é o caso de trechos da Estrada Real, com seus mais de 1600 quilômetros de extensão, ligando São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A Estrada Real teve sua origem atribuída a uma trilha usada pelos índios goianás.

Figura 1: Com cerca de 4 mil quilômetros, sendo aproximadamente 1.200 destes em território brasileiro, a trilha ligava São Vicente, no litoral de São Paulo, até Cusco, no Peru.  Reprodução/Ambiental Blog.

O padre José de Anchieta talvez seja o brasileiro mais reconhecido por se incorporar aos índios para conhecer mais e melhor sobre a natureza brasileira, descobrindo os vários caminhos existentes que ligavam o litoral ao continente, sobrepondo a Serra do Mar. Justamente em sua homenagem uma das rodovias mais importantes de São Paulo, a que liga a capital à Santos, leva o seu nome. Também a rodovia dos Tamoios aproveita o traçado de antigas trilhas da Serra do Mar, usadas pelos índios dessa etnia.

De acordo com Bernucci et al. (2008), uma das primeiras estradas que se tem registro no Brasil “tem início em 1560, à época do terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá. Trata-se do caminho aberto para ligar São Vicente ao Planalto Piratininga”. Ainda segundo os autores, em 1661, “o governo da Capitania de São Vicente recuperou esse caminho, construindo o que foi denominada Estrada do Mar (ou Caminho do Mar)”.

Essas trilhas e estradas no tempo do Brasil Colônia, no entanto, eram aberturas toscas, caminhos destinados sobretudo ao tráfego de viajantes e de animais de carga. Passagens bastante precárias e rústicas. Mesmo na época do Império (1822-1889), as vias de transportes no Brasil, sobretudo o rodoviário, se desenvolveram pouco. Estima-se que no começo do século passado havia no país algo próximo a 500 quilômetros de estradas com revestimento de macadame hidráulico ou similares, voltado aos veículos de tração animal (PREGO, 2001).

Mas quando o assunto é uma rodovia propriamente dita, com estruturas básicas de drenagem, fundações adequadas e uma superfície resistente, apenas a partir de 1920 é que o brasileiro vai assistir a inauguração das primeiras pistas deste tipo destinadas ao tráfego de automóveis e, pouco depois, aos caminhões de carga pesada. E uma figura importante dessa época, que simboliza bem a euforia nesse novo sistema de transporte no Brasil, é Washington Luís.

Logo ao assumir o governo do estado de São Paulo, na década de 20, Washington Luís pronunciaria uma frase que ficaria famosa: “governar é abrir estradas”. Como bem lembra o professor Departamento de Transportes da Universidade de São Paulo, Jorge Pimentel Cintra, é no seu governo que “surgem duas grandes estradas que foram modelos para todas as outras, a estrada de Campinas e a estrada de Itu, que se ligavam à capital do estado, São Paulo”. Já em 1928, quando ocupava o posto de Presidente da República, Washington Luís inaugurou a primeira rodovia pavimentada que ligava o Rio de Janeiro à Petrópolis. Esse trecho hoje faz parte da BR 040, que liga o Rio de Janeiro à capital do país.

Mas a explosão do sistema rodoviário viria, sobretudo, a partir da década de 50. O modal rodoviário no Brasil, que até 1950 respondia por apenas 38% do transporte de cargas nacionais, no final do governo Kubitschek, já correspondia por 60% da matriz nacional de transportes (BNDES, 2008), percentual próximo ao da atualidade. 

No governo Juscelino Kubitscheck, as rodovias foram priorizadas no seu Plano de Metas que visava estimular a indústria de transformação por meio da indústria automobilística. “O desenvolvimento das rodovias brasileiras foi possível, basicamente, por meio de recursos públicos oriundos de fundos criados essencialmente para este fim” (IPEA, 2010).

Lessa (2009), pontua bem o fato de que “o Brasil caminhou para a industrialização com atraso de mais de meio século no mundo da Segunda Revolução Industrial” e, dessa forma, “foi natural concentrar a atenção no complexo de petróleo e derivados, e na instalação da indústria mecânica e eletroeletrônica, como o passaporte para que a civilização brasileira penetrasse na modernidade”.

