O renascimento da unidade de esquerda na França para enfrentar o fascismo
Novidade eleitoral na França foi a forte unidade de esquerda que a fez ressurgir das cinzas se impondo como uma das principais forças, e reduzindo a influência da extrema-direita de Le Pen e Zemmour.
Novidade eleitoral na França foi a forte unidade de esquerda que a fez ressurgir das cinzas se impondo como uma das principais forças, e reduzindo a influência da extrema-direita de Le Pen e Zemmour.
Neste domingo (12), ocorreu o primeiro turno da eleição parlamentar francesa, observada internacionalmente pela importância frente ao cenário europeu de guerra e ascensão da extrema-direita. Embora o sistema eleitoral francês seja complexo e só se defina no próximo domingo (19), já é possível observar tendências, como um importante avanço da esquerda, o desgaste do presidente reeleito Emmanuel Macron e a consolidação da extrema-direita.
Macron não tem garantida a maioria absoluta. A extrema direita recuou em relação à eleição presidencial. Mas uma coisa é certa: as esquerdas, agora unidas, renasceram das cinzas e voltaram a ser uma força de primeira grandeza no cenário político francês. Com isso, as projeções até agora já podem ser entendidas como uma vitória da união de esquerda e um enorme desgaste do presidente da República e do seu partido.
A novidade mais destacada desta eleição para o parlamento francês foi a união de praticamente todos os partidos de esquerda na coligação NUPES, ao contrário da fragmentação que favoreceu a vitória de Macron na eleição presidencial e desfavoreceu seu opositor de esquerda, Jean-Luc Mélenchon, da França Insubmissa. Se esta unidade de esquerda tivesse ocorrido desde o primeiro turno da eleição presidencial, o segundo turno talvez não fosse entre Macron e Marine Le Pen, a direita tradicional e a extrema-direta.
No pleito de ontem, a coligação de esquerda NUPES (Nouvelle Union Populaire, Écologique e Social) obteve 26,11% dos votos, contra 25,88% do Ensemble (Juntos, em português), coligação de partidos de apoio a Macron. A extrema-direta de Marine Le Pen (Reunião Nacional) teve 18,68% e a direita ainda mais radical de Eric Zemmour (Reconquista) teve 4,25%. A direita tradicional, dos Republicanos, veio em quarto, com 11,30%.
A frente de esquerda reuniu seis partidos e conseguiu eleger, já no primeiro turno, quatro deputados, com 26,2 % dos votos. O Juntos, de Macron, elegeu um e ficou com 25,4. Além da França Insubmissa de Mélenchon, integram a frente o Partido Socialista, o Partido Comunista Francês, o Ecologia-Europeia – Verdes, o Junto! (não confundir com a coligação de Macron) e o Geração s. Esta é a sexta vez na história francesa que as esquerdas se unem para disputar eleições; o mesmo ocorrera em 1924, 1936 (com a Front Populaire), 1945, 1981, quando François Mitterand foi eleito presidente, e em 1997.
Segundo Flávio Aguiar, analista político da Rádio França Internacional (RFI), sempre que se uniram, as esquerdas conseguiram resultados muito positivos e implementaram programas sociais relevantes. Em 1924, por exemplo, conseguiram impor a gratuidade do ensino secundário; em 1936, as férias remuneradas, a semana de 40 horas e convenções trabalhistas coletivas; em 1945, se instituiu a seguridade social universal; em 1981 houve a nacionalização dos grandes bancos, a aposentadoria aos 60 anos e a abolição da pena de morte; em 1997, a criação da semana de trabalho de 35 horas.
Cenário consolidado
Com isso, a união de esquerda já conseguiu mudar o panorama eleitoral que parecia estar dividido entre Macron e Le Pen, com gradual enfraquecimento da esquerda, desde os anos 1990. Agora, os blocos que estão acirrados na disputa são a esquerda unida e a aliança de apoio a Macron, com o partido do presidente arriscado a perder a maioria absoluta no Parlamento no próximo domingo. Uma inversão de cenário que deixou os analistas políticos tradicionais perplexos.
O dado mais relevante é a mudança de cenário em que o partido de Macron, com maioria parlamentar, é contestado por esta segunda força eleitoral, que é o resultado da união de esquerda inédita. Mélenchon pediu para todos irem às urnas e torná-lo o primeiro ministro do governo de Macron, o que pode não se concretizar no domingo, mas a união de esquerda era impensável, há poucos meses.
