Por que o neoliberalismo não se globalizou?
1. Introdução
Neste ensaio será usado como variável independente o conceito de capital e seu desenvolvimento histórico; como variáveis dependentes, globalização e nação; e, como variável interveniente, neoliberalismo. O fio condutor é o desenvolvimento histórico do sistema capitalista, que comprova enfaticamente nos nossos dias a afirmação de Marx: “Tal sistema proclamou a produção do mais-valor como finalidade última e única da humanidade.” (MARX, 2013, p. 1003).
Pretende-se demonstrar que, tendo por base a contradição fundamental da sociedade, entre capital e trabalho, que continuará existindo enquanto houver capitalismo, dela decorre a contradição principal na atualidade: a que opõe o imperialismo às nações oprimidas e seus povos; e o aspecto principal dessa contradição é entre unilateralismo e multilateralismo.
Capital é a variável independente porque é o do seu processo histórico de surgimento e desenvolvimento que surgem as nações e a globalização. As primeiras nações surgem na Europa feudal, quando o capitalismo transita da acumulação primitiva nos burgos para a manufatura capitalista. A globalização se inicia com as naus e caravelas das primeiras nações europeias: Portugal Espanha, Inglaterra, França e Holanda. A partir do predomínio da indústria na Europa a globalização se intensificou e, a cada “revolução industrial”, mais ainda. Neoliberalismo é tratado como variável interveniente porque surge em um momento específico do processo global de produção capitalista e, como se verá, nunca se globalizou.
O ensaio pretende analisar o neoliberalismo nos seus aspectos econômicos e políticos, ressaltando a obra O Capital, de Marx, para entender o surgimento e desenvolvimento do neoliberalismo e os efeitos que ocasionou, inversos aos pretendidos por seus idealizadores.
Não trataremos aqui da vasta literatura acadêmica sobre o tema neoliberalismo; as diferenças com opiniões prevalecentes, deixamos a cargo dos leitores (sugerindo LOGUERCIO, 2017). O interesse deste artigo é mostrar, do ponto de vista histórico e da ciência política comparada, sua base econômica e sua essência política. Daí porque é imprescindível partir da obra que explica o surgimento e o papel do crédito e do capital portador de juros, especialmente na quinta parte do terceiro livro de O Capital.
A hipótese principal é que o neoliberalismo foi uma tentativa do império estadunidense de consolidar um mundo sob seu controle, um mundo unipolar, tendo como escudeiro e fiel aliado o falido Império Britânico. Esse plano, ou agenda, com desdobramentos nas esferas econômica, política, ideológica, jurídica, militar, e assim por diante, teve sucesso nas últimas duas décadas do século passado, mas passou a entrar em declínio nas duas primeiras décadas do século XXI. O motivo central, como tentaremos explicar, é sua base econômica: o capital fictício.
Lênin (1982), em sua obra O imperialismo fase superior do capitalismo, considera com toda a razão (com apoio na obra de Hilferding sobre o tema) o capital financeiro como a fusão do capital bancário com o industrial. E que isso impulsionava a concentração da produção e seu rápido e desigual desenvolvimento e aumentava a disputa entre os impérios de então pela repartição do mundo. A exportação de capitais reais era o objetivo na disputa pelos mercados entre as potências. Essa análise estava escorada na tendência à concentração e ao monopólio já descrita por Marx. Lênin, à luz de O Capital, percebeu as mudanças fundamentais ocorridas na estrutura do capitalismo. Os aspectos centrais da análise de Lênin foram modificados com o fim dos impérios coloniais e o advento do neoliberalismo.
Muitos entendem a globalização como algo recente. Na realidade a globalização vem de longe, como explica Marx no terceiro livro de O Capital, cujo título, inclusive, é “O processo global da produção capitalista”. De fato, ao longo da história a única comunicação duradoura entre povos de vários continentes foi a antiga Rota da Seda, mas a tendência do capital a se expandir, se globalizar, abarcar todos os lugares do planeta, faz parte da sua essência. Desde as caravelas até a internet os povos do mundo foram se tornando cada vez mais conectados, e o capital foi submetendo todas as formas de produção que encontrou à sua retorta geral. A produção de mais-valor, o capital foi impondo em todas as regiões do planeta como finalidade última e única da humanidade.
O referencial metodológico fundamental deste ensaio é de Charles Tilly, notadamente na obra na qual ele indica os métodos para se fazer política comparada (TILLY, 1984). Das quatro sugestões de método que faz Tilly para a política comparada, o ensaio utilizará três. Explicando resumidamente: 1) histórico mundial — apenas servirá como uma espécie de pano de fundo, para demonstrar por que o Estado é produto da divisão social do trabalho e dos conflitos dela decorrentes, bem como para evidenciar o lugar do neoliberalismo na história; 2) sistêmico mundial — servirá, fundamentalmente, para evidenciar que os vários surtos, as várias levas no surgimento e fortalecimento de nações acompanham as várias fases do processo global de produção capitalista; (3) macro-histórico — com base neste é que será feita a comparação entre algumas nações do Ocidente e do Oriente.
2. Alguns conceitos e preliminares históricas
Há conceitos diferentes na sociologia e na ciência política acerca de Estado, nação, globalização e neoliberalismo. O Estado tem origem na história humana há cerca de 6 mil a 8 mil anos. Em qualquer parte do globo onde surgiu, expressou a divisão da sociedade em classes sociais. A primeira classe dirigente de qualquer Estado foi a dos comerciantes. Desde o início, o Estado serviu ao mercado, e este àquele.
A nação surge depois. Para os romanos, nação eram os agrupamentos humanos não romanos. Não havia um conceito de nação e sim uma caracterização genérica de povos desconhecidos. Nação é fruto do desenvolvimento do capitalismo, sua expressão política.
Ao longo de sua obra O Capital, Marx insiste em explicar que o capital não é uma coisa, mas uma relação entre pessoas intermediada por coisas. A relação entre os proprietários dos meios e instrumentos de produção e os proprietários da força de trabalho é a essência do capital e de seu processo histórico. É por meio dessa relação que é extraído o mais-valor. E como provou Marx: “o assalariado produz e cede ao capitalista que o emprega lucro, juros e renda fundiária”. (MARX, 2017, p. 655).
Essa relação chegou a existir no modo de produção escravista, mas esporadicamente, como nas fábricas de perfumes no Império Romano. No capitalismo é a relação predominante, base das demais relações sociais. Surgida nos burgos da Idade Média, se espalhou na Europa com o predomínio da manufatura e, a partir do predomínio da indústria, se generalizou por todos os continentes. A generalização dessa relação é o que chamamos globalização. O capitalismo surge das entranhas do feudalismo europeu.
“A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais que o processo histórico de separação entre o produtor e o meio de produção. Ela aparece como “primitiva” porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde. A estrutura econômica da sociedade capitalista surgiu da estrutura econômica da sociedade feudal. A dissolução desta última liberou os elementos daquela”. (MARX, 2013, p. 786).
Para que essa relação se generalizasse, era indispensável acrescentar novas tarefas ao Estado. Além de tributar e destinar a tributação, criando os aparatos de coação e legitimação para isso, tarefas de qualquer Estado anterior ao capitalismo, agora era preciso ciência e tecnologia para aumentar a produtividade do trabalho. Essa tarefa só pode ser cumprida pelo Estado nacional. Então, a burguesia cria as nações.
As primeiras nações surgem no período manufatureiro na Europa, após um período de acumulação primitiva e o surgimento em muitos burgos da manufatura capitalista, que ocorreu entre os séculos XI e XIV. As primeiras são Portugal, Espanha, Holanda, Inglaterra e França. Desde então, nos séculos XV a XVII passa a predominar nessas nações a manufatura capitalista.
“A moderna investigação da natureza é a única que conseguiu um desenvolvimento científico, sistemático e múltiplo, em contraste com as geniais intuições filosófico-naturalistas dos antigos e com as descobertas, muito importantes, mas esporádicas e em sua maior parte carentes de resultados, realizadas pelos árabes. […] Ela se inicia na segunda metade do século XV. A realeza, apoiando-se nos habitantes das cidades, ou seja, os burgueses, enfraqueceu o poder da nobreza feudal e fundou as grandes monarquias baseadas essencialmente no conceito de nacionalidade. Sob esse regime, alcançaram grande desenvolvimento as modernas nações europeias e a moderna sociedade burguesa”. (ENGELS, 1979, p.15, grifos nossos).
