O sujeito da revolução será o proletariado. Alguns acham que serão os alienígenas.
Um dos debates mais instigantes do nosso tempo diz respeito à possibilidade ou não da eclosão de um novo período de revoluções de caráter socialista, como naquele ciclo virtuoso vivenciado pelo mundo nos primeiros sessenta anos do século XX. Isso em âmbito mundial. O que, claro, tem desdobramento para a seguinte pergunta: é possível uma revolução de caráter socialista em outros países e no Brasil? Reparem que “revolução” é um processo histórico e não um fato circunscrito à conquista do poder político. Além disso, pensando em “revolução”, não basta a conquista do poder político, ainda que, por suposto, conquista-lo é condição essencial, a prioridade absoluta, para iniciar essa trajetória histórica de superar o capitalismo.
Dentro desse debate, sobre as possibilidades – ou não – de um novo ciclo revolucionário, o “socialismo no século XXI”, existe uma questão que me parece essencial, que é a do “sujeito histórico” que comandará esse processo revolucionário. Haverá um sujeito histórico? Em sociologia e na historia, “sujeito histórico” é a classe social ou ainda, caso queiram, as forças que comandam as grandes transformações que reestruturam, reorganizam (revolucionam, portanto) os modos de produção e as relações sociais estruturadas a partir deles. Indo ao ponto que nos interessa absolutamente: o proletariado tem condições de ser o “sujeito histórico” de um novo ciclo revolucionário socialista, no mundo e no Brasil? Ainda mais: o capitalismo será derrotado por um processo revolucionário comandado pelo proletariado, conduzido por movimentos e partidos políticos de caráter revolucionário ou implodirá em função de um conjunto de limites, por crises sucessivas, por um processo mais longo ou mais curto de intensa estagnação, permitindo assim o surgimento de novas formas de produção não capitalistas?
Tenho comigo uma sólida impressão de que parte desse debate se perde em filigranas teóricas sobre a questão do “sujeito histórico”. Ora, me causa espanto a dúvida, ainda que reconheça a legitimidade do questionamento, especialmente por conta dos intensos desdobramentos ocorridos nas configurações do mundo do trabalho, com o desenvolvimento de novas categoria profissionais, intenso avanço do uso da tecnologia por parte significativa do proletariado para o desenvolvimento do seu trabalho, diminuição acentuada das grandes aglomerações operárias, típicas do século XIX e até meados do século XX, em fábricas e regiões fabris, expansão gigantesca dos serviços e comércio nos grandes centros urbanos, em grande parte assentado em pequenos e médios negócios, etc. Ao mesmo tempo, é preciso considerar um elemento que me parece central: tudo isso reduziu ou ampliou o proletariado? Ainda mais: o caráter revolucionário de uma classe está relacionado apenas ao seu tamanho ou, essencialmente, em função do seu papel estratégico nos setores essenciais da produção econômica a partir de determinadas frações dessa classe?
No Brasil, um panorama sobre o mundo do trabalho na atualidade
Como sabemos, o Brasil é uma nação com mais de 213 milhões de habitantes, sendo também uma das sociedades capitalistas mais desiguais do mundo, ou seja, a despeito de termos uma grande produção econômica (já fomos a 6ª economia mundial uma década atrás, atualmente a 12ª), temos também uma brutal concentração de riqueza. Os estudos são variados, mas, essencialmente, essa concentração criminosa nos aponta para a dantesca situação na qual 1% da população (pouco mais de dois milhões de pessoas!) concentra simplesmente metade da riqueza produzida no país, conforme dados do “Relatório da Riqueza Global” divulgado em junho deste ano pelo banco Credit Suísse, que pode ser acusado de tudo, exceto de ser um instrumento do “comunismo internacional”. Quando decompomos ainda mais os dados sobre pobreza e miséria, 76% da riqueza nacional é controlada, apropriada, pelos 10% mais ricos. Por qualquer estudo que possa ser feito, o povo brasileiro é composto em sua maior parte por trabalhadores (as) que vivem de salário, pouco importa aqui no que trabalham. Mas importa muito é saber que trabalham – ou tentam trabalhar – para sobreviver, submetidos a jornadas de trabalho geralmente extensas, recebendo salários muito baixos, ou naufragam no desemprego e desesperança.
