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“A missão principal do Projeto Portinari é a democratização (da arte)”

3 de janeiro de 2022

Em entrevista à Agenda Tarsila, João Cândido Portinari conta como leva adiante o legado e a obra do pai. Em fevereiro, o MIS Experience abre a exposição imersiva Portinari para Todos, em comemoração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922.

‘Mãe, por que o pai não trabalha?’. ‘Como assim, João?’ ‘Ele só vive pintando, o dia todo’. A inocência infantil permitiu este diálogo entre João Cândido Portinari e Maria Portinari, mas hoje, aos 82 anos, é ele quem mantém o Projeto Portinari – iniciado há 42 anos – e leva a obra e os ensinamentos de seu pai para onde é possível. Em breve, uma de suas maiores pinturas, Guerra e Paz, painéis que estão na sede da ONU (Organização das Nações Unidas), nos Estados Unidos, devem viajar para Roma, na Itália, onde ficarão em exposição. “E depois devem seguir para China e só de pensar fico arrepiado”, confessa João, em entrevista à Agenda Tarsila. Antes disso, em fevereiro, o MIS Experience (Museu da Imagem e do Som) abre a exposição imersiva Portinari para Todos, a maior já realizada no espaço até hoje, em comemoração ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. 

João é matemático e demorou para entrar no mundo das artes. Foi entender a resposta de Maria apenas aos 40 anos, quando viu a necessidade de passar a limpo todo o trabalho feito pelo pintor em vida – inclusive informações contraditórias que atrelaram à sua obra. “É mais da metade da minha vida dedicado a este trabalho. A missão principal do Projeto Portinari é a democratização (da arte) voltada para crianças e idosos.”

Em entrevista exclusiva à Agenda Tarsila (veja o vídeo, que é uma verdadeira aula sobre o artista), João falou sobre o orgulho do olhar sensível de Portinari para a realidade brasileira – ainda que ele fosse descendente de italianos -, a forma que trabalhou para reunir, durante 25 anos, informações para fazer o catálogo definitivo de sua obra e os voos internacionais que seu legado alcançou. Confira a seguir: 

Há pouco foi inaugurado um mural, no coração de São Paulo, inspirado pela obra do seu pai, O Lavrador de Café. Queria que me falasse o que achou da iniciativa do Mundano. 

Estive lá no mural (no Centro), foi uma coisa muito emocionante. Estava aquela garoazinha paulista, porque uma coisa é você ver uma imagem, um noticiário de televisão, outra coisa é estar à frente dele. Escolhi uma imagem (mostra uma reportagem que noticia a pintura) que me parece extremamente importante, porque o The Guardian é um dos principais jornais do mundo e este trabalho dele (Mundano) transpôs as fronteiras do Brasil e foi noticiado internacionalmente. A arte existe para curar a ferida causada pelo intelecto. Eu diria mais, não é só a ferida causada pelo intelecto, a ferida causada pelo desamor, pelo desapreço, pelo desrespeito, pelo desafeto. Me lembro de um texto do meu pai que dizia assim: ‘A pintura que não fala ao coração não é arte. E é esta a grande função da arte’. O Mundano está mergulhado nesta grande função ao fazer este trabalho. Uma vez me perguntaram se os museus Guerra e Paz de Portinari, que foram criados há mais de 50 anos, ainda estão atuais e vou fazer um mosaico de tragédias que mostram o quanto Guerra e Paz está atual e quanto o mural do Mundano está atual (mostra uma série de imagens). Ele vem nos fazendo essa denúncia terrível da destruição dos nossos tesouros nacionais, do nosso meio ambiente, da nossa floresta. Acho que realmente é fantástico. 

Você ficou com a missão de levar adiante o legado e obra do seu pai com o Projeto Portinari. Como é ter essa herança, de um dos maiores nomes da arte brasileira?