Para a passagem da manufatura à indústria, ou, dito de outra forma, da acumulação primitiva ao domínio da indústria, o reinado das máquinas substituindo o trabalho manual, foram fundamentais as riquezas adquiridas pelos impérios coloniais europeus.
“A descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o extermínio, a escravização e o soterramento das populações nativas nas minas, o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais, a transformação da África para a caça comercial de peles negras caracterizam a aurora da produção capitalista”. (MARX, 2013, p. 999).
Todas as nações têm origem, formação e consolidação. Esse processo de surgimento das nações acompanha as diversas fases do desenvolvimento do capitalismo. E o elemento fundamental que caracteriza a existência consolidada de uma nação é ser dotada de um Estado.
Um conceito de nação mais exato, no sentido hegeliano de “síntese de todas as determinações”, pode ser assim resumido: nação é uma comunidade social, historicamente formada, com certa unidade de idioma, delimitação territorial, conexão econômica, experiência cultural comum, dotada de um Estado capaz de manter o monopólio da tributação e sua destinação e dos aparatos de coerção e consentimento necessários para tal, dentro de suas fronteiras, bem como da soberania em sua relação com outras nações.
Na atualidade, é preciso que o Estado nacional controle o crédito, a entrada e saída de capitais monetários, os juros e o câmbio. Sem esse controle e direcionamento do crédito é inviável qualquer projeto de crescimento industrial sustentável. E sem o controle da entrada e saída de capitais monetários, dos juros e do câmbio, não há como o Estado garantir a soberania da nação. Ela fica vulnerável à chantagem e sanções de outros Estados.
As nações das Américas tiveram origem nas Grandes Navegações, mas se formaram e se consolidaram quando o capitalismo na Europa passava a apresentar o predomínio da indústria. Um instrumento que passou a possibilitar o rápido desenvolvimento da indústria e as chamadas revoluções industriais foi o capital portador de juros, substituindo a velha usura. O capital portador de juros, como explicou Marx, contém duas formas: D — D — M — D’— D’ e D — D’. São dois lados de uma mesma moeda. Na primeira forma, desenvolvem-se a produção e a expropriação do trabalho vivo. Na segunda, a apropriação do trabalho já realizado entrava a produção e facilita a especulação. Na primeira forma temos o capital real: primeiro D = dinheiro de empréstimo de A para B; segundo D = dinheiro recebido por B e aplicado na produção; M = mercadoria produzida; primeiro D’ = valor da mercadoria lucro obtido pelo mais-valor do trabalho; segundo D’ = parte do lucro devolvido por B para A como juro, pelo primeiro empréstimo. Na segunda forma temos o capital fictício: D — D’, dinheiro que gera dinheiro sem passar pelo processo produtivo; o principal exemplo são os títulos da dívida pública, mas também ações e títulos variados que não têm por base a produção real. “É no capital portador de juros que a relação capitalista assume sua forma mais exterior e mais fetichista. Aqui deparamos com D — D’, dinheiro que engendra mais dinheiro, valor que se valoriza a si mesmo, sem o processo mediador entre os dois extremos” (MARX, 2017, p. 441).
O capital portador de juros, surgido na Inglaterra durante a Primeira Revolução Industrial, é a mola propulsora do desenvolvimento industrial, da formação dos monopólios, das diversas “revoluções industriais”. As primeiras nações se formaram no período manufatureiro, e a maioria, no período industrial.
As unificações italiana e alemã ocorrem em 1871, já na fase de transição do capitalismo concorrencial para o predomínio dos monopólios. E as nações imperialistas se consolidam como tais a partir desse período (EUA: guerra civil; Japão: dinastia Meiji; Rússia: reforma do nadiel). Daí em diante, Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Rússia, EUA e Japão se tornam potências imperialistas, que entrariam em duas guerras para redividir o mundo. A dissolução dos impérios austro-húngaro e turco deu origem a novas nações. E a vitória da revolução socialista na Rússia, em 1917, estimulou os povos da Ásia e da África a lutarem contra a dominação imperialista, processo que deu origem a nações com um grau de soberania muito superior ao dos países da América Latina, cujo processo de independência nunca foi completado: antes, submissão ao imperialismo inglês; depois, ao estadunidense.
A Revolução Russa de 1917 e as propostas da III Internacional colocavam nas mãos dos povos dominados pelos imperialismos um programa de ação para suas lutas. Nele, o centro era a questão nacional. A URSS foi a força decisiva na vitória contra o nazi-fascismo. Lênin precisa bem que é o capitalismo moderno que estimula a formação dos Estados nacionais. Diz ele:
“A formação de Estados nacionais, que são os que melhor satisfazem essas exigências do capitalismo moderno, é por isso a tendência de qualquer movimento nacional. Os mais profundos fatores econômicos empurram para isso, e para toda a Europa Ocidental — mais do que isso: para todo o mundo civilizado — o que é típico e normal para o período capitalista é o Estado nacional. Consequentemente, se queremos compreender o significado da autodeterminação das nações sem brincar com as definições jurídicas, sem “inventar” definições abstratas, mas analisando as condições histórico-econômicas dos movimentos nacionais, então chegaremos à conclusão: por autodeterminação das nações entende-se a sua separação estatal das coletividades nacionais estrangeiras, entende-se a formação de um Estado nacional independente”. (LÊNIN, 1982, p. 512, grifos nossos).
As duas guerras mundiais enfraqueceram os impérios europeus e facilitaram o êxito das lutas de libertação nacional dos povos da Ásia e da África. E já na Conferência de Bandung, de 1955, que reuniu 15 países da Ásia, oito do chamado Oriente Médio e seis da África, as resoluções dessa conferência marcaram sobremaneira a segunda metade do século XX. Vale relembrá-las e cotejá-las com o título da obra de Lênin:
“Respeito aos direitos fundamentais; respeito à soberania e integridade territorial de todas as nações; reconhecimento da igualdade de todas as raças e nações, grandes e pequenas; não intervenção e não ingerência nos assuntos internos de outros países (autodeterminação dos povos); respeito pelo direito de cada nação defender-se individual e coletivamente; recusa à participação nos preparativos da defesa coletiva destinada para servir aos interesses particulares das superpotências; abstenção de todo ato ou ameaça de agressão, ou do emprego da força, contra a integridade territorial ou a independência política de outro país; solução de todos os conflitos internacionais por meios pacíficos (negociações e conciliações, arbitradas por tribunais internacionais); estímulo aos interesses mútuos de cooperação; respeito pela justiça e obrigações internacionais”. (Comunicado Final da Conferência de Bandung, 1955).
Depois de Bandung, novas nações se libertaram: Vietnã, Angola, Moçambique, África do Sul e Namíbia, entre outras, todas na Ásia ou na África e obtendo alto grau de soberania.
A existência do socialismo em uma parte da Terra desde 1917 introduz um elemento novo que não deixaria mais de existir e que tem crescido nos últimos tempos, apesar da dissolução da URSS. Trata-se da destinação do mais-valor. Enquanto nos países capitalistas o mais-valor é distribuído entre as classes possuidoras e apenas uma pequena parcela se destina à inovação tecnológica e aprimoramento das forças produtivas, no socialismo o mais-valor se destina à melhoria das condições de vida do povo e parte crescente dele se destina ao aprimoramento dos meios de produção e à utilização em larga escala da ciência para a inovação tecnológica. É o que explica a China ter tirado em quatro décadas mais de 700 milhões de chineses da miséria e, simultaneamente, conseguir um alto grau de produtividade do trabalho social. O mesmo vem ocorrendo com o Vietnã.
Um aspecto relevante nas guerras de libertação da África e da Ásia é que as nações delas originadas passaram a ter um grau de independência muito maior que o das latino-americanas. Enquanto o imperialismo estadunidense, por intermédio de guerras, chantagens, bloqueios comerciais, sanções e outros instrumentos, tenta barrar o desenvolvimento autônomo dessas nações, a maioria delas, sobretudo na Ásia, adotam os princípios de respeito à soberania e integridade territorial de todas as nações e não intervenção e não ingerência nos assuntos internos de outros países (autodeterminação dos povos). Aliás, esses princípios, originados da Paz de Vestfália (1648!) e consagrados na Carta da ONU, são muito mais obedecidos na Ásia do que na Europa, e o grande transgressor desses princípios, nos quatro cantos do mundo, chama-se Estados Unidos da América.