Na França, as forças políticas se impõem gradualmente, ao longo das eleições, como foi o caso da extrema-direita de Le Pen. Por isso, a união da esquerda tem um significado de longo prazo para o cenário político.
Outro aspecto definido nesta eleição foi a abstenção recorde e a ascensão da extrema-direita. Ao lado da união de esquerda, há agora duas forças de extrema-direita, na medida em que a direita clássica liberal foi em grande parte esmagada. É a vez de Marine Le Pen e Eric Zemmour darem as cartas com seus discursos conservadores, reacionários, xenofóbicos, machistas e racistas.
A extrema-direita tem se instalado progressivamente no cenário político francês não apenas em resultados eleitorais, mas também na mentalidade que repercute nesses resultados. Uma mentalidade que se fortalece com a omissão da imprensa e do sistema político, que permite à extrema-direita se infiltrar a paisana, enquanto a esquerda defensora do sistema democrático e dos direitos sociais é demonizada como extremista e herdeira de um suposto nacionalismo traumático para a história europeia.
A vitória que tem conseguido esse espectro político é a vitória da integração no circuito político como se fossem forças políticas como as outras, quando na verdade são extremistas autoritários e neofascistas que pretendem desmontar o sistema político democrático tradicional.
Busca por estabilidade
Os analistas observam que o cansaço do francês com a pandemia, o discurso de ódio, a guerra e a perda de direitos sociais tem criado um clima psicológico de busca por moderados e estabilidade institucional. Resta saber quem vai canalizar este sentimento.
Aquele que aparece no centro, o partido de Macron, aparece como a força política mais moderada e as outras são tratadas pelo establishment político e pela mídia como radicais. No entanto, a política de Macron é uma política radical de liberalização da economia e da sociedade. Este é o motivo de sua punição nas urnas.
Essa radicalização da direita tradicional já aparecia nas promessas de Macron, desde sempre. Seu programa eleitoral de cinco anos atrás intitulava-se “revolução”, não uma revolução política das instituições, mas uma revolução de liberalização dos fluxos econômicos com mais concentração de riqueza numa parte menor da população e um empobrecimento de grande parte da população e destruição de uma parte das políticas sociais. Apesar disso, o sistema se une em torno da descrição de Macron como o mais moderado, enquanto Mélenchon e Le Pen seriam os radicais.
Sistema eleitoral
Ainda não é possível cravar um resultado final sobre as cadeiras do Parlamento, antes do segundo turno, porque o sistema eleitoral francês para o Legislativo é bastante complicado. O percentual de votos por si só não estabelece o número de deputados que um partido ou uma coligação conseguem, no fim das apurações. É necessário que seus candidatos vençam nas circunscrições onde concorrem.
A coligação de Mélenchon vai disputar o segundo turno em mais de 500 circunscrições, tendo conquistado o primeiro lugar em 194 delas. O Juntos chegou em primeiro em 203 circunscrições. Apesar de Marine Le Pen ter obtido 55% dos votos na sua circunscrição, ainda não se elegeu, pois o comparecimento foi muito baixo e não garantiu o quorum eleitoral. Seu partido, o Reunião Nacional, ficou em primeiro em 110 circunscrições, com 18,67% dos votos. O Republicanos, da direita tradicional, ficou em primeiro em 42 circunscrições, e teve 11,31 dos votos. O Reconquista, de Zemmour, teve um resultado fraco: 4,2%.
Abstencionismo
Uma questão que se consolida e preocupa o sistema eleitoral francês é a abstenção crescente. Os analistas avaliam que a política do Emmanuel Macron e da maioria parlamentar que o apoia causa esta desilusão com a política, por se afirmar como uma força institucional, democrática e moderada, que na verdade só destrói o tecido de proteção social.
Há muitas pessoas que não querem dar o voto a Macron porque estão profundamente decepcionadas com a política realizada por ele, mas também não têm coragem de dar o voto a posições descritas como extremadas à esquerda e à extrema-direita, que representam mudança nas instituições e nas políticas que estão em andamento. Portanto, é um eleitorado que prefere esperar para ver como vai ficar.