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O julgamento de Bolsonaro por crimes contra a humanidade na pandemia

25 de maio de 2022

Tribunal Permanente dos Povos ocorreu nesta terça (24) e quarta (25) com apresentação da peça acusatória e depoimentos de testemunhas e apresentação de documentos oficiais do governo. Agora, o júri com personalidades de todo o mundo analisa os documentos e pode proferir a sentença ainda em julho.

O Tribunal Permanente dos Povos (TTP) acabou de julgar nesta quarta-feira (25) o presidente Jair Bolsonaro (PL) por crimes contra a humanidade durante a pandemia. O TPP é um tribunal de opinião simbólico, que não tem efeito condenatório do ponto de vista jurídico, mas cujas decisões são recebidas por organismos internacionais. É o caso da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e do Tribunal Penal Internacional (TPI), que podem vir a julgar formalmente esses casos, com penalidades concretas previstas para indivíduos e Estados.

Bolsonaro já foi alvo de ao menos cinco denúncias enviadas ao Tribunal de Haia (TPI), das quais uma está sob análise preliminar de jurisdição da Procuradoria e outras duas foram protocoladas na corte internacional, criada pelo Estatuto de Roma, de 1998, para tratar dos crimes considerados os mais graves e que não podem ficar impunes, como o genocídio e os crimes contra a humanidade.

Foram oito horas de julgamento e nove testemunhas ouvidas por 13 jurados de sete nacionalidades diferentes. O julgamento ocorreu simultaneamente em São Paulo, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), e em Roma, na Itália, e foi transmitido pelas redes sociais ao vivo. O salão nobre ficou cheio e puxou gritos de “Fora, Bolsonaro” em alguns momentos.

O júri agora vai se reunir reservadamente para definir e elaborar a sentença. De acordo com o secretário-geral do TPP, o epidemiologista e sanitarista italiano Gianni Tognoni, a expectativa é de que isso aconteça até o final de julho, “dependendo da nossa capacidade de trabalho”.

Tognoni explicou que o próximo passo do júri é analisar as denúncias da acusação, apresentadas na audiência pública, e também a posição do governo, que não enviou representante ao julgamento. Por conta disso, serão analisados documentos oficiais que tratam sobre o tema.

O italiano ainda explicou que a sessão foi resultado de um processo de seis meses nos quais a denúncia foi apresentada e aceita “com base na documentação impressionante preparada pelas organizações que representam os povos brasileiros”. “Está claro que a pandemia poderia ter tido um desfecho totalmente diferente dependendo da situação democrática e do reconhecimento dos direitos dessas populações”, afirmou.

Acusação

A denúncia que é analisada pelo TPP foi enviada em conjunto pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns (Comissão Arns), pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), pela Coalizão Negra por Direitos e pela Internacional de Serviços Públicos (PSI).

A peça acusatória foi intitulada “Pandemia e autoritarismo: As responsabilidades do governo Bolsonaro por violações sistemáticas aos direitos fundamentais dos povos brasileiros perpetradas através das políticas adotadas na pandemia de covid-19”.

Ela aponta para uma disseminação intencional do coronavírus a partir de ações e omissões do governo brasileiro, o que teria afetado desproporcionalmente as populações indígena e negra, bem como os profissionais de saúde, acentuando violações de direitos humanos, vulnerabilidades e desigualdades que promoveram mortes evitáveis.

“A acusação denuncia o presidente Bolsonaro por ter, no uso de suas atribuições, propagado intencionalmente a pandemia de covid-19 no Brasil, gerando a morte e o adoecimento evitáveis de milhares de pessoas, em uma escalada autoritária que busca suprimir direitos e erodir a democracia, principalmente da população indígena, negra e dos profissionais de saúde, acentuando vulnerabilidades e desigualdades no acesso a serviços públicos e na garantia de direitos humanos”, afirma a Comissão Arns.

A sustentação da acusação foi dividida entre os advogados Eloísa Machado, professora de direito constitucional da FGV Direito e integrante da Comissão Arns; Maurício Terena, assessor jurídico da Apib; e Sheila de Carvalho, articuladora da Coalizão Negra por Direitos.