3. Como surgiu e se desenvolveu o neoliberalismo?
O neoliberalismo veio ao mundo, conforme muitos autores, em outubro de 1979. Mas há muitas divergências sobre sua essência.
“Em outubro de 1979, Paul Volcker, presidente do Federal Reserve Bank no governo Carter, promoveu uma mudança draconiana na política monetária dos Estados Unidos. […] A taxa real de juro, que com frequência foi negativa durante o surto inflacionário de dois dígitos dos anos 1970, tornou-se impositiva por ordem do Federal Reserve. A taxa nominal de juro aumentou da noite para o dia, depois de algumas elevações e quedas, ficando em julho de 1981 perto de 20%. […] “Iniciou-se assim uma duradoura recessão profunda que esvaziaria as fábricas e destruiria os sindicatos dos Estados Unidos, além de levar países devedores à beira da falência, dando início à longa era dos ajustes estruturais (conforme Henwood)” (HARVEY, 2008, p. 32).
É bom lembrar que à época (anos 70 do século passado) havia uma queda na taxa média de lucro nos EUA e na Europa. A solução encontrada foi aplicar o receituário monetarista de Hayek e Friedman. Esse receituário, levado adiante a ferro e fogo desde Reagan e Thatcher, devido à situação especial de hegemonia dos EUA relativamente às demais nações capitalistas, não tem como se globalizar. A essência do capitalismo é extrair mais-valor, e a fonte do mais-valor é o trabalho vivo, e não artifícios monetários. Os títulos sem lastro dos proprietários do capital fictício servem para adquirir riquezas já produzidas, mas não para produzir novas riquezas.
Neoliberalismo é a variável interveniente deste ensaio. Tomarei como base para situar historicamente o neoliberalismo Perry Anderson, que o estudou desde suas origens e o distingue do liberalismo clássico. Ele afirma que o neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra na região da Europa e na América do Norte. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista. Seu texto de origem é O caminho da servidão, de Friedrich Hayek, escrito em 1944. Trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciada como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política.
Anderson lembra que, em 1947, foi fundada a Sociedade Mont Pèlerin, na Suíça, reunindo célebres participantes que eram não apenas adversários firmes do Estado de bem-estar social europeu, mas também inimigos férreos do New Deal estadunidense. Destaca-se entre eles Milton Friedman. Embora o objetivo fosse combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de outro tipo de capitalismo, livre de regras, reconhece Anderson que a situação geral da época não lhes era favorável, mas se apresentaria como tal em 1973, com a crise do modelo do pós-guerra. A rigor as medidas preconizadas pelos neoliberais passaram a ter livre curso a partir de 1979. Após fazer um balanço dos 15 anos de neoliberalismo — o texto é de 1994 —, ele faz a seguinte indagação:
“Cabe perguntar por que a recuperação dos lucros não levou a uma recuperação dos investimentos. Essencialmente, pode-se dizer, porque a desregulamentação financeira, que foi um elemento tão importante do programa neoliberal, criou condições muito mais propícias para a inversão especulativa do que produtiva. Durante os anos 1980 aconteceu uma verdadeira explosão dos mercados de câmbio internacionais, cujas transações, puramente monetárias, acabaram por diminuir o comércio mundial de mercadorias reais. O peso de operações puramente parasitárias teve um incremento vertiginoso nesses anos”. (ANDERSON, 1995).
Influenciado pelo clima da época, só alterado pela crise de 2007-2008, Anderson afirma no artigo citado:
“Tudo o que podemos dizer é que esse é um movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional”.
Quem adota um critério que se assemelha ao desse ensaio é Chesnais:
“O mundo contemporâneo apresenta uma configuração específica do capitalismo, na qual o capital portador de juros está localizado no centro das relações econômicas e sociais. As formas de organização capitalistas mais facilmente identificáveis permanecem sendo os grupos industriais transnacionais (sociedades transnacionais, STNs), os quais têm por encargo organizar a produção de bens e serviços, captar o valor e organizar de maneira direta a dominação política e social do capital em face dos assalariados. Mas ao seu lado, menos visíveis e menos atentamente analisadas, estão as instituições financeiras, bancárias, mas sobretudo as não bancárias, que são constitutivas de um capital com traços particulares. Esse capital busca “fazer dinheiro” sem sair da esfera financeira, sob a forma de juros de empréstimos, de dividendos e outros pagamentos recebidos a título de posse de ações e, enfim, de lucros nascidos de especulação bem-sucedida. O capital portador de juros (também designado “capital financeiro” ou simplesmente “finança”) não foi levado ao lugar que hoje ocupa por um movimento próprio. Antes que ele desempenhasse um papel econômico e social de primeiro plano, foi necessário que os Estados mais poderosos decidissem liberar o movimento de capitais e desregulamentar e desbloquear seus sistemas financeiros”.(CHESNAIS, 2005, p. 35, grifos nossos).
É correta a afirmação de Anderson de que “a recuperação dos lucros não levou a uma recuperação dos investimentos”; assim como a afirmação de Chesnais de que “foi necessário que os Estados mais poderosos decidissem liberar o movimento de capitais e desregulamentar e desbloquear seus sistemas financeiros”. Mas a pergunta que fica aos dois é: por que isso não aconteceu em todo o globo? Ou ainda: por que nas primeiras décadas do século XXI mais de uma dezena de nações asiáticas cresceram a uma taxa superior a 6% anualmente, enquanto o norte da América e a Europa permanecem estagnados?
O que o neoliberalismo fez foi alterar o lado da moeda. Se suas teses tivessem sido aplicadas globalmente, teríamos uma economia mundial globalmente estagnada. Como Marx explicou, a base do crédito é o capital portador de juros, uma espécie de moeda mediante a qual um lado se apropria do trabalho vivo já realizado. A Ásia usou um lado da moeda; a Europa e os EUA, o outro.
A substância do valor de qualquer mercadoria é o trabalho social médio executado em sua produção em determinadas condições, sua grandeza é medida pelo tempo de trabalho, e sua forma é, como salienta Marx, destituída de conteúdo, o dinheiro.
Marx dava como exemplo de capital fictício a dívida pública: a dívida contraída pelo Estado já foi gasta, portanto a riqueza não existe mais. Mas fica o título de propriedade da dívida, que pode ser trocado. Se adicionarmos às dívidas públicas as ações compradas pelas empresas com dinheiro público que lhes é ofertado, sem que estas acrescentem um parafuso a suas máquinas, e os trilhões de dólares investidos em seguros, aluguéis e inovações financeiras, ter-se-á uma ideia do montante de capital fictício existente nas economias ocidentais. A base econômica do neoliberalismo é o capital fictício. A base do que Lênin chamava de capital financeiro era o capital real: as potências imperialistas exportavam produtos e máquinas, e não títulos. É evidente que enquanto houver capitalismo, haverá essas duas destinações ao capital portador de juros; o ponto é saber qual delas predomina.
A recessão que o neoliberalismo inaugurou foi profunda, mas os EUA detinham as dívidas de dezenas de países, e o dólar era a moeda internacional; assim, em poucos anos drenaram trilhões de dólares de dezenas de nações. A medida fundamental para submeterem as demais nações a esse ato unilateral foi o livre trânsito de capitais com a desregulamentação monetária (as nações que se subordinavam tinham de abrir suas contas de capital). Esse é o dogma maior do neoliberalismo: livre trânsito de capitais com desregulamentação monetária. Privatizações, aumento da desigualdade social e da miséria, redução dos direitos dos trabalhadores, dentre outros fenômenos, são decorrências.