A população brasileira, sendo essencialmente composta por trabalhadores e trabalhadoras, incluindo aí os filhos e filhas que ainda entrarão futuramente para o “mercado de trabalho” e a massa de aposentados e pensionistas, pode ser analisada e compreendida de modo mais abrangente, olhando os dados gerais, como seguem:
A força-de-trabalho geral ocupada vive com renda média mensal de R$ 1.795,00 (pouco mais de 1,5 salário mínimo, um rendimento baixíssimo!);
Aproximadamente 42 milhões de trabalhadores (as) atuam no chamado mercado formal, com carteira assinada, com jornada média semanal de 44 horas de trabalho;
Outros 35,6 milhões estão no trabalho informal, no setor empresarial privado e nos serviços domésticos, e não entram na categoria dos “cnpjs”, hipotéticos empreendedores/empresários (as);
Temos ainda cerca de 32 milhões de trabalhadores (as) desenvolvendo suas atividades através do uso das plataformas digitais e aplicativos, com renda média mensal de R$ 2.154,00, mas trabalhando mais de 64 horas semanais. 40% desses (as) trabalham 7 dias por semana;
Aposentados (as) e pensionistas pelo INSS somam cerca de 32 milhões, com renda média mensal de R$ 1.578,00;
Cerca de 14 milhões de trabalhadores (as) estão desempregados;
Da força de trabalho geral, cerca de 10 milhões estão empregados (as) em fábricas, mesmo levando em conta o processo agudo de desindustrialização que o país vive nas últimas décadas;
No mundo empresarial, o país tem atualmente aproximadamente 18, 5 milhões de empresas, incluindo as micro e pequenas empresas. Esses dois últimos setores somam cerca de 15 milhões de empresas e padecem de um conjunto de defasagens, ausência de financiamento adequado e enorme rotatividade. Segundo alguns estudos, em especial do SEBRAE, pelo menos três em cada dez empresas abertas encerram suas atividades com menos de cinco anos de vida.
Ora, olhando os dados acima, reafirmo, me parece um debate bizantino ficar procurando respostas para uma das questões chaves: qual é o espaço do proletariado na sociedade brasileira? Os dados falam por si! A grandiosa maioria do povo brasileiro é formada por esse proletariado dito moderno, ampliado, disperso em pequenas unidades empresariais em sua maior parte. Mesmo no campo, nas atividades agropecuárias e no extrativismo de todo tipo. Isso resulta, sem dúvida alguma, em inúmeros problemas com variados graus de complexidade para as forças políticas que têm como dimensão histórica a construção de um processo de substituição do capitalismo pelo socialismo, edificando essa transformação com base exatamente no proletariado. Como organizar essa massa para a luta revolucionária?
Aqui entram duas dimensões essenciais para as análises sobre o proletariado como sujeito transformador, a aplicação dos conceitos “Classe em Si” e “Classe para Si”, muito importantes ao marxismo e para as forças revolucionárias. Retomando do início: no âmbito de um sistema de produção específico, no nosso caso o capitalismo, via de regra, a sociedade é estruturada a partir das suas relações sociais de produção. Nas formações econômicas e sociais, o elemento central – não exclusivo, mas estruturador – é a posição que as pessoas ocupam no processo produtivo. Pouco importa para o capitalismo como elas se enxergam, como avaliam suas individualidades, orientações sexuais, etnias, gêneros, religiosidades, locais de moradia, etc. Objetivamente falando, a grande maioria do povo garante a sua sobrevivência material exercendo alguma atividade econômica remunerada pelo capital. Ou tenta assim viver. Em assim vivendo, querendo ou não, mantêm o capitalismo funcionando.
Vejam novamente os dados levantados. Independente da profissão ou ocupação, no capitalismo a esmagadora maioria das pessoas está submetida ao processo de produção e reprodução do capital na condição de trabalhadores (as) assalariados (as), estejam ou não formalizados, gostem ou não disso. Ser proletário (a) é uma condição inerente à grande maioria da humanidade no capitalismo. É o elemento “Classe em Si”. O desafio a ser enfrentado é o da conscientização da classe, o trabalho organizativo, comunicacional, ganhar corações e mentes dessa massa proletarizada para a necessidade da transformação econômica, política e social, ou seja, o salto de qualidade, quando o proletariado se transforma em “Classe para Si”. Isso em termos de revolução, porque, reparem bem, ao longo do tempo, mesmo que as lutas proletárias não assumam um caráter especificamente revolucionário, elas existem o tempo todo.