Suas falas evidenciaram a omissão do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que recebeu o relatório da comissão, com o pedido de indiciamento de 80 pessoas, encabeçadas pelo presidente da República, mas ainda não se manifestou.

“Não há no Judiciário brasileiro ou em qualquer outra instância jurisdicional internacional, até o momento, um processo capaz de responsabilizar o presidente pela integralidade de suas ações que geraram risco, adoecimento e mortes evitáveis”, apontou Eloísa Machado. Para ela, Bolsonaro encontrou “na pandemia de covid-19 mais do que uma aliada, uma oportunidade para ampliar sua política autoritária de morte e destruição”.

“Desde o dia 1º de janeiro de 2019, que foi o primeiro dia de governo, o presidente tem, diretamente, a partir de seus poderes constitucionais, fragilizado a proteção dos territórios indígenas, seja a partir da não demarcação de terras, seja a partir da suspensão de projetos em demarcação, seja retirando dinheiro da Secretaria de Saúde Indígena, seja a partir da fragilização das portarias que protegem os povos indígenas isolados. Essa política altera o sentido de atuação das instituições que antes eram destinadas a proteger os povos indígenas”, concluiu Eloísa.

No segundo dia de sessão, advogados como o criminalista Antonio Claudio Mariz de Oliveira acusou que “várias infrações, vários atentados à dignidade do povo brasileiro, à nação brasileira, foram cometidos pelo presidente”.

Ele observou que o TPP é um “órgão não punitivo”, mas a reprovação vinda desta corte deve ter repercussão mundial. Mariz se referiu a vídeo com declarações do atual presidente como “um espetáculo de um verdadeiro circo de horrores”, protagonizado por Jair Bolsonaro no centro do picadeiro. 

“Não fosse pelos subsídios valiosos e pelo brilho dos acusadores, eu entenderia desnecessária qualquer acusação formal, pois o próprio acusado se incumbiu de fazer um convincente libelo crime contra si próprio. Creio que ele convenceu os jurados de sua responsabilidade pelo delitos que cometeu contra a civilização brasileira e o humanismo, cometeu e comete.”

Assim, além de demonstrar várias vezes que não se sensibiliza com a morte, o presidente tem “temperamento mais do que autoritário, verdadeiro despótico, o apego ao poder paira acima de qualquer bem ou valor”. Ainda segundo o advogado, Bolsonaro é “portador de um discurso desagregador, predatório, intolerância raivosa, ódio, uso de armas, carente de projetos e de planos, falas chulas, contrárias ao bom senso e à razão, recheadas de mentiras e de falácias, que com certeza deixariam Pinóquio envergonhado” .

Já o também ex-secretário e ex-advogado de presos políticos Belisário dos Santos Jr., da Comissão Arns, classificou o Tribunal dos Povos como um “tribunal moral”, que analisa causas que cortes regulares não julgariam. Sentenças políticas, afirmou, atraem solidariedade e dão protagonismo às vítimas. E o TPP tem “idoneidade e capacidade moral” para demonstrar a prática de crimes contra a humanidade e violações sistemáticas contra a população. 

Para ele, o governo Bolsonaro foi “irresponsável na ação e reincidente na omissão”. “Colocou o Estado de direito em risco no Brasil”, acrescentou.

O ex-ministro da Justiça e presidente da Comissão Arns, José Carlos Dias, apontou para a política de desmonte e destruição do governo federal e condenou a leniência do centrão do Congresso Nacional, a partir dos quais emergiu o apelo ao Tribunal, “para despertar a opinião pública” que, ao ter “seus direitos enxovalhados, clama por Justiça”.

“A questão da impunidade é crucial nesse processo de denúncia ao TPP porque nenhuma das acusações que foram feitas contra o presidente brasileiro e seu governo, em especial a partir da CPI da Covid, teve consequências no Brasil”, afirma o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos e membro fundador da Comissão Arns.

“O presidente comete crimes de responsabilidade cotidianamente, mas tem contado com uma garantia de impunidade por parte da Procuradoria-Geral da República”, avalia Pinheiro, sobre o comportamento do procurador-geral da República, Augusto Aras. “O TPP exprime essa insatisfação e revolta com a impunidade diante de crimes tão bem fundamentados”.