Os EUA eram detentores de dois mecanismos que facilitaram sua tentativa de globalizar o neoliberalismo quando ele surge, em outubro de 1979: o dólar como moeda do comércio internacional, sobretudo do petróleo (e as principais commodities), e o sistema Swift (Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais), pelo qual se efetuam os pagamentos das transações internacionais. Muito do poderio bélico e político do império serve a um propósito: sustentar o dólar como moeda do comércio mundial. Conquistado como consequência da vitória estadunidense na II Grande Guerra, o padrão-dólar eleva-se a um patamar superior quando, em 1971, o império impõe unilateralmente o fim do lastro em ouro. Libertados dessa amarra, os EUA podem gozar na plenitude o privilégio de emissores únicos e sem restrições da moeda que as nações precisam para comercializarem entre si. É por meio desse monopólio que os EUA garantem seus fantásticos orçamentos militares, ano após ano, permitindo que possam ameaçar as nações que ousem não se submeter ao padrão-dólar. Outro privilégio é o controle absoluto sobre o sistema Swift, responsável pelas operações de pagamento das transações internacionais. Arbitrariamente, excluem empresas e nações do sistema, impedindo que recebam ou efetuem pagamentos referentes às suas trocas comerciais.
Para exemplificar: quando Saddam Hussein anunciou que o Iraque passaria a vender petróleo sem uso do dólar, foi imediatamente eliminado, e seu país, invadido. Exatamente o mesmo sucedeu com Muammar al-Gaddafi, na Líbia. E o “sonho de consumo” ainda inclui Síria, Rússia, Irã, Venezuela, pois todos esses ousam comercializar petróleo fora do padrão-dólar.
Desde o início, duas nações se opuseram ao livre trânsito de capitais: Índia e China. Esta última tinha iniciado um processo de “reforma e abertura” um ano antes (1978) do advento do neoliberalismo. Ambas não só não aceitaram o livre trânsito de capitais e a desregulamentação monetária como passaram a controlar e a direcionar a entrada e saída de capitais. Mesmo assim os capitais reais dos EUA e Europa se deslocaram para lá.
Os capitais reais, industriais, nos Estados Unidos e Europa, além da queda na taxa de lucros, enfrentavam naquele momento os juros crescentes que tinham de pagar aos donos do capital monetário, o que reduzia ainda mais suas taxas de lucro. Os proprietários do capital monetário foram os grandes beneficiados pelo neoliberalismo. Ora, os capitais reais pagavam menos juros aos donos do capital monetário (normalmente bancos estatais) na Ásia, e esse foi um fator decisivo para seu deslocamento. O outro certamente foi que pagavam comparativamente menos ao capital variável (força de trabalho) asiático, coisa que já mudou significativamente, e mesmo assim o desenvolvimento industrial na região continua muito superior ao do Ocidente. Apesar das crises monetárias asiáticas (a de 1997 afetou os chamados “tigres asiáticos”, e a de 1998, os chamados “gansos asiáticos”), daí em diante praticamente todas as nações da Ásia passaram a seguir o exemplo da Índia e China. Todas passaram a controlar a entrada e saída de capitais. E o resultado disso é visto no gráfico abaixo.
Gráfico 1: Participação (%) no PIB mundial, por paridade do poder de compra — 1990-2019
*China, Índia, Vietnã, Coreia do Sul, Tailândia, Malásia e Indonésia.
Fonte: Elaboração própria, juntamente com Paulo Roberto Rivera (FMG-RS), a partir de dados obtidos no site do Banco Mundial. Dados disponíveis em: < https://databank.worldbank.org/source/world-development-indicators >.
4. A tendência predominante no mundo é a multipolaridade
A contradição fundamental, básica, da sociedade mundial atual, capitalista, é entre capital e trabalho, entre os proprietários do capital e os proprietários da força de trabalho. É certo que não há por parte da grande maioria dos proprietários da força de trabalho consciência dessa contradição e, muito menos, organização para superá-la.
É também um fato que uma das maneiras de intensificar a expropriação de mais-valor é a superexploração das crianças, dos jovens, das mulheres, dos negros, dos indígenas e dos amarelos, além de dividir ainda mais os que só têm sua força de trabalho para vender — a grande massa mundial de assalariados.
Assim como é certo que o aquecimento global e as catástrofes ambientais decorrentes, bem como as doenças e pandemias, exigem mudanças globais na matriz energética e um sistema global de prevenção à saúde.
Mas há muito o capitalismo vive na sua etapa superior, imperialista, com diferenças significativas entre a atualidade e cem anos atrás. Vale dizer, é tão flagrante a superioridade militar, econômica, política e ideológica dos EUA sobre as demais potências capitalistas que, sobretudo com a vigência do neoliberalismo, aquele país pretendeu tornar o mundo unipolar. Quem dirige e organiza a exploração e a opressão no mundo de hoje é o imperialismo estadunidense. Diferentemente de há cem anos, quando existia a disputa entre várias potências imperialistas por uma nova partilha do mundo.
As potências capitalistas se submetem aos ditames dos EUA. Seus Estados nacionais renunciaram à soberania em grande medida. Nos países capitalistas menos desenvolvidos, como na América Latina, seus Estados nacionais se submetem ainda mais. Os EUA buscam intervir em todos os “órgãos centralizados de poder” dos Estados nacionais, aberta ou veladamente. Algumas nações, como Colômbia, Brasil, Canadá e Austrália, entre outras, aceitam de bom grado essa interferência. Suas classes dominantes locais têm satisfação em ser submissas, em não querer a soberania de suas nações. É tamanha sua vocação à dependência, à submissão, que até teorizam sobre isso.
Da obra de Lênin (1982a), O imperialismo fase superior do capitalismo, se depreende que os principais traços da política imperialista à época eram: a reação em toda a linha, a intensificação do jugo colonial e da opressão nacional, bem como as guerras entre as nações imperialistas. A reação em toda linha, como Trump mostrou, não mudou. Porém, já que não mais existem impérios coloniais, a política imperialista visa constranger, limitar, eliminar a soberania das nações.
Portanto, a luta das nações por soberania, e a dos povos, por emancipação, têm agora um alvo: acabar com o poder unipolar que os EUA tentam manter. Quanto mais isso for acontecendo, melhor para as nações e mais fácil para os povos fazerem valer seus interesses. Quando a onda neoliberal parecia avassaladora, global, notadamente após a dissolução da URSS, chegou-se a falar em “fim da história”. Hoje as coisas já são bem diferentes.
Na esteira do processo de fortalecimento do multilateralismo liderado pela Ásia, vão surgindo alternativas para contornar e superar o padrão-dólar. Rússia e China já comercializam entre si praticamente sem o uso do dólar. Outras nações vão paulatinamente seguindo esse caminho. Resta ao império impor sanções comerciais de toda ordem àqueles que buscam libertar-se do jugo do dólar. Para isso, se vale do sistema Swift. Mas também aqui o império vai sofrendo derrotas. Quando da exclusão do Irã do sistema Swift, por ironia, os principais parceiros dos EUA na Europa — Inglaterra, França e Alemanha — imediatamente contornaram essa restrição criando um sistema próprio para comercializar com o Irã. Rússia e China já possuem seus sistemas alternativos e vão conquistando cada vez mais adeptos.
Há muitas contradições entre Trump e seu Partido Republicano, de um lado, e Biden e seu Partido Democrata, de outro, mas há muitos pontos em comum. Um se destaca: os EUA têm de continuar com seu poder unipolar. Ou, como diz ironicamente Biden: “voltarem a se sentar na cabeceira da mesa”. Embora tenha sido importante a vitória de Biden para enfraquecer as correntes fascistas em todo o mundo, sobretudo no Brasil, isso não vai alterar o objetivo de Estado estadunidense: ser o dominador do mundo.
O neoliberalismo, se de início fortaleceu o poder quase unipolar dos EUA, acabou abalando a base material de sua dominação. Como a base econômica do neoliberalismo é o capital fictício, ou seja, a forma do capital portador de juros especializado em se apropriar da riqueza já produzida, os EUA, desde que o adotaram, passam por uma longa estagnação econômica estrutural. O que mais cresce desde que o neoliberalismo começou é o chamado setor Fire (finanças, seguro e aluguéis).
A comparação entre cinco nações, no gráfico abaixo, dá uma ideia precisa de quanto os EUA e a Inglaterra se desindustrializaram, chegando a manufatura, mais recentemente, a representar em torno de 10% do seu PIB, enquanto, de outra parte, China, Indonésia e Coreia, mantiveram sua manufatura em um patamar sempre superior a 20% nos últimos 40 anos.