No caso de Portinari não havia museu nenhum, não havia catálogo. Os livros escritos sobre a obra deles estavam esgotados, não se tinha ideia do paradeiro das obras, nunca havia sido realizada uma exposição retrospectiva. A história do projeto Portinari começa neste momento, nessa volta e na perplexidade de como começar um trabalho desse. A sensação que foi nos tomando era de que você estava lidando com a própria essência da nacionalidade. Você estava lidando com o tecido mais sutil, com a trama mais profunda, que é essa trama que revela a imagem da alma, daquela sociedade, onde apareceu aquele pintor que a retratou. Esse foi um processo quase que excessivo, você foi sendo tomado por aquilo. (….) Esse trabalho não vem de uma análise do que eu sou, do que eu não sou. Vem de uma necessidade interna brutal como brasileiro trabalhar desta maneira e como filho também. Acho que houve aí uma coincidência de dois movimentos, o de filho, que vai em busca do pai, que vai, inclusive em defesa do pai. E a outra coisa é o estado que a memória dele estava se fragmentando, se distorcendo, sofrendo ataques, muitas vezes desonestos, desleais, e aquilo me incomodou muito. Eu toquei mais no João cidadão, mas tem também o filho, que sentiu necessidade de restabelecer a verdade das coisas. Vou citar um exemplo para que isso não fique incompreensível. Como eu vinha da área de Ciência e Tecnologia, eu não tinha vivência e nem contato com pessoas da área de arte e cultura. Então quando iniciei o Projeto Portinari comecei a ler, e os primeiros textos que caíram na minha mão foram de uma professora de História da Arte aqui da USP e ela dizia assim: ‘Todo governo forte precisa de pintura histórica. E aí estava Portinari, para satisfazer as necessidades do Estado Novo. Tiradentes, Chegada de Dom João VI (à Bahia), Primeira Missa (no Brasil), Portinari assumiu o posto de pintor oficial’. Quando li aquilo foi um choque. Pensei: ‘Meu Deus, como é possível que uma pessoa tão renomada, de tanto prestígio na história da arte, ignore que Tiradentes foi feito em 1949, não tem nada a ver com o Estado Novo, e foi encomenda de um colégio particular em Cataguases. Como é possível que ela ignore que a Chegada de Dom João VI foi feita em 1952, fora do Estado Novo, encomenda de um banco particular da Bahia. E mais estranho ainda, A Primeira Missa, que ele faz quando estamos exilados no Uruguai, em 1948, por ele ser comunista. E aí eu perguntava: ‘será que a professora ignorava estes fatos ou é simplesmente má fé?’. Comecei a fazer palestras nas universidades usando em um slide esse texto dela e no seguinte eu identificava esses dados. Este é um exemplo do que encontrei, que foi uma grande animosidade em relação a ele, ataques à pintura, à honra, à pessoa dele. Estou falando isso tudo porque acho que isso tudo também fez parte da motivação de fazer o projeto Portinari. É claro que aí tem o aspecto da busca da verdade. Uma coisa que sempre me indignou muito é a falta de honestidade intelectual, principalmente quando você tem a responsabilidade de se dirigir a jovens estudantes que não têm acesso às mesmas fontes documentais que você tem. Muitas vezes são obrigados a aceitar sua palavra magister dixit (o mestre falou). Isso me motivou muito no sentido de retificar este estado de conceito. Veja bem, não se trata de dizer que não se pode criticar. Claro que pode e deve, mas honestamente, respeitando a história. (…) Uma das mais importantes realizações do Projeto Portinari é o catálogo completo da obra dele, que levamos 25 anos para fazer, trabalhando noite e dia em equipe. E tivemos a alegria de constatar que foi o primeiro catálogo raisonné (definitivo), que tem uma razão para que se chame assim, em toda a América Latina. Nem o mexicano, a gente sabe a paixão que o México tem pelos seus pintores, nem (José Clemente) Orozco, nem (Diego) Rivera, nem Frida Kahlo têm catálogos reisonnés de obra completa. Isso foi um grande orgulho para nós. Uma das coisas que chama atenção é que ao lado de cada obra tem um verbete, que é a condição sine qua non para o catálogo chamar-se assim. É o cruzamento das 5.400 obras com os 30 mil documentos. E o orgulho que a gente teve quando o presidente da república (Lula) adotou o nosso catálogo raisonné como presente de estado, ofereceu ao presidente da França (Jacques) Chirac, ao Papa Bento 16, à rainha da Inglaterra, enfim, todas as autoridades que o visitaram ou ele visitou fora do Brasil. E no governo seguinte (Dilma Rousseff) essa tradição foi mantida. Fizemos também o Portal Portinari (aqui) que tem as 5.400 obras e os 30 mil documentos. 