Juri e testemunhas

O júri que analisa a denúncia contra Bolsonaro é composto por especialistas da área do direito, das ciências sociais e de saúde pública.

O grupo é composto por Luigi Ferrajoli, ex-juiz italiano; Eugênio Raúl Zaffaroni, juiz argentino da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Vivien Stern, baronesa britânica e membro independente da Câmara dos Lordes no Parlamento do Reino Unido; e Jean Ziegler, sociólogo suíço e ex-relator da ONU para o direito à alimentação, entre outros.

Os brasileiros Joziléia Kaingang, geógrafa e antropóloga da etnia Kaingang; Kenarik Boujakian, jurista e magistrada brasileira nascida na Síria; Rubens Ricupero, diplomata e ex-secretário de Assuntos Interamericanos do Ministério das Relações Exteriores do Brasil; e Vercilene Kalunga, advogada popular e quilombola do Quilombo Kalunga, também fazem parte do júri desta sessão.

Além dos jurados, participaram da sessão também testemunhas convocadas pela acusação, que deram depoimentos sobre a atuação do governo federal na pandemia.

As presenças de testemunhas envolvidas na CPI da Covid no Senado, como o senador Humberto Costa (PT-PE), a jurista Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, e a médica Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional, uma das organizações do grupo Alerta, representado por ela, resgataram parte das revelações feitas pela comissão parlamentar de inquérito.

“Verificamos uma estratégia federal na disseminação da Covid-19”, disse a professora Deisy Ventura.

Ela apresentou os resultados da pesquisa em que avaliou mais de 3.000 normas federais produzidas em 2020. Segundo afirmou, “os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência ou negligência do governo federal”.

“A pesquisa revela a sistematização do empenho e a eficiência da União em prol da ampla disseminação do vírus no país”, disse.

Testemunhas do campo da saúde pública lembraram eventos que marcaram a atuação desses profissionais na pandemia.

Valdirlei Castagna, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, falou sobre o impacto das fake news no setor. “Como resultado, um grupo de pessoas invadiu uma UTI no Rio de Janeiro para verificar se de fato o hospital estava lotado de pacientes contaminados, o que colocou em risco profissionais, pacientes. Não foi o único caso.”

Shirley Marshal, presidente da Federação Nacional dos Enfermeiros, falou da demora na aquisição de vacinas e do chamado gabinete paralelo, que “institucionalizou a suspeição das vacinas e o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença”. “Trabalhadores que fizessem orientação contrária receberam ameaças diretas”, afirmou.

Sheila de Carvalho, advogada da Coalizão Negra por Direitos, falou sobre uma “negligência criminosa” na condução da pandemia a partir do desinvestimento no Sistema Único de Saúde, o apagamento de dados públicos sobre a pandemia com marcadores raciais. “Quando os dados ainda eram coletados, a cada pessoa branca morta, morreram cinco pessoas negras.”

Já Maurício Terana, da Apib, fez sua sustentação de cocar e terno e gravata e apontou para os problemas estruturais da questão indígena e para os desmontes promovidos pelo governo Bolsonaro antes mesmo da pandemia.

Segundo ele, a pandemia foi “usada como parte de uma política maior anti-indígena que está em curso no Brasil, que incentiva invasões de terras e garimpo e que permitiu a expansão da contaminação em terras indígenas”.

Ele convocou duas testemunhas, Lindomar Terena e Auricélia Fonseca, da coordenação do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (Cita).

Emocionada, Auricélia disse trazer consigo “todas as violações que meu povo vem sofrendo na Amazônia e na região do Tapajós, onde 70% da população indígena está contaminada por mercúrio”. Ela é de Santarém (PA), área com 180 Territórios Indígenas e citou uma série de projetos de lei, que chamou de “projetos de morte” dos povos indígenas.

Também lamentou as muitas vítimas da covid-19 – ela mesma contraiu o vírus três vezes.”“Para algumas pessoas, uma anciã pode ser apenas uma pessoa velha. Como é para o Bolsonaro, que acha que a pessoa pode morrer. Mas para nós, os anciões são nossas bibliotecas vivas. É com eles que está a sabedoria do nosso povo. Não vamos fazer nem um minuto de silêncio, vamos falar por eles, vamos lutar por eles. Eles levaram consigo parte de nossa história e da sabedoria de nosso povo”, afirmou.