Ou seja, naquele momento histórico, foi fundamental o esforço nacional desenvolvimentista brasileiro, capaz de alcançar um desenvolvimento estrutural e eleger como alvos setoriais estratégicos a indústria do petróleo, a montagem de veículos automotores e a multiplicação de eletroeletrônicos produzidos internamente. Como desdobramento desse esforço, o projeto nacional foi integrado com a criação de indústrias produtoras de máquinas e implementos. Foi criado um mercado destinado à integração de um sistema industrial a partir da demanda do investimento público. Inaugurou-se a indústria de material elétrico pesado e um pujante complexo do petróleo capaz de, logo de início, impulsionar a criação de mais de cinco mil empresas. Essa radical e necessária transformação produtiva brasileira foi exitosa e, do ponto de vista de organização produtiva, permitiu que o país deixasse de ser “um cafezal”, em 1930, para ser tornar a oitava economia industrial do planeta, em apenas 50 anos (LESSA, 2009).

Diante desses dados, nos parece injusto atribuir ao governo desenvolvimentista de Juscelino a opção pelo modal rodoviário em detrimento da manutenção dos demais. Naquele momento histórico específico, essa priorização foi acertada. Entretanto, após alguns anos do término de seu governo, por motivos distintos, o Estado vai deixando de investir na expansão e no desenvolvimento da infraestrutura de transportes de forma mais integrada e harmônica, passando a prevalecer os interesses de alguns setores privados e do imperialismo estadunidense para, a partir do final da década de 1980, reinar absoluta a agenda neoliberal privatista e monopolista.

Decorrência dessa escolha política subalterna, o Estado assiste hoje, de forma omissa, a um verdadeiro genocídio ocasionado pelo trânsito rodoviário urbano e rural, nos milhares de acidentes que poderiam ser evitados. Uma tragédia que se abate sobretudo sobre jovens, com a cumplicidade dos governos que praticamente reduziram a pó o papel do Estado nas várias políticas públicas responsáveis por preservar a vida nas estradas. O Brasil, entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, é o país que apresenta os piores índices de acidentes que resultam em morte ou invalidez. Estima-se que morra no Brasil cerca de 90 pessoas todos os dias vítimas no trânsito, ou seja, três a cada hora.

Certamente as causas para essa carnificina são várias. Mas todas elas passam pela ausência do Estado Nacional nas definições de políticas integradas que visem dar fim a essa “guerra” que supera as baixas do exército dos EUA em dez anos de conflito no Vietnã. A falta de investimento em infraestrutura exige gastos cada vez maiores relacionados à saúde pública e à seguridade social para tratar e amparar as vítimas dessa tragédia já naturalizada entre os brasileiros.

Além do aspecto humanitário, há também o fator econômico. Uma perda enorme para o país que vê uma parcela importante de sua força de trabalho mais pujante ser literalmente atropelada pela degradação da rede rodoviária. Nesse atoleiro, o Brasil segue ocupando posições incômodas na corrida internacional por competitividade.

Desde o final dos anos 1980 até o início dos anos 2000, os planejamentos de médio e longo prazos do setor de transporte seguiram desprezados no Brasil, “consequência da ideologia dominante, segundo a qual as livres forças de mercado, por si sós, seriam suficientes para dar os corretos sinais das necessidades de investimentos” (NETO, 2016). A partir de 2016, com a volta de representantes da ideologia neoliberal ao centro do poder executivo, a agenda privatista e anti-Estado voltou com força máxima.

Na atualidade, assiste-se os preços dos produtos agrícolas dispararem, em boa medida, pela dependência do transporte rodoviário no escoamento da produção, com o diesel batendo recorde de preço. Pela primeira vez, seu preço supera o da gasolina na bomba dos postos. A medida paliativa tomada pelo governo é o de dar um voucher aos caminhoneiros, um tipo de bolsa combustível, na tentativa de aplacar o sofrimento da categoria e o colapso de todo um setor. Mais um remedo, tal como as famosas operações “tapa-buracos”, tão conhecidas pelos motoristas que trafegam as rodovias brasileiras.