Gráfico 2: Participação (%) dos setores econômicos na formação do PIB nacional — 1980-2019
Fonte: Elaboração própria, em colaboração com Paulo Roberto Rivera (FMG-RS), a partir de dados disponibilizados pelas Nações Unidas (United Nations — National Accounts Statistics). Os dados podem ser acessados em: < https://unstats.un.org/unsd/nationalaccount/sdpubs/madt-2019.pdf >.
Apesar do esforço gigantesco do Estado estadunidense de continuar sendo o grande dominador e opressor das nações e seus povos, houve mudanças profundas na realidade mundial nas duas primeiras décadas do século XXI. Mudanças desconhecidas até então. Mudanças que se refletem em todos os aspectos da vida humana.
Dentre elas, ressalte-se: depois de 200 anos, o setor dinâmico da produção industrial se deslocou da Europa e norte da América para a Ásia; enquanto no Ocidente neoliberal as crises monetárias se tornaram contínuas, não tem havido crises econômicas na Ásia; as inovações tecnológicas foram tão intensas e extensas que já estamos entrando na Quarta Revolução Industrial. O que dá base material e destinação para a inteligência artificial, internet das coisas, big data, e assim por diante, é o sólido e crescente desenvolvimento industrial dos países asiáticos. Nunca em tão pouco tempo cresceu tanto o número de trabalhadores assalariados.
A queda na produção industrial dos EUA é tão flagrante que, antes, o país fazia guerras para afastar concorrentes e suas indústrias ocuparem os mercados, e agora, as faz apenas para destruir, para impedir que se desenvolvam. Destrói boa parte da infraestrutura do Iraque, Líbia, Síria, entre outros, mas os que ajudam na reconstrução desses países são outras nações. Os EUA também fecham fábricas na América Latina.
Desde a crise monetária de 2007-2008, os EUA e a Europa têm praticado uma política de “austeridade fiscal” que mantém a produção estagnada. Enquanto isso, a Iniciativa Cinturão e Rota, lançada pela China em 2013, abrange um número cada vez maior de países, com imensas obras de infraestrutura, transporte, dutos, entre outros, propiciando um novo impulso industrial nos países que a integram. Muitas das áreas e nações que fazem parte dessa iniciativa já tinham planos de desenvolvimento econômico em andamento e os conectam. Em geral os Estados da Ásia são, na atualidade, indutores do desenvolvimento econômico.
A África se beneficia cada vez mais do desenvolvimento da Ásia, e em várias de suas nações o Estado passa a induzir o crescimento econômico. A União Europeia, não obstante a presença de uma força a serviço da guerra como a Otan, já tem como principal parceira comercial a China; e vem participando de maneira mais autônoma nos fóruns internacionais.
O recente acordo envolvendo os dez países da Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático) mais China, Japão, Coreia do Sul, Nova Zelândia e Austrália está voltado para o desenvolvimento industrial e o comércio. A Asean é um bloco econômico formado por Vietnã, Laos, Camboja, Tailândia, Mianmar, Brunei, Malásia, Cingapura, Indonésia e Filipinas, tendo como nações observadoras o Timor-Leste e a Papua-Nova Guiné. Com uma população de mais de 600 milhões de habitantes, já é a terceira força econômica da Ásia, depois de China e Índia.
O Irã mantém sua soberania e a ajuda à reconstrução do Iraque, e fez um acordo com a China de longo prazo. A Síria manteve sua soberania e contou com o apoio da Rússia para segurar o apetite dos EUA e Israel. A Rússia não apenas mantém sua soberania como assegura instrumentos de defesa capazes de dissuadir aventuras guerreiras dos EUA, e, junto com a China e outros países da Ásia, tem projetos de longo prazo na OSC (Organização de Cooperação de Xangai). Desta participam China, Rússia, Índia, Paquistão, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão, o que dá quase 40% da população do planeta. A tendência que vai se firmando no mundo é a multipolaridade.
As crises econômicas de repercussão mundial nesses 40 anos de neoliberalismo têm sido fundamentalmente crises monetárias. Muitos se apressam a falar em “crise mundial do capitalismo” e insistem que o neoliberalismo é o capitalismo na atualidade. Nem uma coisa nem outra. Ocorreu, com o neoliberalismo, certa bifurcação na globalização capitalista: o Ocidente priorizando o D — D’ (capital fictício), e o Oriente, o D — D — M — D’ — D’ (capital real). Essas duas formas, intrínsecas ao capital portador de juros, acompanharão o capitalismo até seu desaparecimento. A primeira acarreta crises puramente monetárias, e a segunda, crises de superprodução de mercadorias.
Que o capital portador de juros, que é a base do sistema de crédito, vai acompanhar o capitalismo até seu desaparecimento, já tinha sido expresso por Marx em O Capital:
“Finalmente, não resta a menor dúvida de que o sistema de crédito servirá como poderosa alavanca durante a transição do modo de produção capitalista para o modo de produção do trabalho associado; mas somente como um elemento em conexão com outras grandes revoluções orgânicas do próprio modo de produção. Em contrapartida, enquanto o modo capitalista de produção continuar a existir perdurará também, como uma de suas formas, o capital portador de juros, que de fato constitui a base de seu sistema de crédito.” (MARX, 2017, p. 667, grifos nossos).
Pode-se afirmar que “outras grandes revoluções orgânicas do próprio modo de produção” ocorreram no Vietnã e sobretudo na China, mas é duvidoso que elas tenham ocorrido nas nações capitalistas da Ásia que se desenvolveram intensamente nas primeiras décadas do século XXI, enquanto EUA e Europa tiveram um crescimento pífio. O vertiginoso crescimento industrial da Tailândia, Indonésia, Coreia do Sul, Malásia, Índia, Singapura, Filipinas e Paquistão, e de outras nações da Ásia e África, tem se dado sob o capitalismo. Em muitas delas vigora um capitalismo de Estado.
As nações árabes, que começaram a se formar com a dissolução do Império Turco, sabem que são beneficiadas pela Iniciativa Cinturão e Rota, o que lhes possibilita maior soberania. Mesmo dentro da Otan, a Turquia vai mostrando maior zelo pela sua soberania.
As atuais crises econômicas, chamadas mundiais, se refletem diferentemente nas regiões onde cresce a industrialização e onde esse crescimento não existe. A crise de 2007-2008 é um exemplo. É evidente que ela reduziu em certa medida a exportação dos produtos manufaturados das nações citadas acima para o Ocidente, mas elas têm um mercado interno gigantesco e vigoroso.
A distinção entre crise de superprodução e crise monetária já tinha sido feita por Marx em O Capital. Ele acrescenta uma nota ao primeiro livro de O Capital, depois que estuda em profundidade o sistema de crédito no capitalismo. Diz ela:
“A crise de dinheiro, definida no texto como fase especial das crises gerais de produção e comércio, distingue-se do tipo particular de crise de dinheiro que pode surgir independentemente, repercutindo sobre o comércio e a indústria. São crises cujo centro motor é o capital-dinheiro, exercendo sua ação imediata na esfera dos bancos, bolsas de valores e finanças”. (MARX, 1971, p. 152).
As crises nas nações onde domina o neoliberalismo são crises cujo centro motor é o capital-dinheiro. A de 2007-2008 foi exatamente uma crise como a define Marx.
A pandemia demonstrou a necessidade de ações coordenadas em nível mundial. A ONU e um de seus organismos (a OMS) têm tido uma atitude positiva de integrar esforços no combate à pandemia e fazer esforços para que as vacinas cheguem a toda a população, e não apenas à dos países mais ricos. A sabotagem a essas iniciativas pelo governo Trump e a insistência dele em manter as medidas unilaterais de bloqueio econômico e sanções, assim como seu afastamento do acordo climático e do acordo nuclear com o Irã, foram desgastando ainda mais o unilateralismo.
Em todos os continentes o principal inimigo das nações e seus povos é o imperialismo estadunidense. A Europa vive uma situação ambígua: existe a União Europeia, que em tese é uma associação de nações soberanas. Entretanto, seus Estados não podem emitir suas próprias moedas e a segurança de suas fronteiras é garantida pela Otan, que é um instrumento militar sob controle dos EUA. Qual a lei internacional que justifica a presença da Otan no Afeganistão? Mas também na Europa cresce a luta pelo multilateralismo.