O MIS prepara uma exposição imersiva para o próximo ano. Como estão as tratativas e o que deve estar nesta exposição?

Nós vamos ter um curador que é um gênio, que é o Marcelo Dantas, que foi quem criou o Museu da Língua Portuguesa, o Museu da Capivara. (Na exposição) É a primeira vez que fazem uma homenagem à minha mãe (Maria Portinari), que foi um braço forte de meu pai.  E todos os grandes temas que ele tratou, temas históricos, religiosos, sociais, a infância, o trabalho, os tipos populares, a festa popular, o folclore, a fauna, a flora e a paisagem. Aí Portinari vai estar completo. Para mim a missão principal do Projeto Portinari é a democratização (da arte) voltada para crianças e idosos. (A mostra) É uma experiência inédita, porque as pessoas poderão ter uma nova intimidade através dessa possibilidade que a tecnologia oferece de você ter a obra completa à sua disposição e numa escala monumental. Que as pessoas possam interagir. É uma experiência imersiva.  Vai ter muita coisa lúdica, muita brincadeira que vai se poder fazer com as obras, com a vida dele. Acho que vai ser uma coisa inesquecível, vai ser muito emocionante. 

Seu pai foi um dos artistas que melhor retratou a realidade brasileira, principalmente do ponto de vista social. Ele era um homem sensível?

Essa foi uma pergunta tão importante, porque com ela você revela uma faceta muito menos conhecida dele, que é essa questão da compaixão. ‘Uma pintura que não fala ao coração não é arte, porque só ele a entende. Somente o coração os poderá tornar melhores e é esta a grande função da arte’. Ele (Portinari) fala isso. E também um grande intelectual da época dele, Otto Maria Carpeaux, que faz essa resposta que parece ter sido feita sob medida para sua pergunta: ‘Portinari é um homem emocionado. Emocionaram-nos os homens e mulheres do Brasil, trabalhadores e sofredores.’

O que tocou Portinari no ideário modernista? O que o aproximou do movimento?

Separei este texto, que é dele, não tem nada mais fiel do que isso, em que diz: ‘O modernismo de todos os tempos teve suas lutas. Querer parar a nova arte é o mesmo que desejar parar o tempo. Está claro que a arte não progride, mas ela sempre refletiu o seu tempo. Estou certo de que se (Eugène) Delacroix vivesse hoje pintaria diferente. Usaria a linguagem plástica desta época sem alterar o seu valor pessoal. Uma pintura não é boa por ser desta ou daquela época, mas nenhum artista de valor deixou de refletir o seu tempo, como fizeram Giotto (di Bondone), Michelangelo, Delacroix e Picasso.” Aqui você sente o próprio testemunho dele. 

Quando você se deu conta da importância do seu pai para a arte brasileira? Também é pintor?

Nunca tive essa ousadia. Só desenho em botequim depois da terceira caipirinha (risos). Quando fui descobrir quem era de fato ele foi muito mais tarde. Porque antes eu não sabia nada. Cheguei a falar para minha mãe: ‘Por que o pai não trabalha?’. ‘Como assim?’, ela disse. ‘Porque ele só vive pintando o dia todo’… Depois, com o tempo, tive de me dedicar totalmente à matemática, estava no exterior, e não me ocupava muito do que ele representava para o Brasil, para o mundo, para as artes. Estava ligado em outra sintonia. Só quando fiz 40 anos, no Dia dos Pais, que caiu a ficha de quem era aquele homem, o que ele representava, e de que havia uma necessidade urgente de me dedicar e resgatar a memória dele, que estava se perdendo. Os companheiros dele estavam morrendo. Toda essa memória viva ia desaparecer muito em breve. Se eu não me ocupasse disso nós íamos perder coisas muito preciosas para a nossa história. Daí então comecei o Projeto Portinari. Mas já totalmente consciente quem era esse pintor, essa pessoa, esse brasileiro.