Das reivindicações de caráter economicista mais imediata, por aumento de salários e melhores condições de trabalho, por exemplo, avançando para lutas por direitos civis, por melhores condições de moradia, saúde, educação, etc. Não estou falando de lutas individuais, mas de jornadas coletivas. Nos tempos mais recentes, o crescimento de lutas pela igualdade entre gêneros, contra o racismo, na defesa dos direitos da população LGBTQIA , os movimentos de cultura das periferias, e mais uma variada gama de lutas, aparentemente desconectadas, supostamente identitaristas, localistas, são partes integrantes das lutas proletárias, ainda que não apareçam aos olhos do senso comum como tal. Mas sendo o proletariado a imensa maioria da população, as coisas estão intrinsecamente relacionadas. Afinal a manutenção de uma cultura essencialmente machista e racista, relegar a grande maioria da população a condições de vida aviltante nas periferias, atendem aos interesses diretos do capital, pois são elementos que reforçam a extração de Mais-Valia da massa trabalhadora, independente de gênero e etnia. O proletariado luta o tempo todo, buscando arrancar do capital fatias daquilo que ele próprio produz mas que acabam sendo acumuladas nas mãos da classe dominante.
O proletariado é sujeito da história em processo permanente, ainda que esse fato inquestionável nem sempre se transforme em luta revolucionária efetivamente transformadora. Vários são os motivos e seria por demais extenso analisá-los em um artigo. Mas é forçoso reconhecer que o capitalismo tem, em geral, vencido a chamada “luta de ideias”, cooptando parcelas do proletariado para a vã esperança de enriquecimento individual através da suposta – ou real em alguns poucos casos – transformação de proletários em patrões. A classe dominante no capitalismo desenvolveu um grande número de instrumentos de convencimento ideológico que exercem enorme influência sobre o modo como parcelas grandes do proletariado pensa. Consegue cravar um sinal de igualdade entre capitalismo e liberdade, democracia e progresso, ainda que a grande maioria das pessoas jamais alcance o tal progresso propagandeado e a democracia liberal burguesa seja estruturada essencialmente para a burguesia permanecer como classe dominante contando com apoio e voto do proletariado. E, essencialmente, consegue se reestruturar, se renovar tecnologicamente, mesmo enfrentando crises econômicas estupendas. Entretanto, novamente, o proletariado segue em luta. No Brasil em especial, dadas as condições trágicas da nossa economia nos dias presentes, existe uma forte tendência para que a luta pela sobrevivência ganhe cores dramáticas no próximo período. Sendo lutas mais agudas, revolucionárias, ou lutas mais pontuais, cotidianas, o proletariado é o sujeito da sua história ainda que eventualmente não tenha consciência plena disso. A classe existe em si e luta para si. A decorrência de tudo isso é: um partido que se pretenda como revolucionário, precisa ser construído – ou reforçar sua construção – entre o proletariado e com essa dimensão estratégica, a da luta pelo fim do capitalismo e construção do socialismo. Fora disso, os inúmeros partidos da classe dominante e suas frações, ou da chamada “pequena burguesia” que acredita ser possível reformar o capitalismo, torna-lo “humano”, domesticá-lo, darão conta de manter o sistema funcionando.
Se você chegou até aqui, deve estar se perguntando qual a razão de eu ter enfiado os alienígenas no título do artigo. Quem conhece o “universo” da franquia Jornada nas Estrelas (Star Trek), que já dura mais de 50 anos, sabe que aquele futuro pensado pelos criadores da (s) série (s) é essencialmente comunista, sem propriedades privadas sobre os meios de produção, sem circulação monetária, com enorme desenvolvimento das forças produtivas colocadas a serviço do progresso humano; um mundo de integração étnica, desprovido de preconceitos. O século XXIII, tempo das aventuras das diversas tripulações “Star Trek”, tem novas contradições, mas elas não são as típicas do capitalismo. Não há fome, miséria, desigualdade, espoliação imperialista, guerras de rapina. Mas como chegaram àquele tipo de organização? Após um período de guerras devastadoras, incluindo uma terceira guerra de caráter atômico, em 2063 uma nave do povo Vulcano desembarca na Terra, deflagrando a partir daí um processo “histórico” de intensas transformações por aqui que resultaram naquele século XXIII glorioso. Bem, como tem gente que acha que o capitalismo não será derrubado pela força e luta do proletariado – aquela turma que rejeita o proletariado como sujeito histórico do fim do capitalismo – mas que ele um dia acabará, talvez contem com a chegada dos “vulcanos” para que a humanidade entre em uma nova Era de prosperidade e paz na Terra. Sou fã de Star Trek. Mas sou ainda mais adepto da ideia de que o capitalismo só será derrotado e soterrado pelas lutas proletárias. Esperar a chegada dos alienígenas não é uma opção. Ao capitalismo eu não desejo “vida longa e próspera”. Ao proletariado, sim, como classe dominante, no socialismo e até a extinção das classes, objetivo maior do movimento comunista.
Altair Freitas é historiador, professor, diretor da Escola Nacional João Amazonas do PCdoB, secretário de organização do PCdoB na cidade de São Paulo