Nestes 40 anos de neoliberalismo, praticamente todas as guerras e golpes de Estado no mundo foram realizados ou provocados pelos EUA. Seu pretexto, de que defendem a liberdade, a democracia e os direitos humanos, vai sendo cada vez mais desmascarado sobre o seu próprio solo. Quanto mais multilateralismo, mais condições tem o povo estadunidense de fazer valer seus direitos, assim como o povo brasileiro e os demais povos do mundo.
5. América Latina: Estados contra suas próprias nações?
As nações da América Latina são a comprovação cabal de que nação é a essência política da expansão do capitalismo pelo mundo em todas as suas fases e que a globalização, qualquer que seja o entendimento sobre ela, começa com o desembarque das naus e caravelas. Todas elas têm suas origens na época do predomínio da manufatura capitalista na Europa. Todas elas se formam quando do predomínio da indústria na Europa (sobretudo na Inglaterra). Seus Estados nacionais se consolidam na época do predomínio dos monopólios, do imperialismo. Todas elas (a exceção é Cuba, e agora, em grande medida, a Venezuela) ainda não conquistaram a verdadeira independência.
A primeira fase da colonização das Américas, Marx dizia, visava a criar burguesia na Europa, e a segunda, assalariados nas Américas. A ferocidade, violência e brutalidade dos impérios coloniais (Portugal, Espanha, Inglaterra e, em muito menor grau, Holanda e França) adotadas nas Américas não foram maiores que as adotadas na Ásia e África.
Todas as nações da América Latina surgiram depois da guerra de independência dos EUA contra a Inglaterra e da Revolução Francesa. Esses dois acontecimentos influíram em um processo que já amadurecia. Portugal e Espanha formavam a garganta por onde passava o ouro e a prata da América Latina para a Europa, e o estômago era principalmente a Inglaterra e também a França. Portugal, em particular, desde o Tratado de Methuen, de 1703, se torna uma quase colônia da Inglaterra, a qual não se importa com a independência do Brasil e até a estimula.
Com a América Espanhola, ela foi mais severa. Primeiro, porque a Espanha ainda era uma rival de peso; segundo, porque, como a Espanha colonizou a América por intermédio de vice-reinados, era melhor aproveitar para dividir em várias nações a região, quando esta se tornasse independente. E assim ela fez. Daí seu combate às pretensões de Simón Bolívar de ter uma nação grande de idioma espanhol. Melhor dividir para governar. Ainda mais que a união das colônias do Norte na guerra de independência e a formação dos EUA eram uma lição ainda muito recente. Dessa forma, México, Argentina, Brasil e as demais nações se tornam independentes com ajuda inglesa e, desde o início, devendo para os bancos britânicos.
Satisfazendo os interesses ingleses, Portugal, antes da independência do Brasil, proíbe e fecha as manufaturas e fábricas existentes na colônia. A Inglaterra ajuda no translado da corte portuguesa, que, logo que chega, “abre os portos para as nações amigas”, ou seja, a Inglaterra.
San Martin e José Bonifácio eram maçons de loja inglesa e conspiraram pela independência com conhecimento de seu governo. Sem entrar em detalhes das demais independências, vale ressaltar que desde o início a soberania desses recém-criados Estados nacionais era muito limitada. Esse domínio inglês se estendeu por todo século XIX, até as indústrias inglesas serem acossadas pela concorrência estadunidense e alemã. Desde a Primeira Grande Guerra, o domínio inglês vai sendo substituído pelo dos EUA, o que se intensifica depois da Segunda Guerra Mundial e se estende até hoje. No intervalo entre as duas guerras, os Estados do México, Brasil e Argentina se consolidaram com Cárdenas, Getúlio e Perón. De tal sorte que México e Brasil foram os países que mais se desenvolveram, e tiveram uma intensa industrialização entre 1930 e 1980.
Para evitar que essas nações conquistassem uma soberania cada vez maior, com reformas estruturais que algumas começavam a fazer, o imperialismo estadunidense engendrou a famigerada Doutrina de Segurança Nacional e coordenou os golpes e as decorrentes ditaduras militares no Brasil, Chile, Argentina e Uruguai. Todos eles contando com boa parte das classes dominantes locais.
Desde então os Estados-nação na América Latina contam no geral com sete órgãos centralizados que materializaram seu poder: Executivo, Legislativo, Judiciário, Forças Armadas, mídia, bancos e igrejas. Todos eles gozam de certa autonomia uns dos outros, são centralizados e, no geral, subservientes aos interesses e à propaganda dos EUA.
Dois aspectos centrais para entender o Estado na atualidade, tanto na América Latina como no restante do mundo, já tinham sido examinados por Engels e Marx: situações em que o Estado tem um caráter transitório, híbrido, servindo às duas classes em luta, e os órgãos centralizados de poder criados pela burguesia desde o absolutismo monárquico.
Mesmo discordando de Engels e Marx sobre o conteúdo burguês e híbrido das monarquias absolutas, Perry Anderson destaca o entendimento de ambos sobre o tema:
“Engels, numa máxima famosa, declarou-as produto de um equilíbrio de classe entre a antiga nobreza feudal e a nova burguesia urbana: “Excepcionalmente, contudo, há períodos em que as classes em luta se equilibram (Gleichgewicht halten)”, de tal modo, que o poder de Estado, pretenso mediador, adquire momentaneamente um certo grau de autonomia em relação a elas. Marx, por seu lado, afirmou repetidamente que as estruturas administrativas dos novos Estados absolutistas eram um instrumento tipicamente burguês. “Sob a monarquia absoluta”, escreveu, “a burocracia era apenas o meio de preparar o domínio de classe da burguesia.” Em outra passagem, Marx declarava: “O poder do Estado centralizado, com os seus órgãos onipresentes: Exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura — órgãos forjados segundo o plano de divisão do trabalho sistemática e hierárquica — têm sua origem nos tempos da monarquia absoluta, como arma poderosa nas suas lutas contra o feudalismo.” (ANDERSON, 2004, p.16, grifos nossos).
A importância desse entendimento de Engels e Marx acerca do Estado no período de formação das nações europeias é decisiva para se entender o Estado no período atual.
Na América Latina, desde o final da Segunda Grande Guerra o Estado tem essa dualidade: serve aos interesses das classes que aspiram à soberania de suas nações e serve aos interesses das classes que, associadas ou aliadas ao imperialismo estadunidense, desejam reduzir e até mesmo eliminar essa soberania. Esse tem sido o centro das lutas sociais desde então.
Podemos distinguir dois períodos econômicos nas nações da América Latina: de 1945 a 1979, com a política generalizada de “substituição das importações” estimulada pela Cepal, essas nações continuaram a se industrializar (notadamente o México e o Brasil nesse período cresceram mais de 5% ao ano!). Surge a famosa “teoria da dependência”, com base neste tripé: indústria estrangeira, nacional e estatal.
De 1980 em diante, predomínio do neoliberalismo. As primeiras vítimas são México, Brasil e Argentina, que sofrem já em 1982 os impactos de ter suas dívidas externas aumentadas unilateralmente e da noite para o dia em cerca de 20%. Começa um longo período de desindustrialização, que permanece. E sem um processo de industrialização autônomo é inviável, como os fatos têm comprovado, uma nação manter a soberania.
Nesses dois períodos se consolidaram os sete órgãos onipresentes de poder dos Estados nas nações da América Latina: Executivo, Legislativo, Judiciário, Forças Armadas, bancos, igrejas e mídia. Todos eles centralizados e com certa autonomia um em relação aos outros. Os únicos nos quais as forças democráticas e populares, interessadas na soberania da nação, tiveram maior presença foram: Executivo, Legislativo e, em menor grau, mídia e igrejas.
Tomando como exemplo o Brasil, esses sete órgãos de poder centralizados do Estado estão submissos ou ao setor fascista do imperialismo ou ao setor intervencionista “democrático”. Uma parte utiliza a bandeira criada pelos positivistas como escudo para sua submissão. Examinando cada um desses poderes pode-se concluir que todos defendem, de uma maneira ou de outra, a submissão aos interesses do imperialismo. Todos concordam com os gigantescos retrocessos nos direitos dos trabalhadores, com a privatização das estatais estratégicas, o desmonte dos bancos públicos e do ensino público. As Forças Armadas, desde a famigerada Doutrina de Segurança Nacional, tentam justificar sua adesão submissa à política belicista dos EUA com o absurdo argumento da existência de um choque entre as civilizações ocidental e oriental. A bem da verdade, em lugar de civilização ocidental, deveriam dizer civilização “estadunidense”, porque a base da chamada civilização ocidental é a cultura greco-romana.