Ele pintou mais de cinco mil obras. Qual a sua preferida?

Essa é a pergunta mais difícil, porque gosto de tantas. Por exemplo, Guerra e Paz é uma das preferidas. Ele considerou a obra mais importante, a grande síntese de tudo que ele fez. E eu diria grande síntese não só do legado pictórico – porque quando a gente pensa em Portinari não tem de pensar só nesse legado, embora este já fosse suficiente para garantir o lugar dele na eternidade.  Mas a gente tem de pensar no legado ético e humanista das posições sociais, políticas e humanas que ele assumiu durante toda a vida. Na militância, isso não pode ser dissociado. E no Guerra e Paz você tem a síntese desse tríplice legado: pictórico, ético e humanista. Uma outra que eu também tenho preferência, aliás Portinari achava que era a melhor obra que ele tinha feito até esse momento, em 1949, é o Painel Tiradentes, que está hoje no Memorial da América Latina, na Barra Funda, em um prédio projetado por Oscar Niemeyer especialmente para mostrar a obra, que você tem toda narrativa do primeiro herói brasileiro. Aqui (mostra a pintura), você vê, que às vezes dizem que Portinari era influenciado pelos artistas mexicanos, mas isso não tem nada de mexicano. Isso aqui, se você quer ver alguma influência, é o renascimento italiano. Era o sangue que corria nas veias dele, era filho de italiano. E uma outra, A Primeira Missa no Brasil, que foi uma revolução cromática. Mário Pedrosa, que foi um dos principais críticos da época, disse que o Portinari aqui assumiu a sua herança vêneta, de todos os coloristas vênetos. Não são somente grandes painéis. Gosto muito do Menino com Pião, a maneira como fez o olho com três traços e você percebe que o menino está vivendo o sonho poético da infância. Casamento na Roça acho lindíssimo, a compaixão no sentido de empatia, identidade do Portinari com seu povo. Você vê, um filho de italianos que na primeira geração é completamente brasileiro e mais que isso, vai revelar o Brasil aos próprios brasileiros. E o São Francisco que dedicou a uma senhora muito amiga dele, que tinha perdido dois filhos e ele fez esse santo, deu a ela e disse: ‘coloquei no olhar deste São Francisco todo sofrimento que você está tendo’. 

Prepara, com o projeto, algo especial para o centenário da Semana?

Além da exposição no Museu da Imagem e do Som, que vai abrir no início de fevereiro do ano que vem, estamos planejando levar os painéis Guerra e Paz pela primeira vez para a Itália, Roma. E já temos uma notícia muito boa que a ONU nos autorizou novamente a ficar com a guarda da pintura. Então aqueles dois gigantes de 14 metros de altura, que pesam duas toneladas, já estamos trabalhando para levá-los a Roma para outubro do ano que vem. E depois Guerra e Paz vai para China e só de falar já fico arrepiado. E temos uma outra notícia: o governo do Vêneto, região norte da Itália, promulgou um decreto que torna obrigatório o ensino de Portinari para todas as escolas de Ensino Médio. 

Qual foi a maior lição que seu pai te deixou?

A maior lição foi justamente o amor pelos seus semelhantes, pelo sagrado da vida. Essa compaixão não no sentido português da palavra, que remete um pouco a piedade, pena. Mas no sentido anglo-saxão, compassion, que remete mais a empatia, sentir a dor do outro, sentir a solidariedade do outro. 

E se tivesse a oportunidade de encontrar o seu pai hoje, o que falaria para ele?

Falaria muito obrigado. E não só como filho e brasileiro, como cidadão, como pessoa humana. Ele nos abriu uma porta para a possibilidade de um mundo mais justo, fraterno, solidário, nobre, mais respeitoso com o sagrado da vida. 

https://youtube.com/watch?v=c3Jx3pJjv8s

Entrevista e texto de Miriam Gimenes para a Agenda Tarsila