Importante registrar a tentativa de se fazer frente à ofensiva neoliberal durante os governos Lula e Dilma, que se esforçaram por reestabelecer planos sinalizadores de prazos mais longos ao setor de transporte, o que pode ser constatado em vários documentos como o Plano Plurianual (PPA) 2004-2007 (Plano Brasil de Todos); o PPA 2008-2011; o PPA 2012-2015; o PPA 2016-2019; o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) 2007-2010; o PAC 2 (2011-2014); o Plano Nacional de Logística e Transportes (PNLT) 2007, versão 2011; o Programa de Investimento em Logística (PIL) 2012; o PIL 2 e o Plano Nacional de Logística Integrada (PNLI) 2016-2035, entre outros também relacionados ao setor de transportes.

Entretanto, é imperioso reconhecer que a correlação de forças é extremamente desfavorável, prevalecendo um forte sentimento antinacional e anti-desenvolvimentista no Brasil, insuflado por grande parcela da elite brasileira. Ao contrário dos EUA e da Europa, por exemplo, cuja burguesia local participa e valoriza os seus Conselhos políticos de transporte, que se reúnem periodicamente; no Brasil, seu Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte (Conit), só foi regulamentado em 2008, sendo que sua primeira e única resolução foi aprovada somente em 2010, quando definiu-se seu regimento interno, sofrendo boicote de importantes setores do ramo de transporte.

Nesse beco sem saída escolhido pelos neoliberais, o Brasil vai sendo ultrapassado por diversos países que escolheram outros caminhos. A China, por exemplo, que até a década de 1980 apresentava um Produto Interno Bruto menor que o do Brasil, com uma agropecuária menos desenvolvida e com imensos obstáculos geográficos (desertos, cadeias de montanhas, áreas alagadiças, etc), tem hoje a maior quilometragem de rodovias do mundo. Tanto em escala como em qualidade, o sistema rodoviário chinês passou por uma imensa transformação nos últimos quarenta anos, com mais de 150 mil quilômetros de rodovias que transportou o país a uma nova era: “Nação com alta potência de transporte” em infraestrutura, serviços de transporte e tecnologia de transporte.

De acordo com o Ministro do Transporte da China, Liu Xiaoming¹, os pesados investimentos estatais em infraestrutura de transporte, promoveram uma “profunda integração do transporte, da logística e da informação com a economia”, passando de “ligação em partes” para “ligações em redes”.

No Brasil, parte considerável da produção agrícola fica pelo caminho, nas inúmeras partes de um trajeto desconexo. Estima-se que, do total das perdas de grãos no país em 2015, algo próximo a 35% tenha ocorrido no transporte rodoviário, do campo até o armazenamento e do armazém até o destino final (CAIXETA FILHO & PÉRA, 2021).     Além de a malha rodoviária no Brasil ser deficiente, o perfil geral dos corredores logísticos estratégicos de exportação revela o modal rodoviário como a principal via de escoamento da soja e do milho, respondendo por 85%, o que sobrecarrega ainda mais o sistema (CNT, 2019).

Para piorar, apenas 12,4% da malha rodoviária no Brasil é pavimentada. Segundo a CNT (2019), “nos 66,2 mil quilômetros estudados há deficiência no pavimento, sinalização e geometria da via. Os problemas incluem buracos, falta de sinalização, ausência de acostamentos e terceiras faixas” e 60,8% das rodovias públicas apresenta condições inadequadas de tráfego.

Enquanto isso, a solução apresentada pelo governos neoliberais é sempre a agenda de privatizações e concessões que, nos últimos anos, vem movimentando a sede da B3, a bolsa de valores de São Paulo. Apenas em rodovias, é estimado que mais de 6 mil quilômetros de estradas federais e estaduais passem para as mãos da iniciativa privada em 2022.

A queda dos investimentos públicos para manutenção, ampliação e construção de novas rodovias na última década é preocupante. Enquanto em 2010 o governo federal aplicou R$ 17,86 bilhões para essas obras, em 2021 os recursos caíram para R$ 6,74 bilhões, 20% do valor².

Importante lembrar que o caminho das privatizações foi sinalizado pelo menos três décadas atrás. Entre os anos 1995 e 1997 já havia sido implementado o Programa de Concessão de Rodovias que abriu a porteira para que 36 concessionárias dividissem quase 10 mil quilômetros de rodovias, com mais de 165 praças de cobranças de pedágios (sem falar de operadoras estaduais com seus pontos de pedágios), encarecendo mais ainda o custo do frete e sobrecarregando o orçamento de milhões de motoristas que são obrigados a pagar um extra pelo direito de ir e vir.