No Judiciário predomina o lawfare (utilização do Poder Judiciário para defender a submissão ao imperialismo estadunidense) contra todos que se levantam para defender os direitos do povo e da nação. No Legislativo predominam amplamente os submissos. Nas igrejas, exceto em alguns setores da Igreja Católica e dos protestantes tradicionais, há um crescimento vertiginoso, e com presença na mídia, de pastores submissos e aproveitadores. Os bancos (que são Estado porque na verdade também emitem moeda e possuem a grande maioria dos títulos da dívida pública) também defendem a submissão. A mídia no seu conjunto expressa bem o que pensam as classes dominantes na sua grande maioria: uma parte submissa à ala fascista do imperialismo (Trump), e a outra, à ala intervencionista “democrática” (Biden).
Em conclusão, há um domínio das classes que querem a submissão ao imperialismo de todos os órgãos centralizados de poder do Estado no Brasil. As classes que se opõem à submissão e aspiram a uma nação verdadeiramente independente só possuem franjas desses poderes do Estado. Uma análise mais pormenorizada das classes sociais no Brasil não é o objetivo deste ensaio, mas como a política é a economia concentrada, vislumbram-se os contornos gerais dessas classes na própria análise dos poderes do Estado. Nesse sentido temos, na atualidade, um Estado contra a nação. Ainda há, felizmente, as amarras da Constituição; mas esta já foi reformada muitas vezes e, quase sempre, para pior.
Em maior ou menor grau, o dito para o Brasil vale para os demais países da América Latina (em maior grau, por exemplo, quanto à Colômbia, que tem bases estadunidenses em seu solo; em menor, no caso da Argentina; é claro, Cuba e Venezuela são exceções).
O neoliberalismo nas duas primeiras décadas facilitou o domínio dos EUA em várias regiões do globo. O livre trânsito de capitais com desregulamentação monetária era a forma como se enfraquecia a soberania dos Estados nacionais em vários lugares. Esses Estados ficavam impedidos de implementar uma política econômica independente e tinham de prestar contas aos organismos internacionais então completamente controlados pelos EUA, como o Banco Mundial e, especialmente, o FMI. O chamado Consenso de Washington (1989) era um conjunto de regras a que os países tinham de se submeter, embora significassem estagnação e desemprego.
Nas duas primeiras décadas do século XXI, a própria essência econômica do neoliberalismo voltou-se contra o seu criador. As indústrias dos EUA começaram a se tornar obsoletas, e o crescimento do PIB do país se deveu preponderantemente ao setor Fire. Seus investimentos em ciência e tecnologia declinaram, chegando a 0,7% do PIB. A concentração de renda disparou nestes 40 anos de neoliberalismo (o que tem ocasionado revoltas sociais que tendem a se aprofundar). Os EUA não dispõem de mais capital industrial para oferecer à América Latina, ao contrário, algumas das suas multinacionais fecham as portas nos países da região. O enfrentamento equivocado que o país deu à pandemia, agravado pela inexistência de uma saúde pública, abalou seu prestígio de “grande nação”. Continua com gigantescos gastos em armamentos, com o controle do sistema Swift, com o dólar como a mais importante moeda de circulação internacional e com bancos poderosos. Já não é mais a maior economia do mundo por paridade de poder de compra (critério oficial do FMI). Seus aliados principais na OCDE estão estagnados. Vai se tornando cada vez mais difícil manter o unilateralismo do final do século passado.
Os principais fornecedores das mercadorias industrializadas consumidas na América Latina são asiáticos. É também a Ásia o principal comprador das mercadorias produzidas na América Latina. Isso nunca tinha ocorrido. É uma situação completamente nova. E não há por parte de nenhuma nação asiática o interesse em se meter nos assuntos internos dos países latino-americanos, muito menos de interferir militarmente. Tudo isso vai criando uma situação nova para os países da América Latina: os EUA ainda exercem um poder político quase total sobre os países da região, com as exceções mencionadas, mas não exercem mais o poder econômico. Dito de outra forma, os grandes proprietários de capital e terras dessa região se sentem constrangidos a agradar a dois senhores: os que os controlam política, judicial, ideológica e militarmente, e os que lhes possibilitam a realização do mais-valor, a obtenção dos seus lucros.
6. O caminho para conquistar a soberania nacional
Na atualidade praticamente 200 nações têm assento na ONU. Todas elas formalmente independentes. A independência só é verdadeira quando as nações têm soberania, quando seus Estados podem escolher o que é melhor para sua nação. Nas duas primeiras décadas, o neoliberalismo fez com que muitos Estados nacionais se transformassem de indutores da industrialização, do crescimento econômico, da ciência e tecnologia, em avalistas do livre trânsito de capital, aceitando a desregulamentação monetária. Nesse período, ao tempo que alguns proclamavam o fim da história, outros afirmavam, com palavras diferentes, o fim próximo das nações, ou então sua perda de relevância, ou, ainda, que elas não seriam mais politicamente significativas. Diziam que a globalização, o transnacionalismo, o sistema mundial de redes, o pós-modernismo, a mundialização da comunicação, os territórios móveis e indefinidos, a tendência ao localismo, os sistemas políticos pós-nacionais (dentre eles, citavam a União Europeia; agora poderiam citar também a Bolívia, um Estado com várias nações); prenunciavam que o sistema político de nações estava se tornando obsoleto, que perderia relevância política, que estava se originando uma nova configuração política. Em nosso entender, a história atropelou indiferentemente todos esses vaticínios. Merece destaque, até por ser um grande conhecedor do tema, Hobsbawm, que dizia:
“[…] apesar de sua evidente proeminência, o nacionalismo é, historicamente, menos importante. Não é mais, como antes, um programa político global, como se poderia dizer que foi no século XIX e início do XX. […] Não é implausível apresentar a história do mundo eurocêntrico do século XIX como aquele da “construção das nações”, assim como fez Walter Bagehot. […] Estaria alguém inclinado a escrever a história do final do século XX e do início do século XXI em tais termos? Parece improvável. Pelo contrário, essa teria de, inevitavelmente, ser escrita como a história de um mundo que não pode mais ser contido dentro dos limites das “nações” e “Estados-nações”, como estes costumavam ser definidos, tanto politicamente, ou economicamente, ou culturalmente, ou mesmo linguisticamente”. (HOBSBAWM, 2004, p. 214).
A globalização é inexorável pela essência econômica do capitalismo. E o instrumento político desse sistema, em todas as suas fases, é a nação. Continuará sendo enquanto ele existir, e, na fase de transição para outro sistema, ela continuará tendo relevância. Tanto é que os principais dirigentes dessa transição têm sido os campeões em defender a soberania de suas nações. E não existe nação sem Estado, que é o instrumento político que amalgama a unidade territorial, a conexão econômica, o território comum, o idioma oficial. A base de uma nação é o seu povo; se ele não existe, ela não existe. As nações têm diferentes origens, formação e consolidação. Algumas recentes, fruto da luta contra o imperialismo, têm inclusive origem em civilizações milenares como o Egito, o Irã, a Índia e a China (esta, aliás, com talvez a maior continuidade histórica). Outras, como as das Américas, fruto da transição capitalista do predomínio da manufatura para o da indústria.
Nas duas primeiras décadas do século XXI, o que mais se desenvolve no mundo são nações cada vez mais soberanas, com seus Estados indutores. Principalmente na região do planeta que é hoje a fábrica do mundo. Politicamente o neoliberalismo tentou frear essa tendência e revertê-la, manter o unilateralismo a ferro e fogo. Não conseguiu porque se apoia no capital fictício, enquanto muitas nações se apoiam no capital real.
Ao contrário do que pensava Hobsbawm, o século XXI está sendo escrito por nações cada vez mais caracterizadas por sua unidade territorial, econômica, cultural, idiomática (julgamos que idioma é uma criação da nação, e unidade linguística era própria de Estados pré-nacionais) e política (Estados cada vez mais soberanos).