Terena concluiu: “O que está acontecendo aqui, hoje, o Judiciário já deveria ter feito”. Para o advogado, a condenação por crime de genocídio é necessária, dado que a atuação do governo durante a pandemia foi, sob a ótica dos povos indígenas, comparável à situação vivida nos tempos da chegada dos portugueses ao Brasil.

“Desde o primeiro dia da pandemia estávamos aflitos, pois essa história já tínhamos vivido. Quando a colonização começou, muitos parentes foram dizimados por doenças trazidas pelos portugueses, pelo contato direto e pela violência de estado”, destacou. “Tivemos de ir à Suprema Corte porque as políticas se tornaram ‘necropolíticas’, o governo de fato não queria nos ver vivos”.

A advogada Carolina Santana, assessora jurídica do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi), lembrou a aprovação do Projeto de Lei 1142, que determinou que o governo deveria oferecer água potável, testes rápidos contra covid e material de higiene para indígenas, além de garantir reserva de leitos. Porém, por uma manobra da bancada evangélica, o texto previu também autorização para permanência de missionários religiosos nos territórios isolados.

“Com o fracasso das barreiras sanitárias e o incentivo ao contato, como no caso da entrada de missionários nos povos isolados, aumentou a vulnerabilidade sociocultural e política dos povos isolados”, explicou. “Estamos diante de povos e segmentos de povos sobreviventes de massacres. Estamos diante de cenário em que vemos povos desaparecerem. Se isso não configura genocídio, não sei mais o que poderia caracterizar”, destacou.

Indagada sobre esses desaparecimentos, Santana citou o caso do Povo Juma, cujo último sobrevivente, Akurá Juma, que tinha entre 86 e 90 anos, morreu em Porto Velho (RO) em 17 de fevereiro de 2021, vítima da covid. Akurá recebeu o chamado “tratamento precoce” contra a doença em um hospital do Amazonas. 

Para Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Apib, o momento “é muito oportuno” para que esses elementos sejam trazidos a público.

“Passamos por uma série de violações provenientes de omissões do Estado brasileiro e de ações que contrariam direitos já regulamentados não só no ordenamento jurídico brasileiro como também nos tratados internacionais”, disse a liderança indígena.

Para a socióloga Maria Victoria Benevides, uma das fundadoras da Comissão de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, a dor e a revolta relatados durante os dois dias de audiência devem ser combustíveis para esperança. Para isso, é preciso acompanhar e denunciar as violações de direitos humanos.

“É um cenário de vergonha. Um país que é tido como celeiro do mundo e que tem milhões de famintos. Um país que é o pulmão do mundo, mas é foco de dramática devastação ambiental”, completou.

Cadeira vazia do governo

Convidado pelo secretariado do TPP a apresentar sua defesa, o governo federal recusou a oferta e indicou que não reconhece o tribunal internacional. No segundo dia de julgamento, uma cadeira foi deixada vazia no palco para representar essa ausência.

“Não há no Judiciário brasileiro ou em qualquer outra instância jurisdicional internacional, até o momento, um processo capaz de responsabilizar o presidente pela integralidade de suas ações que geraram risco, adoecimento e mortes evitáveis”, apontou Eloísa. Para ela, Bolsonaro encontrou “na pandemia de Covid-19 mais do que uma aliada, uma oportunidade para ampliar sua política autoritária de morte e destruição”.

Questionada sobre o julgamento do presidente Jair Bolsonaro, a Advocacia Geral da União (AGU) declarou em nota que “não existe Tribunal Permanente dos Povos no sentido jurídico do tema, muito menos ao qual o Brasil tenha aderido por meio de tratado internacional” e que, “sendo assim, não há atuação da AGU”.

Também em nota, o Itamaraty disse que “o Tribunal Permanente dos Povos (TPP) constitui iniciativa criada pela sociedade civil. Seu exercício não se confunde com atuação de tribunais internacionais, constituídos pelos Estados, perante os quais o Itamaraty tem competência para representar a União”.

“Por esse motivo, não seria atribuição deste Ministério enviar representante a evento dessa natureza, particularmente quando realizado em território nacional”, completou o Ministério.