Já em 2015 o Brasil liderava o ranking de países com percentual de rodovias entregues à iniciativa privada, com 9,2% de sua malha rodoviária concedida. Em 2019 esse número já havia ultrapassado a marca de 10%.

Por incrível que possa parecer, os Estados Unidos, baluarte do liberalismo econômico e incentivador da adoção das teses neoliberais pelos outros países de seu campo de influência, têm apenas 0,1% de sua malha rodoviária concedida à iniciativa privada. Estado mínimo nos olhos dos outros parece ser refresco ao Tio Sam.

Fonte: Dados de 2015. CNT/Ipea/ABCR/International Road Federation/Poder 360

O cenário é ainda mais grave quando consideramos que menos de 15% das estradas no país são pavimentadas. Enquanto isso, China e EUA, com uma malha rodoviária muito maior que a do Brasil, têm 81% e 65% de suas rodovias, respectivamente, pavimentadas.

Outro ponto importante em ser mencionado é a duração dos contratos de concessão no Brasil. Em São Paulo, por exemplo, alguns contratos chegam a 25 anos e, apesar de os governos aparentemente exigirem a redução nas tarifas de pedágio nas novas licitações, o lobby das grandes empresas privados do setor é muito poderoso.

No governo Dilma Rousseff, por exemplo, ainda em 2013 havia a expectativa de duplicação de uma série de trechos de rodovias. Para isso, foram feitos contratos em que as concessionárias deveriam entregar essas obras em cinco anos, ou seja, até 2018 ou 2019. Mas daí seu governo foi interrompido e ganhou destaque a operação político/jurídico/midiática chamada Lava Jato que, com o discurso de combate à corrupção, mirou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), inviabilizando os investimentos nessas obras, bem como em várias empresas brasileiras no ramo da construção e concessionárias. Somente no Paraná, berço da Lava Jato, pelo menos seis concessionárias foram citadas: Econorte, Ecovia, Ecocataratas, Rodonorte, Viapar e Caminhos do Paraná.

Após o Golpe de 2016, vários membros da Lava Jato assumiram cargos no governo Bolsonaro, dentre eles o juiz federal Sérgio Moro, assumindo claramente suas posições políticas neoliberais. Outros, como é o caso do procurador Deltan Dallagnol, viraram candidatos defendendo bandeiras abertamente reacionárias e privatistas. A luta contra corrupção, na verdade, era a luta seletiva contra o nacional-desenvolvimentismo.

Dessa forma, num constante zigue-zague, a secular trajetória brasileira no desenvolvimento de um sistema rodoviário nacional vai se demonstrando extremamente sinuosa. Repleta de idas e vindas. O risco, na atualidade, é insistir nesse beco sem saída e não perceber, como diz a letra da canção que “a estrada vai além do que se vê”.

[1] Ver mais em: https://china2brazil.com.br/china-tem-3-modais-de-transporte-como-os-melhores-do-mundo/

2 Ver mais em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/08/19/baixos-investimentos-em-rodovias-causam-prejuizos-ao-pais-aponta-debate

Referências bibliográficas:

BERNUCCI, L. B., MOTTA, L. M. G, CERATTI, J. A. P., SOARES, J. B. Pavimentação asfáltica – formação básica para engenheiros. Rio de Janeiro: Petrobras – ABEDA, 2010.

BNDES. Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. O transporte rodoviário de carga e o papel do BNDES. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 14, n. 29, jun. 2008.

CAIXETA FILHO, J. V.; PÉRA, T. G. O custo do desperdício na logística do agronegócio no Brasil. In: Machado Júnior, P. C. e Reis Neto, S. A. (Org.). O custo do desperdício na logística do agronegócio no Brasil. 1ed. Brasília: 2021.

CNT. Confederação Nacional dos Transportes. Pesquisa CNT de Rodovias 2019. Brasília, DF: CNT; SEST/SENAT, 2019.

LESSA C.  Infraestrutura e logística no Brasil. In: CARDOSO JR., J. C. Desafios ao desenvolvimento brasileiro: contribuições do conselho de orientação do Ipea. Livro 1. Brasília, 2009.

PREGO, A. S. S. A memória da pavimentação no Brasil. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Pavimentação, 2001.