Mas isso não vale para muitas nações. O Brasil, por exemplo, é uma “nação em si” (formalmente independente), mas não uma nação “para si” (verdadeiramente independente). O caminho para conquistar a soberania nacional passa por mudar a composição dos seus órgãos centralizados de poder de Estado, eliminar alguns deles e criar outros. E isso será obra unicamente do povo brasileiro (povo são as classes exploradas e oprimidas em determinados períodos históricos e, quando se trata da soberania de uma nação, todas as classes que lutam por ela).
Mas para que o povo tenha consciência da necessidade de lutar pela soberania do Brasil, é preciso que a classe de vanguarda, o proletariado, infunda nele essa compreensão. O proletariado é a classe de vanguarda porque o capitalismo há muito “proclamou a produção do mais-valor como finalidade última e única da humanidade”. E quem realiza essa produção do mais-valor são os que vendem a força de trabalho.
O povo profundo do Brasil é a grande força capaz de realizar vitoriosamente a luta pela soberania da nação. Esse povo profundo não é uno; só o será quando conquistar uma nação soberana; é no processo dessa conquista que ele se torna uno. É um povo que já tem consolidado um idioma comum muito rico, um território há muito sem disputa de fronteira, uma rica cultura acumulada há séculos e sempre se renovando, uma estrutura econômica conexa, embora de dimensões continentais, e um Estado que já é formalmente independente há muito tempo. Mas o neoliberalismo danificou profundamente a nação e aumentou a submissão dela ao império. A classe e o povo não vão chegar espontaneamente à consciência da necessidade de um Brasil soberano.
É preciso uma organização guiada pelo socialismo científico e profundamente enraizada na classe e no povo para que essa consciência seja adquirida. Essa organização existe, e vai completar cem anos; mas em toda a sua trajetória nunca enfrentou esta possibilidade: a de presenciar a desintegração da nação brasileira. Essa é a vontade das forças que controlam o Estado nacional e que tanto esforço têm feito para dividir o povo brasileiro, criar falsos inimigos, proteger e defender o inimigo principal.
No afã de produzir mais-valor, mesmo em um país se desindustrializando como o nosso, os proprietários de grandes extensões de terra e do grande capital (real ou fictício) mantêm o racismo, a dominação sobre as mulheres, a perseguição aos jovens, o trabalho infantil. Como há mais de 14 milhões de desempregados (não têm nem para quem vender sua força de trabalho), um gigantesco exército industrial de reserva, vão continuar como políticas oficiosas a violência, o genocídio reforçado pela pandemia, o assassinato amiúde de pobres, pretos e jovens, o feminicídio. O desprezo pelos idosos também vai permanecer.
É uma verdade filosófica que aquilo que é necessário acaba se impondo. A soberania do Brasil é necessária, e para que ela se imponha um conjunto de elementos que ainda não estão postos vão se tornando indispensáveis. Dentre eles, ressalte-se como roteiro da caminhada: tomar consciência da organização de vanguarda sobre a base econômica do neoliberalismo e sua essência política; conhecer melhor o perfil atual da classe de vanguarda, a classe que produz mais-valor, e vincular-se mais profundamente a ela; conhecer as necessidades do povo profundo e saber atender a suas demandas mais imediatas; entender quais são e como operam os órgãos centralizados de poder do Estado e saber confrontar os adeptos da submissão em todos eles; atualizar seu programa salientando a importância do controle da entrada e saída de capitais monetários e do crédito direcionado à produção; e, levando em conta que todas as organizações políticas representam classes ou camadas de classe, examinar quais as que defendem a submissão e quais a combatem.
No momento, o alvo tem de ser as forças que defendem a submissão e atacam a democracia. É importante dividir os adeptos da submissão. É importante unir os que defendem a democracia. A tarefa mais urgente é atender às necessidades imediatas do povo profundo, tão penalizado por uma política econômica submissa e antipovo e pelo enfrentamento irresponsável da pandemia.
A grande batalha na arena internacional é para que o multilateralismo supere cada vez mais o unilateralismo. E essa é a tendência dos tempos atuais: cada vez mais nações exercendo sua soberania. Isso ajuda as lutas dos povos em todas as partes do mundo, inclusive as do povo estadunidense e do povo brasileiro.
7. Considerações finais
Espera-se ter salientado neste ensaio a importância de estudar O Capital, de modo especial a seção quinta do terceiro livro, para entender o mecanismo fundamental do neoliberalismo. É nessa obra que está descrito o caráter duplo do capital portador de juros.
Como a base econômica do neoliberalismo é a forma fictícia do capital portador de juros, se ele tivesse se globalizado a economia estaria estagnada no globo, e não foi isso o que aconteceu em boa parte do mundo, sobretudo na Ásia. Ou seja, não apenas o neoliberalismo não se globalizou como não poderia ter se globalizado.
Este ensaio também pretendeu salientar que o neoliberalismo foi uma política do Estado estadunidense para tornar o mundo unipolar. Ao contrário do pretendido, o neoliberalismo debilitou a economia dos EUA, que passou a ficar estagnada, crescendo apenas, basicamente, o setor Fire (finanças, seguro e aluguéis), havendo inclusive uma relativa desindustrialização, que minou a relativa unipolaridade que existia no final do século passado.
O ponto que queremos deixar para estudos posteriores pode ser assim resumido: poderão os EUA abandonar o neoliberalismo para voltar a crescer? Apesar da divisão profunda entre neoliberais fascistas e neoliberais intervencionistas democratas, o setor que decidiu a eleição não é neoliberal. A composição da equipe de Biden e suas primeiras medidas demonstram que ele vai continuar no caminho neoliberal intervencionista, mas como vai sair da crise econômica?
Ao salientarmos a tendência de crescimento do multilateralismo no mundo, fica outra questão para o futuro: que tipo de providências tomarão aqueles que se opõem ao multilateralismo?
Ao tratar dos Estados-nação na América Latina, o ensaio pretendeu demonstrar o quanto o neoliberalismo fincou profundas raízes nos órgãos centralizados de poder do Estado nessa região. Se isso procede, próximos estudos terão de examinar as propostas e meios para alterar essa situação, sob pena de a submissão aos ditames do império continuar predominando. Sobre alguns desses elementos o ensaio tentou alertar, quando tratou da necessidade de conquistar a verdadeira independência.
A insistência deste ensaio em reafirmar que a finalidade última e única do capital é a extração do mais-valor também se deve a que o tema parece ter caído em desuso nos trabalhos acadêmicos e no debate em geral. Ao contrário das aparências, a relação entre os proprietários dos meios e instrumentos de produção e os proprietários da força de trabalho é mais globalizada do que em qualquer outro período histórico. E só por meio dela é extraído o mais-valor. Como esse mais-valor é repartido entre os proprietários dos instrumentos de produção, do solo e de títulos de propriedade, não cabia a este ensaio examinar. Apenas para nos referir à questão, o mais-valor extraído da força de trabalho é mundial, global, porque não tem como base o trabalho concreto, e sim o trabalho abstrato, trabalho vivo de todo o proletariado. Daí decorre que os acionistas dos “fundos de investimentos” têm suas vidas nababescas com base no mais-valor produzido por todo o proletariado, com peso muito grande dos proletários da Ásia.
A contradição fundamental no mundo ainda é entre o capital e o trabalho. Dela decorre, nos tempos atuais, acontradição principal que destacamos, entre o império e as nações e povos dominados, e o aspecto principal nessa contradição é a oposição entre unilateralismo e multilateralismo. Quanto mais multilateralismo, mais condições as nações têm de se tornar soberanas, e os povos, de se emanciparem.
O Brasil, na atualidade, tem os principais órgãos centralizados de poder do Estado contra a soberania da nação e os interesses do seu povo. Contudo, o povo brasileiro conquistará na luta a soberania de sua nação e um Estado voltado a defender seus interesses, se seguir a tendência dos tempos.
A soberania das nações é decisiva para um mundo com um futuro compartilhado.
Dedicatória
Este ensaio é dedicado à memória de Haroldo Lima e de sua trajetória de vida. Nela avultam o desbravamento, a audácia, a ciência e a generosidade.
*Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Referências bibliográficas
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